quarta-feira, 23 de julho de 2008

0459) A eternidade dos pássaros (8.9.2004)




(o manuscrito do poema de Keats)

Um dos meus contos preferidos sobre Realidade Virtual (mundos criados em computador) é “In the Upper Room” de Terry Bisson (Playboy, abril 1996), cujo texto completo pode ser obtido em: http://www.freesfonline.de/authors/bisson.html

É a história de um cara que se perde no interior de um catálogo virtual da Victoria´s Secret, a famosa loja de lingerie. Nesse catálogo virtual, o cliente, em vez de folhear uma revista com fotos das mulheres usando aqueles trajes provocantes, “entra” numa mansão e percorre quartos onde encontra simulações de belas modelos trajando coisas mais provocantes ainda. 

Um crítico chamou a atenção para um detalhe que revela o caráter serial, repetitivo, mecânico daquele mundo. Diz o narrador: “I stood beside her at the window watching the robins arrive and depart on the grass. It was the same robin over and over.” (“Fiquei ao lado dela, observando os tordos chegarem e partirem do gramado. Era o mesmo tordo, que ia e voltava, ia e voltava.”) 

Esse passarinho, sempre o mesmo, revela a natureza artificial daquela paisagem; e o escritor destaca isto com sutileza, com o uso de verbos ( “arrive”, “depart”) que usamos normalmente para aviões, não para aves.

Que frio na espinha, que calafrio na alma não sentiríamos se percebêssemos, em nosso mundo real, que certos elementos se repetem em “loop” interminável, como os figurantes de filmes como Cidade das Trevas ou O 13o. andar

As pessoas acostumadas a jogar jogos em CD-Rom (de The Sims a Zoo Tycoon ou a Great Theft Auto) estão acostumadas à presença desses figurantes cibernéticos: pessoas, carros ou animais que estão sempre passando ao fundo, sempre os mesmos, cumprindo as mesmas ações e os mesmos gestos, para nos dar a ilusão de Vida Real.

O que não deixa de me trazer à memória a famosa “Ode to a Nightingale” de John Keats (1819), em que o grande poeta romântico sente-se desprendido da realidade terrena ao escutar o canto de um rouxinol, cuja beleza o liberta por alguns instantes das tristezas da vida e da fragilidade do corpo (Keats morreria de tuberculose dois anos depois, aos 26 anos). 

Ele se sente transportado para um plano fora do espaço e do tempo ao escutar aquela canção que, sem dúvida, é a mesma que os rouxinóis cantam desde que o mundo é mundo. Keats percebeu (embora não nos termos que aqui coloco) que um pássaro não passa de um corpo físico descartável que executa um software musical repetitivo, sempre o mesmo, e que nunca se extingue: “Thou wast not born for death, immortal bird!” 

O pássaro não morre, porque é um figurante virtual em nosso mundo; cada rouxinol de hoje é o mesmo que cantou na Antiguidade remota. O poeta percebeu que era o mesmo rouxinol que ia e voltava, cantando para indivíduos únicos, efêmeros, mortais, conscientes da existência do Tempo, e de que só deixariam na Terra a sua canção. 

O rouxinol de Keats continua cantando, mas me consola pensar que Keats também.









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