domingo, 25 de outubro de 2009

1318) A função da gíria (3.6.2007)



A favor ou contra a gíria? Eu sou a favor – dentro dos parâmetros! Apóio qualquer coisa que venha para tornar nossa relação com a língua mais rica, mais flexível. A Realidade é inesgotável, e precisamos sempre de novas maneiras de percebê-la e comentá-la. 

Volto ao tradicional exemplo dos esquimós, que têm dezenas de palavras diferentes para descrever a neve. Não é por serem desocupados ou porque são barrocos. É porque vivem cercados de neve, neve á uma coisa essencial para suas vidas, e é importante para eles distinguir dezenas de tipos diferentes.

A gíria vem muitas vezes para sacramentar a existência de uma nuance que existia na prática, era percebida por todo mundo, mas faltava uma palavra exata para ela. É a mesma coisa que na Matemática: existia um conceito que não era satisfeito pelos números naturais, porque nem era 3 nem era 4. Era mais do que 3, mas era menos do que 4. Aí chegou um gênio e inventou o 3,5. E com ele todas as nuances infinitesimais decorrentes deste gesto fundador. 

Pois na língua é a mesma coisa, e a gíria funciona como (anotem; estará nos dicionários daqui a meio século) o sistema fracionário e intersticial da nomenclatura, um sistema aberto, tipo Linux, de contribuições semânticas dos usuários.

A gíria é muitas vezes um erro voluntário para introduzir uma mutação numa palavra insuficiente para cobrir a área de significação desejada. Vou dar um exemplo de uma gíria campinense: o Pertubado (assim mesmo, sem um “R”). Todo mundo tem um amigo ou um conhecido que é descrito assim. “Sabe quem é Fulano de Tal?” “Conheço, é um pertubado que mora na Otacílio de Albuquerque”. O “pertubado” é um indivíduo encrenqueiro, difícil de lidar, pessoa problemática que acaba gerando confusão onde quer que se meta. Não é necessariamente um mau caráter, um mau sujeito. Muitas vezes é – ou seria – um cara até legal. Só não é legal porque é um pertubado.

Atenção, revisores: o detalhe está na grafia, porque se colocar a palavra gramatical, “perturbado”, estraga tudo. Tem que tirar esse segundo “R”, para distinguir a palavra nova da palavra anterior de onde deriva. 

Introduz-se um ruído, e esse ruído é, na Língua como na Literatura, a informação, a criação, a novidade. A gíria é a introdução de um erro aparente para suprir uma lacuna da língua, criando uma palavra que se encaixe com exatidão naquela categoria ainda sem nome que percebemos mas que só podíamos referir através de longas descrições, de circunlóquios.

As gírias são bem-vindas quanto aumentam nossa capacidade de expressão, e são mal-vindas quando a diminuem. (Ninguém usa dizer “mal-vindas”, não é mesmo? Pois eu uso.) 

Gírias são contribuições individuais para o todo, e seria uma pena se o surgimento de uma nova gíria cancelasse as anteriores, ou tornasse obsoleto o vernáculo tradicional. Em casos assim, a gíria seria uma perda, uma subtração à língua, um encolhimento, um sinal de decrepitude à vista.





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