segunda-feira, 10 de março de 2008

0199) O delírio quantitativo (9.11.2003)



Meu primeiro contato com o Livro Guiness dos Recordes foi na infância remota, quando apareceu em Campina Grande um ciclista anunciando que iria passar 24 horas (ou 48?) andando de bicicleta, sem parar para nada. Campina inteira amontoou-se na Praça da Bandeira, que ele circulou alguns milhares de vezes, sob chuva e sol, até completar o prazo anunciado. Eu era pequeno, e tenho a vaga lembrança de um sujeito com roupa amarela e preta, e um capacete diferente dos que usam os motoqueiros de hoje.

Foi um contato indireto: o Guiness não tinha nada com aquela história, mas foi um contato com o conceito de Limite aplicado às façanhas físicas em geral. Até que ponto é possível alguém fazer tal e tal coisa? Quando tempo pode um maluco aguentar sem comer, suspenso numa gaiola transparente sobre o Tâmisa? Quantos quilos alguém levanta? Quanto tempo alguém fica sem dormir? Quantos chopes toma? Quantas milhas corre? Quantos gols, ou pontos, ou cestas, ou xeque-mates, ou títulos, ou prêmios, alguém consegue? Cada atleta faz sua tentativa e dá sua resposta: “É tanto.” E, como cada Olimpíada nos mostra, a cada ano aparece gente dando respostas que adiantam esse limite um milimetrozinho mais.

Não pratico esportes, o que é um grave defeito. Vejo na TV, onde o esporte é reduzido a um exercício mental. Sou contemporâneo do milésimo gol de Pelé, dos 11 gols num jogo só de Dario Peito de Aço, da quebra da barreira dos 10 segundos nos 100 metros rasos, da nota 10 de Nadia Comaneci, da interminável luta de Sergei Bubka quebrando suas próprias marcas. O ser humano não tem limites. Imagino que nunca ninguém chegará a correr 100 metros rasos em um segundo, mas é um problema da Física, da Biologia. Se dependesse só do espírito humano, da obstinação humana, conseguiríamos.

O problema com o Guiness é que esse senso arrebatador, épico, do Limite atlético, fica meio absurdista aplicado a outra coisas. Um cara quer ser o cara que comeu mais hot-dogs sem fazer pausa; outro que ser o que barbeou mais fregueses; outro quer bater o recorde de dançar rumba, outro o de ficar numa banheira, outro o de latir imitando cachorro, outro o de jogar malabares com garrafas de vinho. Estou inventando isto tudo, mas quanto quer de aposta que já existem?

A façanha atlética gera subprodutos: melhores técnicas de treinamento, dietas, equipamentos aperfeiçoados, novos softwares de avaliação física. Mas o recorde de jogar tortas num manequim, dia e noite, só pode gerar lucros para uma confeitaria. O delírio quantitativo é uma das alucinações coletivas mais poderosas de nossa civilização. Talvez seja um mal necessário, ou uma deformação inevitável. E não me refiro a coisas de fundo ético e moral como a ambição financeira. O delírio quantitativo é uma droga pesada. Não tem outro fim além de si mesmo, e o cara sempre acha que da próxima vez pode ir um milimetrozinho mais longe.


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