domingo, 14 de setembro de 2008

0547) O Silêncio do Delator (19.12.2004)



José Nêumannne acaba de lançar seu segundo romance, O Silêncio do Delator, pela editora A Girafa (São Paulo). É um livro caudaloso (540 páginas), mas que se lê num só fluxo: no começo o leitor custa a pegar o tom e o ritmo, mas depois que consegue passar terceira, vai em terceira até o fim. Nêumanne comenta a certa altura do livro que fez uma opção por um “texto zero”, ou “grau zero do texto”: uma prosa sem enfeites (ou com poucos enfeites), seu complexidades lingüísticas, aquilo que Isaac Asimov chamava de “prosa vidraça”, transparente, discreta, servindo de veículo submisso e silencioso para a passagem das idéias com um mínimo de refração.

Sou meio suspeito para falar do livro porque é a história da minha geração, que é a mesma do autor, ele mesmo ligeiramente mais jovem que eu. O livro é uma autópsia impiedosa (como aliás tudo que se faça a um cadáver) dos ideais cultivados pela chamada “geração anos 60”, a geração que foi adolescente nessa turbulenta década e que foi a única, até hoje, que acreditou serem possíveis os sonhos sonhados então.

A técnica utilizada é um coral entrecruzado de vozes (amigos da adolescência se reencontram na meia-idade, no velório de um deles) e de temas (sexo, drogas, rock-and-roll, revolução política, misticismo oriental, o Brasil). São monólogos interiores entre os quais se incluem o do defunto e o do autor, e ao pularmos de um para outro vamos percebendo as contradições, os desmentidos, os equívocos, os mal-entendidos entre aquelas pessoas que perderam a virgindade, experimentaram drogas e tiveram a idéia de derrubar o governo numa época em que se ia à loja da esquina para comprar o disco mais recente dos Beatles ou de Bob Dylan. As canções dos dois servem como roteiro, cada uma intitulando um capítulo do livro, e definindo o tema que os monólogos silenciosos se encarregarão de retomar e improvisar em cima.

A necessidade destes improvisos temáticos já é uma notável “constraint” (restrição auto-imposta), mas o autor se obriga a outra, ainda mais acrobática: evitar qualquer menção geográfica que possa situar a história num lugar específico. Somente um leitor campinense, e daquela geração, será capaz de reconhecer a precisão com que o espírito-do-tempo é captado, porque o livro prescinde totalmente dos adereços externos do realismo: nomes de ruas, lojas, bares, colégios... Sabemos que se trata do Brasil, e mais nada. O que talvez desaponte alguns leitores que, sabendo tratar-se de um “romance de geração”, irão procurar em vão a cor local, a “tranche de vie”, a “horta da Luzia”, as miudezas memorialistas a que a gente se apega tanto após certa idade.

O romance de Nêumanne não ocorre num vácuo, pelo contrário, ocorre no turbilhão de catástrofes políticas que lembramos tão bem. Mas seu passado é tão estilizado e impessoal quanto certos futuros da ficção científica, como o de Godard em Alphaville. É Campina Grande, mas poderia ser qualquer lugar.

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