domingo, 27 de julho de 2008

0469) Precisa-se de chapeados (19.9.2004)



Quando eu era pequeno, no fim das manhãs de sábado ficava à janela, na rua Miguel Couto, esperando minha mãe chegar da feira. 

E lá vinha ela, a bolsa ao ombro, uma sacola de verduras e legumes na mão. Alguns passos atrás, vinha o chapeado, trazendo na cabeça um balaio que oscilava para cima e para baixo a cada passo. 

Quando a feira vinha muito pesada ele andava mais ligeirinho, as pernas meio flexionadas, a espinha reta, acelerando ao chegar perto de casa, como se dissesse: “Tá no finzinho... Tá já chegando...”

Do outro lado da rua, o dia inteiro, eu via os chapeados que descarregavam algodão no armazém de Araújo Rique. Eram negros imensos, com tórax de barril e cada rebolo de braço maior que o do Superman. 

Almoçavam sentados no meio-fio ou nos fardos de algodão, com o prato na mão esquerda e uma colher na direita; um prato daqueles teria me alimentado por uma semana. 

Reencontrei-os anos depois quando morei na Padre Ibiapina, e eles passavam o dia carregando e descarregando o açúcar de Artur Freire.

Os chapeados da feira tinham um detalhe que me fascinava: era uma meia bola de futebol, cortada, colocada sobre a cabeça como se fosse uma touca, para apoiar a rodilha. Eu admirava sua força física, admirava o profissionalismo que os fazia seguir a patroa feira-acima-feira-abaixo, sem reclamar. 

Quando chegavam em casa, ele arriava o balaio, sentava no batente que separava a cozinha do quintal, abanava-se, arquejante. Minha mãe servia água, servia um almoço, pagava, conversava, comentava a feira, o custo de vida. Ele almoçava e partia, balaio vazio às costas, para faturar mais um.

É deles que me lembro quando passo hoje diante das academias modernas. Vejo aqueles sujeitos rodeados de “equipamentos atléticos de última geração”, esfalfando-se pra perder barriga e ganhar músculos. 

Eu nunca me preocupei com músculos. Faço minha caminhadazinha periódica pensando em como estarão meus pulmões e meu coração daqui a 30 anos. O pessoal moderno quer ter físico de chapeado, quer o rebolo de braço, quer “o peitoral definido”, como dizem os canais de ginástica na TV a cabo, mas o que me chama a atenção é o absoluto desaproveitamento de tanto esforço físico. 

Eles correm horas seguidas em esteiras que não saem do canto. Passam manhãs puxando pra cima e pra baixo um peso enorme que “não inflói nem contribói”. Todo aquele imenso sacrifício serve apenas para torná-los bonitões, parrudos, “He-Men”.

Imagine só se a gente conseguisse convencer esse pessoal a usar de maneira mais produtiva tanta dedicação, tanto estoicismo. 

Carregando balaios de feira. Assentando tijolo em prédio. Descarregando contêineres em Cabedelo. Arrastando-cobra-pros-pés com uma enxada em plantações rurais. Limpando mato. Demolindo prédios condenados. 

Todos lucraríamos, porque eles ficariam atletões do mesmo jeito (com a vantagem adicional de pegar um bronze ao meio-dia), e o motor do Brasil talvez conseguisse pegar, mesmo no tranco.





2 comentários:

  1. Tem alguma fonte ou sugestão de onde eu possa saber mais sobre os chapeados? algum texto, livro, artigo etc etc etc. Essa postagem sobre os chapeados foi bublicado no jornal da paraiba que você escreve?
    Tô pesquisando sobre os chapeados de campina grande. Na verdade estou fazendo um trabalho monografico para a universidade federal de campina grande. E o meu objeto de estudo são os chapeados..... por isso qualquer coisa sobre esse tema seria bem vindo, já que parece que ninguem escreveu inda sobre estes trabalhadores.

    ficarei no aguardo,
    abração!

    allanfranca@hotmail.com

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  2. Texto perfeito, Bráulio Tavares. Tenho a mesmíssima impressão quando passo defronte a uma academia de ginástica... Começo a me lembrar dos trabalhadores do eito, que participaram das limpas de roçado e das brocas de mato no sertão da minha infância. Um deles tinha o apelido de 'ENGOLE-PEDRA'. O homem era baixinho, meio atarracado, mas forte como um touro! Com aquela barriga 'tanquinho', tão cobiçada pelos 'acadêmicos de ginástica', ele comia uma bacia de feijão com rapadura, farinha e corredor de boi de uma sentada. De manhã, se dessem um cuscuz e uma rapadura ele redobrava a coragem na hora de trabalhar. Parecia um trator... Trabalhava e comia como um bicho. Para tristeza minha, da última vez que fui aos sertões de Madalena-CE vi essa figura bem envelhecida, tomando (pasme!) uísque com guaraná às sete horas da manhã. Horas depois, passando de volta pelo mesmo local, vi o homem caído debaixo de uma moita e uma vaquinha mansa encostada. A pessoa que andava comigo disse: - Essa vaca é dele. Mas ele bebeu tanto que nem teve coragem de tirar o leite... Mudou o sertão, ou mudaram os tempos?

    Arievaldo Vianna

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