segunda-feira, 10 de março de 2008

0178) O livro e a criança (16.10.2003)






("Crackers in Bed", de Norman Rockwell)




Como incutir o hábito de ler numa criança? Pense num problema da maior gravidade! Um pouco ritual de ritual às vezes funciona. Fazer a criança tomar banho, vestir o pijama, e passar meia hora lendo antes de ir dormir; desligar a TV; ter uma poltrona e uma luz específica; tudo isto é interessante, cria uma expectativa, cria um clima propiciatório, e criança geralmente gosta disso (desde que não esteja sendo obrigada).

O problema é que algumas crianças acabam levando a leitura tão a sério que se distanciam dela. O livro passa a ser uma coisa especial, para ser manuseada em ocasiões especiais. E a leitura vira às vezes uma atividade decifratória que não pode deixar lacunas. Já vi (em casa inclusive) inúmeros exemplos de criança que empanca num livro por causa de uma palavra, e dali não passa. “Paaai... o que é begônia?” “Acho que é uma flor.” “De que jeito? De que cor?” “Não tenho a mínima idéia.” Impossibilitada de assimilar a begônia, a criança tem a leitura travada. Como seguir adiante, deixando para trás esta importantíssima pergunta não respondida? Vai o livro para o tapete, e a criança para a televisão.

Minha lei é: menos respeito! Devemos aprender a dar de ombros. Não entendeu, paciência, pula e segue em frente. É assim que eu leio, até hoje inclusive. As palavras sempre voltam, e cada vez que voltam trazem consigo uma pistazinha a mais sobre si próprias. Ainda hoje me lembro dos livros de ficção científica em que vi pela primeira vez palavras como “esporos”, “catalisador”, “mutante”. Deduzi pelo contexto, aos poucos, mas fui em frente.

Não entendeu um capítulo? Pula para o próximo. Deveríamos ter com os livros a mesma relação descontraída que temos com as telenovelas, onde mesmo tendo perdido uma dúzia de capítulos logo sabemos o bastante para seguir em frente. Caetano Veloso comparou certa vez a diferença de comportamento, nos cinemas, entre o público francês e o americano. O francês, concentrado e reverente, parece estar na Ópera; o americano, rindo e comendo pipoca, parece estar no Circo. Acho que um pouco de cada atitude, no momento certo, também ajuda a gente ao longo das idas-e-vindas que a leitura de qualquer livro implica.

Gosto de ler riscando, sublinhando, anotando. Amigos bibliófilos um dia me alertaram que desse jeito posso estar desvalorizando em definitivo uma edição rara. Depois disso, deixo minhas primeiras edições na estante, mas compro uma edição atual do mesmo livro, para poder passar-lhe a caneta sem dó nem piedade. Um livro é um objeto de trabalho, algo para ser tratado sem muita cerimônia. Como as crianças são depredadoras por natureza, não podemos dar rédea livre, mas é sempre bom explicar-lhes que livro é um brinquedo para se brincar com os olhos. Deve-se entrar neles por todos os lados, frequentá-los a qualquer hora, abri-los sem esperar nenhum milagre mas pronto para recebê-lo caso ele aconteça. Sé é livro de verdade, acaba acontecendo.

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