sábado, 28 de fevereiro de 2009

0849) No princípio era a roda (6.12.2005)



Faleceu recentemente no Rio o jornalista e crítico musical Roberto Moura, após contrair a “febre maculosa” que tem vitimado algumas pessoas aqui no Estado. Ao que parece, Moura hospedou-se numa pousada em Itaipava onde foi picado por carrapatos; morreu alguns dias depois. Nunca o conheci pessoalmente, mas durante anos acompanhei seus artigos na imprensa. Foi uma perda lamentável, além de tudo pelo fato de ser ele uma pessoa que pesquisava a sério a história do samba carioca, em livros como Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro (1983) e No princípio, era a roda (2004). [Nota: fiquei sabendo depois que são dois autores diferentes, com nomes parecidos. O autor de Tia Ciata é outro.]

Moura abre este segundo livro com uma tese interessante. Resumindo, ele diz que não foi o samba que deu origem à chamada “roda de samba” (grupo de amigos que se reúne para tocar, cantar, beber, comer, divertir-se), e sim o contrário. Ele afirma que não descobriu a pólvora, que isto é algo mais ou menos sabido por todo mundo que pesquisa o samba e escreve sobre o samba, só que não havia sido ainda afirmado de maneira categórica. Ele o faz agora, e essa pequena inversão que propõe (e que me parece correta) ajuda a entender como surge esse tipo de música – e pode nos ajudar também a estudar melhor o aparecimento do forró e da Cantoria de Viola.

Inspirando-se em teses de Roberto da Matta, Moura estabelece dois tipos de ambiente para a música popular: a casa e a rua. Num, estamos no ambiente íntimo doméstico, comunitário, onde amigos fazem música para se divertir. No outro, estamos na esfera pública, do espetáculo, da organização de entidades, do profissionalismo. Na casa, vigora a roda de samba; na rua, a escola de samba. Para Roberto Moura, já aconteciam rodas de samba (ou seja, esses “pagodes de fundo de quintal”) antes mesmo do samba se firmar como gênero musical, com suas características harmônicas, rítmicas, melódicas, estruturais. Era o folguedo típico das comunidades negras cariocas no século 19 na chamada “Pequena África” – o bairro popular que se estendia do cais do Porto até a Cidade Nova, em torno da Praça Onze, e que as reformas urbanas posteriores botaram abaixo, expulsando aquelas populações para os morros vizinhos. (Daí ser historicamente inexata a expressão “o samba nasceu no morro”. O samba, neste sentido estrito, nasceu nos bairros populares do Centro, e só se refugiou nos morros bem depois).

Fim-de-semana. Um bar ou uma residência começa a se encher de gente. Instrumentos musicais vão aparecendo, um grupo se forma. Os bambas tomam a iniciativa, mas todos participam, cantam, batem com facas em pratos e garrafas. Na cozinha, as mulheres preparam panelas e mais panelas de comida. O dia se passa, a bebida circula, os grupos se revezam, a música não pára. Em torno dos músicos, conversa-se sobre futebol, sobre trabalho; casais namoram ou paqueram. Crianças circulam por ali o tempo todo, e serão elas os futuros sambistas. O samba nasceu em ambientes assim.

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