quinta-feira, 27 de março de 2008

0302) Retrato do artista quando chove (9.3.2004)




Eu não tenho nada contra o sol, mas me sinto muito mais à vontade na companhia da chuva. Estou falando bem baixinho para que não me escutem no Rio de Janeiro, onde moro, e em João Pessoa, onde este jornal também circula.

Que isto fique somente entre nós, campinenses, que aprendemos desde a infância a arte sutil de saborear a textura diáfana de uma neblina, e que não nos sentimos de maneira alguma prejudicados quando a tarde se acinzenta, as nuvens se avolumam, e o céu cai por cima de nós com toda força.

Tenho pensado muito nisto agora, com essas chuvas que andam desabando pelo Nordeste, derruindo pontes, invadindo casas, expulsando populações inteiras. Muita gente aqui no Rio fica perplexa, porque os telejornais ficam mostrando imagens alternadas de catástrofes e de comemorações; adultos em lágrimas com os troços na cabeça e pirralhos felizes tibungando na barragem. A mente cartesiana dos civilizados trava um pouco diante disto.

É difícil explicar que num lugar apocalíptico como o velho Nordeste tudo está sempre a uma vírgula de uma catástrofe qualquer. Chover é problema, mas não chover também é problema, e já que tudo é problema nós apenas vivemos num nível mais problemático de normalidade – e é só tocar o barco como sempre se fêz.

O bom da chuva, reconheço, é quando se mora numa casa segura, num apartamento ao abrigo das enchentes e de outros incômodos. (Calma, amigos, sou solidário com as populações ribeirinhas e periféricas, mas tenho meus momentos poéticos!) A chuva que sangra açudes, desmorona barragens, engrossa rios e alaga bairros é uma chuva prosaica, uma chuva desencadeadora de meros fatos. Eu gosto mesmo é da chuva que se escuta lá fora, de preferência à noite.

Primeiro é um barulho ciciante que parece vir de todas as direções, cada vez mais alto; então escutamos o tamborilar das primeiras gotas no vidro da janela, e logo é um verdadeiro jorro de água que fustiga o vidro. Pelo meio-fio desce a enxurrada marrom onde passam velozmente galhos, sacos plásticos, latas amassadas.

A chuva lava o mundo lá fora, e o ruído da chuva parece que lava a gente aqui por dentro, como uma ducha fria em tarde quente, arrastando até o último grão de poeira em nossos cabelos e em nossa pele.

A chuva lembra à gente que o mundo está vivo. Numa hora qualquer de sol ou de noite aberta, a gente até pensa que está num lugar morto, numa espécie de Marte que ainda não virou deserto mas onde a Natureza não existe mais. Durante um temporal, contudo, não há como não perceber que aquilo é uma espécie de voz dizendo alguma coisa.

Quando chove estamos escutando, como diria Stanislaw Lem, “uma sinfonia que cria a si mesma”, a música que o mundo tocava para si mesmo antes de ser habitado por criaturas que produzem sons com instrumentos inventados. A chuva nos diz algo que só entendemos aqui, no escuro, à luz dos relâmpagos e ao som dos trovões, no calor aconchegante de quem retornou a águas antigas.






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