Um dos começos mais famosos da literatura é o de L. P. Hartley em seu romance The Go-Between (1953), belamente filmado por Joseph Losey (“O Mensageiro”, 1971).
O Passado é um país estrangeiro. Lá eles fazem as coisas de um jeito
diferente.
O Brasil de 1977 é o país estrangeiro visitado por Kleber
Mendonça Filho em O Agente Secreto (2025).
É um filme sobre a ditadura militar onde os militares praticamente não aparecem.
E onde se confirma o ditado popular: “O grande
problema nas ditaduras nem é o ditador: é o guarda da esquina”. Porque os guardas-da-esquina,
percebendo o novo estado de coisas instaurado pela ditadura, passam a adotar
seus métodos, em benefício próprio.
Esta premissa é estabelecida na primeira sequência do filme, em que “Marcelo”, o personagem de Wagner Moura, é pachorrentamente achacado por um policial rodoviário, que ignora um cadáver ao lado, exposto aos cães, mas espreme o motorista do fusca até conseguir extrair dele meio maço de cigarros amassados. Não tinha colírio para dizer um “pinga aqui”.
Minha sorte foi ter ido ver o filme sem saber nada dele,
a não ser um trailer com aquela cena onde um cara aborda Wagner dizendo: “Você
é policial?...” “Não, não sou policial.” “Tem cara de policial. Como é seu
nome?” “Marcelo.” “Marcelo de que?”
“Alves.” “Nome de policial.” “Eu não sou policial.”
(Wagner Moura e Kleber Mendonça Filho)
Já li uma porção de textos sobre o filme, e algumas
centenas de comentários. Percebo que muita gente acha o filme “lento”, acha que
as coisas demoram a acontecer... Marcelo é um cara que está se escondendo, isso
fica claro desde cedo. E em termos dramatúrgicos é importante (penso eu) que a
gente só vá saber exatamente quem é ele, e por que se esconde, lá para uma hora
de filme.
O escondimento é o traço principal do personagem. E do
ambiente onde ele, por isto mesmo, vai parar.
Marcelo vai morar num pequeno prédio, num daqueles
edifícios tão palpáveis, tão reais, de que a cidade cinematográfica de Kleber
está cheia (O Som ao Redor e Aquarius, principalmente, são filmes sobre prédios, vizinhanças,
espaços de moradia, e mostram formatos arquitetônicos subliminarmente
recifenses e brasileiros).
É o prédio dos refugiados, o prédio das histórias pela metade. Há alguns angolanos fugidos da guerra civil. A moradora anterior do apartamento foi assassinada pelo marido. Ninguém comenta. Sabe-se das histórias a meia-boca, um pedaço aqui, outro ali.
É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco. (...)
No beco
apenas um muro
sobre ele a polícia.
No céu de propaganda
aves anunciam
a glória.
No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos.
(Carlos Drummond, "Nosso Tempo", em "A Rosa do Povo", 1945)
O poema de Drummond é do tempo da ditadura Vargas. Quando acontecem
os fatos de O Agente Secreto, esse já
era um passado distante, mas... e daí? Disseram uma vez a William Faulkner que
parasse de falar do Passado, que o Passado tinha morrido, e ele respondeu: “O
Passado não morreu. Na verdade, ele nem sequer passou.”
Cada onda ditatorial que varre o país e vai embora deixa atrás de si lembranças, respostas, atitudes. Entre elas, o escondimento, a meia-palavra, a história mal-contada, a versão incompleta, o documento com linhas inteiras borradas em tinta preta. (E, como consequências colaterais, as Lendas Urbanas e as Teorias da Conspiração.)
O escondimento é o traço principal da uma época de repressão, de perseguições gratuitas, de vendetas pessoais que ficam impunes. Uma época em que um presidente da República tinha um AVC, ficava inválido, e a imprensa não podia noticiar. Ou em que um dos jornalistas mais conhecidos da grande imprensa era “suicidado” e ninguém podia escrever a respeito. Tudo se esconde, se deixa não-dito, vai para baixo do tapete. E depois, se esquece. O esquecimento é também uma forma de esconder alguma coisa.
Embora Armando-Marcelo possa ser visto como herói ou como
vítima, ele é um personagem que tem lá suas transversais. “Eu sei usar um
martelo”. Ele seria capaz de se vingar brutalmente do homem que o persegue, se
tivesse a chance. E no momento de confessar isso, ele desliga o gravador, usa a
seu favor o direito à censura, ao ocultamento.
Ele traiu a esposa Fátima, quando ela era viva? O pai
dela lhe pergunta a certa altura: “Quando minha filha estava viva, você
raparigou?”. Armando é um rapaz direito. Não custava nada mentir: “Que é isso,
Seu Alexandre, eu sempre fui 100% fiel a Fátima”. Mas ele dá um drible de corpo
atrás do outro e tenta mudar de assunto. É um rapaz direito, e não quer mentir,
mas provavelmente raparigou.
Já os policiais... Há algo de vingativo no incômodo
realismo com que eles são retratados. Aquela polícia civil de peixes-miúdos, da
lumpen-direita, aquele exército anônimo de homens rancorosos, covardes,
defendendo-se mediante uma jovialidade excessiva, agregando-se em pequenas
máfias de mútuo apoio para descolar uma propina ou um cala-a-boca. Sabem-se
fracos e por isso apegam-se a quem detém o Poder. Serviram a ditadura militar,
e se aqui porventura baixasse um dia uma ditadura comunista, seriam eles os
primeiros à sua porta, ansiosos para prender e matar em nome dela.
E os pistoleiros terceirizam tudo. O Brasil é sempre o
país da violência terceirizada: cada encarregado de um crime embolsa o
dinheiro, e paga uma fração desse cachê a outro, que passa a outro, até chegar
num peixe-miúdo que não tem para quem passar adiante, e que de alguma maneira não faz aquilo só por dinheiro, ou por ódio pessoal: faz pelo prazer de matar, de dizer
“fui lá e fiz, sou foda”.
Tenho visto algumas queixas em relação ao filme, e muitas
poderiam ser traduzidas assim: “Eu fui pensando que era um filme tipo
espionagem, mas é um filme sobre um cara assustado, que não reage, não faz
nada, fica fugindo o tempo todo...” Talvez o título tenha a ver com isso. Eu
gosto do título, mas para o público em geral talvez “venda a idéia” de um filme
jamesbondiano.
Um dos cartazes do filme tem três rostos de Wagner Moura, que interpreta, na verdade, três personagens.
Armando é o barbudo e cabeludo, o pesquisador de universidade pública que encara os poderosos, não leva desaforo pra casa e acaba dando murro em ponta de faca.
“Marcelo”, de bigodinho e cabelo curto, o gato escaldado, calmo por fora, mas por dentro sempre em guarda, fugido, refugiado, sem ter a quem apelar.
E Fernando, o filho, clean-cut kid, reservado, distante, comentando mais sobre os avós paternos do que sobre os pais, e diz à pesquisadora, sem espanto: “Você lembra do meu pai mais do que eu”. Ele está em paz, sereno, simpático, rosto limpo, jaleco branco. Ele é uma casa bacana construída em cima de um sumidouro.
Assisti o filme já há alguns dias e ele ainda me inquieta: o que é sempre uma qualidade dos grandes filmes.
ResponderExcluirEu sempre fico buscando sentido em cada escolha do roteiro e da direção, aí acabo vendo o que não existia nas intenções de quem fez, é um risco, por exemplo: são várias cenas em que alguns personagens parecem flagrados pela câmera (uma das fotos do seu texto traz um exemplo), olhando todos ao mesmo tempo para o mesmo ponto, encarando a plateia?
Você acha que existe algum significado na escolha da profissão do filho de Armando/ Marcelo, o redentor?
Saiu “anônimo”, secreto como a agente, mas sou eu, Alana.
ExcluirAlana, sobre a profissão: Kleber tem um fascínio (e eu tb) pelos velhos cinemas de rua do Recife. Se ele diz que aquela clínica-hemocentro é no local onde havia o Cine Boa Vista (onde EU já vi filmes -- na região da Praça Chora Menino, aliás o local onde nasceu Lenine), compro como verdade. Ele talvez quis usar (magino eu) a clínica como locação, por esse motivo. O mais óbvio é inserir um personagem médico, isso talvez ajudou a criar o futuro do menino Fernando: virou médico.
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