quarta-feira, 26 de março de 2008

0297) A história invisível (3.3.2004)





(Sótão do Willard Psychiatric Center. Foto de Lisa Rinzler)


Nestas últimas décadas surgiu o que se tem chamado de “história da vida privada”, “micro-história” e que eu gosto de chamar de “história invisível”. É a história das pessoas comuns, que não deixaram marcas numa História sempre voltada para o estudo dos reis, generais, presidentes, ministros, grandes industriais e grandes financistas. 

Parece ter brotado na mente nos historiadores a noção de que as pessoas comuns também existem, também são reais – assim como há alguns séculos começou a surgir na mente dos líderes religiosos a noção de que as mulheres, os índios e os negros também tinham uma alma imortal conferida por Deus, e não apenas os homens brancos e civilizados.

Histórias dessas vidas anônimas que não deixaram traços no mundo podem ser vistas numa exposição que o “Village Voice” cobriu recentemente, intitulada “Casos Perdidos, Vidas Resgatadas: Malas do Sótão de um Hospital do Estado”. 

Aqui:
https://www.villagevoice.com/2004/01/20/what-they-left-behind/

Tudo começou quando em 1995 o curador do Museu Estadual de New York, Craig Williams, soube que o Centro Psiquiátrico Willard estava para ser desativado. O hospital psiquiátrico tinha mais de um século, e ele pensou que poderia encontrar móveis antigos, etc. 

Em vez disso, encontrou no sótão do Hospital cerca de 400 malas com os pertences pessoais de pessoas que ali tinham sido internadas: roupas, fotos, documentos.

Williams passou os anos seguintes mergulhado nesse material e extraiu dele a exposição, onde a história de doze dessas pessoas é recontada. Todas já falecidas, e em nenhum caso foram localizados herdeiros ou parentes. 

O “Village Voice” ilustra quatro desses casos, histórias emocionantes de vidas destruídas pela loucura ou jogadas-fora pela incompetência médica. 

Há a história de Madeline C., uma francesa educada na Sorbonne, que ensinou literatura em várias partes dos EUA. Desempregada durante a Depressão, foi levada ao Willard porque dizia ser capaz de ler mentes: só saiu de lá aos 79 anos, devastada pelos medicamentos que lhe deram.

Há a história de Lawrence M., que foi considerado doido por ter sido ouvido cantando hinos, e dizendo ter falado com deus e os anjos. Pode ter sido uma carraspana; mas foi internado, e na velhice acabou tornando-se o coveiro do hospício, tendo sepultado mais de 600 colegas. 

Há a história de Dmytre Z., ucraniano, que após a morte da mulher entrou em delírio paranóico, acreditando estar noivo da filha do presidente Truman. O Serviço Secreto o enviou para o Willard. 

E Frank C., que foi mal atendido num restaurante, começou a quebrar coisas, e foi internado como doido. Morreu no hospício aos 74 anos. Sua mala continha fotos suas quando soldado, uma pequena bandeira americana, um manual militar e um uniforme do Exército americano, impecavelmente passado e dobrado. 

Vidas como a minha e a sua: lenha que alimenta a fogueira da História, e vira cinza, fumaça e luz.




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