quarta-feira, 28 de maio de 2025

5181) Al Pacino, o ator e o improviso (28.5.2025)



 
Um programa que eu não perdia no antigo Canal Multishow (ou seria no antigo GNT?) era Inside the Actor’s Studio, aquele talk show comandado por James Lipton. Um papo sobre cinema e teatro, com atores, atrizes, diretores, etc., num palco, diante de uma platéia cheia de estudantes de teatro. 
 
Os melhores conselhos do teatro são os que a gente pode aplicar na literatura, assim como os melhores da pintura são os que a gente pode aplicar no cinema, e assim por diante. Isto não é uma verdade científica, é claro. É apenas uma frase-de-efeito para sugerir que a mão da gente pode até estar tocando numa árvore, mas é obrigação do olho enxergar a floresta. 
 
Al Pacino, entrevistado por Lipton (o programa hoje está no YouTube, com legendas em inglês que o algoritmo improvisa na hora), lembra seus primeiros trabalhos juvenis sob a direção de Lee Strasberg, um dos criadores do Actor's Studio.

É interessante lembrar que Strasberg aparece no Poderoso Chefão 2, encanecido, comedido, exato.



(Lee Strasberg e Al Pacino, O Poderoso Chefão 2)

 
E ele recorda alguns conselhos que recebeu do mestre.
 
PACINO – Ele me ensinou também uma coisa que nem sempre eu me lembro de por em prática... e que eu considero algo valioso, e que eu esqueço, às vezes... e eu gostaria que ele estivesse por perto para me lembrar. Ele dizia: “Às vezes, não vá o mais longe que pode.” 
 
LIPTON – Fique firme em você mesmo. 
 
PACINO (concordando) – Fique firme em você mesmo. Exatamente. 
 
O que significa esse “não vá o mais longe que pode”? Pode ser uma porção de coisas, mas no momento o que me vem à cabeça é algo como: “Não passe do ponto”. Ser criativo é ótimo, mas tem um ponto, e não passe do ponto. Ser emocionalmente intenso é ótimo, mas não passe do ponto. Ser cerebral? Beleza, mas não passe do ponto.  
 
Trago isso para a literatura porque um escritor está sujeito a duas catástrofes, a do bloqueio criativo e a da incontinência criativa, se bem me exprimo. É quando a criação verbal encontra o tom certo, o diapasão certo, o fluxo certo, mas aí o escritor se entusiasma consigo mesmo e não consegue conter o fluxo. Pelo contrário: ele se desdobra na tentativa de manter o fluxo por duas páginas, doze, vinte.  
 
E nem sempre é o que o texto está pedindo. Não há regra para isto, todo texto é diferente, e não há duas noites-de-trabalho iguais. Não tem como passar uma receita precisa. É preciso sentir onde é o ponto de dizer “chega, tá bom, vamos para o próximo”. 




Você fazer essas coisas é como fechar uma caixa de fósforos: você vai empurrando a caixinha de dentro, a que guarda os palitos, até encaixá-la na caixinha de fora... E aí pára. É esse o ponto. Se continuar empurrando, a caixa dos palitos sai pelo outro lado. 
 
Não passe do ponto. O que às vezes é pedir muito para um ator ou atriz, que trabalha com o corpo – o rosto, as mãos, os olhos, a voz, esse repertório de partes traiçoeiras que passamos a vida tentando manter sob controle, tentando evitar que nos traiam. 
 
Vale para os escritores, sim, e mesmo os melhores dentre eles passam do ponto, às vezes. Eu afirmo (polemicamente) que o ponto alto da obra de James Joyce é o Ulisses, e com Finnegans Wake ele passou do ponto. Afirmo que o ponto alto da obra de Guimarães Rosa é Grande Sertão: Veredas, e que com Tutaméia ele passou do ponto. Neste último caso, chamo ao banco das testemunhas um roseano insuspeito, o mestre Ariano Suassuna, para quem Tutaméia parecia “amaneirado”. 
 
Isso quer dizer que são livros ruins? De jeito nenhum. Tutaméia entra em qualquer lista dos melhores livros de contos da literatura brasileira. Mas é um livro onde o autor (compreensivelmente atarantado por problemas de demarcação de fronteiras, de saúde e tudo o mais) destilou tanto a si próprio que passou do ponto. 
 
O conselho de Lee Strasberg tem a ver com uma certa duplicidade de visão que o grande ator e a grande atriz conseguem manter: a capacidade de, no “quente” da cena, serem cem por cento O Personagem, e ainda terem espaço para uns 50% de si mesmos, aquele controle distanciado que não lhes permite “passar do ponto”. 



(Al Pacino em Dick Tracy)
 

Aquele sexto ou sétimo sentido que faz o ator de teatro, mesmo numa briga de faca, saber sempre em que direção está a platéia, e o ator de cinema, mesmo numa cena de sexo, saber exatamente onde estão as duas ou três câmeras presentes, e que provável enquadramento cada uma está usando. 
 
É difícil? Olhe, deve ser, por isso não quero ser ator. Mas, para mim, muito mais difícil é dirigir automóvel e conversar ao mesmo tempo, e as ruas estão cheias de gente fazendo isso. 
 
É um olho no gato e outro no peixe, como diz o ditado, e se não é assim digamos: é um olho na estrada e outro no retrovisor. Somente com esse grau de entrega e de distanciamento (cada um puxando numa direção oposta) é possível despejar um vesúvio de emoção e ao mesmo tempo impedir que a montanha se desmanche toda. 
 
Isto tem tudo a ver, também, com o improviso do ator, esse momento delicado onde ele, por mais que “saiba suas linhas” (conheça de cor suas falas), se joga no ar como um trapezista que pula sem saber se tem trapézio livre no lado oposto. 
 
Sobre O Poderoso Chefão, Lipton pergunta a Al Pacino: 
 
LIPTON – Francis [F. Coppola] é famoso pelo amor que tem ao improviso. Ele encorajava isso, nos filmes da série Godfather
 
PACINO – Sim, mas às vezes você precisa ter muita informação para improvisar. E eu não recomendaria começar pelo improviso. Eu aconselharia: faça depois de você estar conhecendo melhor o material. 
 
Parece a minha conversa, meio século atrás, com um dos repentistas do programa “Retalhos do Sertão” na Rádio Borborema. Eu perguntei (hoje não lembro se foi a Santino Luís ou a José Gonçalves): “Qual é a primeira coisa que um repentista precisa ter?”. Eu pensava que a resposta seria algo tipo “rapidez de raciocínio”, etc. Ele respondeu: “Boa memória”. E questionei: “Mas a boa memória não serve para criar de improviso, serve para repetir”, e ele disse: “Não, a memória serve para você ter onde buscar”. 
 
Para você ter onde buscar, você tem que se impregnar de todo tipo de material relativo ao personagem e à história. Pacino diz que quando foi fazer o personagem de Satã em O Advogado do Diabo (Taylor Hackford, 1997) passou a devorar tudo a respeito. Inclusive ler o Paraíso Perdido de John Milton (1667). Isso serviu ao filme? Diretamente, não, mas indiretamente, quem sabe? 
 
PACINO – É isso que eu digo: osmose. Você penetra numa certa coisa e começa a acumular todo o material daquilo para dentro de você. Eu sempre recomendo aos atores: absorvam a maior quantidade possível de material, porque assim você vai ficando cada vez mais distante das palavras, e mergulhando no comportamento e em tudo o mais, e isso penetra em você, e é absorvido pelo seu inconsciente... E se tudo corre bem, isso encontra um canal de saída, e pode resultar em todo tipo de momentos interessantes. 

 




Lipton evoca o filme Sea of Love, onde Pacino contracena com Ellen Barkin, e pergunta se os dois ensaiaram por conta própria para as cenas em conjunto. 
 
PACINO – Sim, nós chegamos mesmo a improvisar em algumas cenas. Essa é uma coisa boa que os filmes têm, e pode significar muito para alguém. Se você improvisa numa cena, e grava isso em fita, e aquilo é transcrito... E se você tem conhecimento dos personagens que vocês estão interpretando, e você improvisa, honestamente, numa situação particular... põe os dois personagens naquela situação e simplesmente improvisa. 
 
É bom ter em mente, ouvindo essa menção a “gravar em fita”, que Sea of Love é de 1989, quando os filmes ainda eram rodados no caríssimo celulóide. Para que servia a fita magnética? Para gastá-la com improvisos que muitas vezes demoram horas inteiras e não levam a lugar nenhum, vão direto para o lixo, mas outras vezes descobrem, no calor da improvisação, caminhos (de texto, inclusive) que não teriam ocorrido nem ao dramaturgo nem ao diretor. 
 
O improviso, no ensaio de teatro ou de cinema, é regido por esta mandamento: “Anote, e incorpore”. Mil bobagens serão ditas e serão feitas, mas sempre que alguma coisa realmente boa aparecer, anote na memória (ou no papel) e incorpore à cena. 
 
Não é muito diferente a reflexão do nonagenário Zé de Cazuza, o homem-gravador das cantorias do Vale do Pajeú. Zé de Cazuza diz, sensatamente: 
 
“Todo mundo improvisa. O poeta, o que escreve no papel, muitas vezes está também inventando na hora, está criando em questão de segundos, no calor do improviso. Qual é a diferença dele para o cantador de viola? É que ele pode voltar atrás e corrigir o que não gostou. E o cantador não pode.” 


 


(Al Pacino, "Shylock", em O Mercador de Veneza
 
 
 
 



quinta-feira, 22 de maio de 2025

5180) A catástrofe nos salvará? (22.5.2025)




 
“Somente a catástrofe nos salvará” – é uma frase-meme que circula há anos pelas redes sociais. Não lhe conheço a origem. Se pesquisar um pouco talvez descubra que precede a Revolução Francesa. Indo mais longe, talvez a descubra no incêndio de Lisboa ou na queda de Constantinopla. Enfim: diz a sabedoria popular que a crise de uns é a oportunidade de outros. (Ou será a sabedoria corporativa? A pesquisar.) 
 
Estudando literatura policial nestas últimas semanas, me voltou a memória a história de Flitcraft, uma pequena parábola existencialista que Dashiell Hammett infiltrou num romance policial, O Falcão Maltês, de 1929. A história é contada (à guisa de exemplo) pelo detetive Sam Spade, a sua cliente Brigid O’Shaughnessy. 
 
Flitcraft é um sujeito pacato que desaparece de repente. Contabilista, bem casado, dois filhos, situação financeira confortável. Foi trabalhar de manhã e nunca mais voltou. A polícia passa o pente fino no Estado inteiro, e nada. Alguns anos depois, Sam Spade é contratado pela esposa-quase-viúva para averiguar uma pista. Alguém acha que avistou Flitcraft em outra cidade, e o detetive vai conferir. 
 
É o próprio, vivinho da silva. Pressionado, ele confessa a Sam Spade que estava com a vida encaminhada, tranquila, feliz, mas um dia, ao sair do trabalho para almoçar, uma viga de aço despencou de um décimo andar e espatifou o calçamento, um metro à frente dele. Flitcraft entendeu que não morreu por um triz, e o seu mundo – firme, confiante, protegido por forças invisíveis – desabou. 
 
Sua reação foi fugir como se tivesse morrido naquele instante. A família tinha posses, estava amparada. Mas a vida, como um todo, tinha perdido o sentido. Ele ficou zanzando pelo país, acabou se fixando noutra cidade, arranjou outro emprego, voltou a casar. Mas não era mais a mesma pessoa. A queda da viga, que não o esmagou por distância de um passo, teve um efeito revelador do Absurdo da existência humana. Diz o detetive: “Foi como se alguém tivesse levantado a tampa da vida, e revelado seu mecanismo”. 
 
A catástrofe (ou quase-catástrofe) salvou Flitcraft?  Depende do ponto de vista. Um sujeito de persuasão religiosa veria na queda da viga um mero aviso e a confirmação de que “somebody up there likes me”. Mandaria rezar uma missa em ação de graças, e passaria a viver mais feliz do que antes. A questão é que Flitcraft já era (posso especular assim) um indivíduo vulnerável ao Absurdo. Alguém que já desconfiava ser a vida (como dizia Carlos Drummond) “um vácuo atormentado, um sistema de erros”, e precisava apenas de um gatilho ou de uma fagulha para mandar aquilo tudo pelos ares. 



 
Flitcraft é um herói absurdo, como o Meursault de Albert Camus (O Estrangeiro, 1942), que causa a própria catástrofe ao abater um rapaz a tiros na praia, sem motivo algum além de precipitar o próprio enforcamento. Ou como o narrador de A Queda (1956), do mesmo Camus, que é um perfeito cidadão de bem, pilastra moral da sociedade, até a noite em que vê uma mulher pular no rio durante a madrugada, e não faz nada para salvá-la – e a partir daí começa a perceber que não passa de um covarde e um calhorda. E fica feliz com essa auto-descoberta. 
 
A catástrofe talvez não salve mas sirva de espelho para que um indivíduo finalmente saiba quem é. Como dizem os soldados, é só na hora do bombardeio que alguém descobre se é corajoso ou não. 
 
A felicidade, ou a aparência dela, pode ser apenas um verniz ilusório para nos convencer de que o mundo faz sentido. Não faz. Ou talvez faça, mas num plano a que não temos acesso. No filme The Matrix (1999), o herói tem a opção de continuar iludido, vivendo numa metrópole capitalista, moderna e normal, ou tomar a pílula que lhe revela a Realidade tal como é. O verdadeiros mecanismos por baixo da tampa, como dizia Sam Spade. 



 
O escritor Haruki Murakami ficou chocado, como o mundo inteiro, com os atentados ocorridos em 1995 no metrô de Tóquio, quando os fanáticos da seita apocalíptica Aum Shinrikyo envenenaram milhares de pessoas com gás “sarin”, provocando dezenas de mortes. O choque provocado por essa catástrofe fez Murakami entrevistar dezenas de vítimas e alguns dos terroristas, o que resultou no livro Underground, onde ele diz: 
 
Eu creio que todo japonês tem uma visão do mundo apocaliptica, um sentimento de medo invisível, inconsciente.  A sociedade é a base da vida das pessoas e elas não sabem o que vai acontecer com essa sociedade. Portanto, a idéia de “O Fim” é um dos eixos em torno dos quais a Aum Shinrikyo girava.
 
Não há como não ver nisso um reflexo do trauma da bomba atômica, a consciência de que em certo momento da história caiu sobre um país orgulhoso e organizado a pior catástrofe possível – uma arma de espantosa brutalidade, inventada e disparada por um inimigo impiedoso. Godzilla e outros monstros surgiram no cinema da Guerra Fria como reflexos desse pesadelo, o medo de uma força-bruta que vem para destruir às cegas. No atentado do metrô, essa paranóia ganhou uma nova face. 
 
A verdade, porém, é que essas catástrofes são sempre parciais, e mesmo que exterminem milhões elas acabam poupando milhões de outros, e para esses há sempre uma chance de sacudir a poeira e dar a volta por cima. A catástrofe não os salva, mas talvez os deixe vacinados.
 
Não é outra a filosofia por trás de muitos romances apocalípticos de FC, as famosas histórias de fim do mundo, em que o planeta é varrido por um cataclismo natural ou por uma guerra atômica, mas se reergue das próprias cinzas e acha uma forma de recomeçar, em outros termos. 
 
E, como no caso do acomodado Flitcraft, do ingênuo e cauteloso-pouco-a-pouco (no dizer de Mário de Andrade) Flitcraft, a desgraça vem para dar uma sacudida, uma renovada, um chega-pra-lá. Um abre-o-olho tão necessário a quem pensa que o mundo agora está pronto e podemos viver em paz por todos os séculos dos séculos-amém. 




No clássico The Day of the Triffids (1953), John Wyndham conta como uma chuva de meteoros fez com que 90% da humanidade ficasse cega da noite para o dia. E não somente cega, mas à mercê das “trífides”, plantas venenosas, carnívoras e que são capazes de caminhar. Parece calamidade demais para uma humanidade só, mas a certa altura o protagonista e narrador Bill Masen afirma: 
 
(...) O que algumas vezes me parecera uma existência vazia estava se tornando agora uma vantagem. Meus pais estavam mortos, minha única tentativa de casamento tinha fracassado poucos anos antes, e não havia nenhuma pessoa que dependesse especialmente de mim. E, curiosamente, descobri que o meu sentimento principal – e eu sabia que deveria estar sentindo o contrário – era de alívio... 
 
Não era só o conhaque, porque esse sentimento persistiu. Acho que deve ter surgido da sensação de estar me defrontando com uma situação nova e inédita para mim. Todos os velhos problemas, todos os contratempos triviais, tanto pessoais quanto coletivos, tinham sido decepados com um só golpe. Só Deus sabia que outros golpes poderiam sobrevir – e tudo indicava que seriam muitos – mas seriam novos. Eu estava me erguendo no meio de tudo aquilo como alguém dono de si mesmo, e não um parafuso numa engrenagem. Talvez o mundo que eu estava prestes a enfrentar estivesse cheio de horrores e de perigos, mas eu poderia contar comigo mesmo para encará-los – não estaria sendo empurrado de um lado para outro por forças e interesses que eu não compreendia e que não me interessavam. 
(The Day of the Triffids, cap. 3, trad. BT)
 
Fala-se por aí que é mais fácil destruir o mundo do que acabar com o Capitalismo. São dois apocalipses. Talvez seja preciso aceitar o primeiro para poder ter direito ao segundo. 
 
 




quinta-feira, 15 de maio de 2025

5179) A mãe do escritor (15.5.2025)




(Cornell Woolrich e sua mãe Claire)

 
Na tarde chuvosa e cor-de-chumbo deste domingo recente, passei algumas horas folheando livros e anotações, preparando aula para um curso. Aproveitei para reler algumas páginas sobre Cornell Woolrich (1903-1968), um dos meus autores preferidos naquele subgênero que chamamos de “romance policial noir”. 
 
Os livros de Woolrich já foram filmados por Alfred Hitchcock (Janela Indiscreta), François Truffaut (A Noiva Estava de Preto), Robert Siodmak (A Dama Fantasma), Rainer Werner Fassbinder (Martha) e muitos outros. Geralmente são histórias sobre pessoas comuns que acabam se envolvendo, sem querer, em crimes ou em situações de perigo. Histórias de medo e angústia, e de mistérios que nunca são suficientemente esclarecidos. 



(Edward Hopper, "Nighthawks", 1942) 


Por exemplo Deadline at Dawn (1944, sob o pseudônimo “William Irish”) um de seus romances mais típicos. Na Nova York indiferente e brutal, um rapaz conhece uma moça que trabalha num salão de dança. Ao longo de poucas horas, os dois descobrem que são da mesma cidadezinha do interior; que odeiam a metrópole; e tudo que queriam na vida era voltar para lá. Gostam um do outro. Confiam um no outro. Decidem voltar para lá, juntos. 
 
Então... acontece um crime e o rapaz é acusado. Os dois fogem, pela madrugada deserta, improvisando-se como detetives para descobrir quem cometeu aquele crime e limpar a barra do rapaz. Porque (bem à maneira de Woolrich) eles pactuam um “vamos-combinar” segundo o qual eles só conseguirão fugir se pegarem o primeiro ônibus ao amanhecer. Se não, estão perdidos. 



É uma história de corrida-contra-o-relógio. O livro inteiro transcorre ao longo de uma madrugada interminável; eles esbarram em acasos, beneficiam-se de coincidências, confundem-se sem necessidade, mas, bem ou mal, fazem o leitor torcer por eles, porque são ingênuos e sinceros, e merecem escapar daquele inferno. 
 
Os livros de Woolrich eram histórias de suspense sem o cerebralismo dos filmes de Hitchcock. Ele escrevia com a intuição, e seus enredos são às vezes desconjuntados, improváveis, implausíveis, sentimentais, mas sempre hipnóticos. 
 
E me lembrei também que Woolrich viveu quase a vida toda com a mãe, Claire, morando em hotéis. Era, segundo seu biógrafo Francis M. Nevins, um gay não-assumido; esta versão tem sido contestada. Teve um breve casamento, que não deu certo, com a filha de um produtor cinematográfico. A mãe lhe fez companhia; viveram juntos até que ela morreu, quando ele estava com mais de 50 anos. Daí em diante, sua vida virou uma espiral descendente de alcoolismo e doença. Morreu sozinho, alcoólico, com uma perna amputada, e tinha quase um milhão de dólares no banco. 
 
Uma tentativa de resgatar sua vida (muito pouco documentada) está neste artigo: 
 
https://crimereads.com/do-people-really-know-what-they-think-they-know-about-cornell-woolrich/
 
(Robert E. Howard)

 
Mais radical que ele foi Robert Howard, o criador de “Conan, o Bárbaro” e de uma obra imensa nos campos do terror, da ficção científica e da aventura. Howard também morava com a mãe, numa cidadezinha no interior do Texas. Escrevia com inspiração e fúria, tendo começado a publicar profissionalmente ainda muito novo. A mãe dele, Hester, era uma mulher culta, que lhe transmitiu o amor aos livros e o incentivou a escrever. Ela foi tuberculosa durante a maior parte de sua vida adulta; quando entrou em coma definitivo, em junho de 1936, Robert se matou com um tiro de revólver. Tinha trinta anos de idade. 
 
Isto me trouxe à lembrança o caso parecido, mas mais longevo, de Jorge Luis Borges.  Borges também morou com a mãe, D. Leonor Acevedo, que cuidou dele após a cegueira. Foi a mãe (que faleceu aos 99) quem o acompanhou em numerosas viagens internacionais. Culta, poliglota, voluntariosa, pela vida inteira ela tomou conta do filho cego, com orgulho e desafio. 
 
Borges teve um casamento breve e frustrado, entre 1967 e 1970, com Elsa Astete, uma socialite buenairense que foi sua namorada de juventude. Era uma relação nada-a-ver, condenada ao fracasso. Os amigos organizaram uma conspiração para separá-los e Borges voltou a morar com D. Leonor até a morte dela, quando ele já ia completar 75 anos. Conta-se que no seu velório uma amiga murmurou: “Coitada, faleceu sem ter completado os 100 anos.” E Borges respondeu: “Vejo que a senhora é adepta do sistema métrico decimal”. 
 


(Borges e D. Leonor Acevedo)

 
Borges, cego, precisava da companhia de alguém, e a timidez quase doentia sacrificou sua vida sentimental. A presença protetora da mãe o envolveu num casulo de autoridade e segurança,. Isto lhe permitiu viajar pelo mundo e aproveitar a fama tardia, que só lhe chegou após os 60 anos.
 
A lembrança de Borges me conduziu à lembrança de H. P. Lovecraft (1890-1937), outro escritor casmurro e crepuscular. Seu pai foi internado numa clínica psiquiátrica quando ele tinha três anos, e morreu quando ele estava com oito. O pequeno Howard foi criado na companhia da mãe e de duas tias, com muita dificuldades financeiras, que ele tentou suprir a partir da adolescência, fazendo vários trabalhos ligados à escrita e redação. (Embora afirmasse que detestava escrever à máquina.)   



(H. P. Lovecraft aos 25 anos)

 
Sua mãe foi também internada numa clínica quando ele estava com 29 anos, e morreu poucos anos depois. Lovecraft continuou a morar com as tias, mas teve um breve casamento com Sonia Greene, alguns anos mais velha que ele. O casamento foi atormentado por problemas financeiros e de saúde. Sonia conseguiu empregos que a obrigavam a viajar o tempo inteiro; os dois foram gradualmente se afastando, e dois anos depois se separaram. O escritor viveu na companhia da tias até falecer em 1937. 
 
E não vejo motivo para me esquecer do caso de Raymond Chandler, cuja pai abandonou o lar quando ele era bem pequeno. Isto teve uma consequência positiva. A mãe dele, Florence, era de origem irlandesa, e levou o menino para viver com sua família, que àquela altura estava fixada em Londres. Chandler estudou em bons colégios, e quando voltou para os EUA, já adulto, trouxe Florence para sua companhia. 
 
Viveram juntos mesmo quando ele começou um caso amoroso com a que viria a ser sua esposa para o resto da vida: Cissy, uma mulher muito bonita, culta, e bastante mais velha do que ele. E a mãe era ferozmente contra o casamento dos dois, pois Cissy era uma mulher divorciada. 


(Raymond and Cissy Chandler, em 1952)

 
Diz o biógrafo Tom Hiney:
 
A mãe de Chandler morreu finalmente em janeiro de 1924. A data de nascimento de Florence é desconhecida, mas tinha certamente menos de sessenta anos ao falecer. Seu filho tinha trinta e cinco, e estava começando a construir uma pequena fortuna para si. Ele e Cissy casaram duas semanas depois, em fevereiro de 1924.  Há quem sugira que Chandler nunca soube a verdadeira idade de sua esposa, e embora seja improvável que um homem que se tornaria autor de histórias de detetive deixasse de perceber discrepâncias nos documentos da própria mulher, Cissy certamente não aparentava cinquenta e seis anos em 1924. Não tendo tido filhos biológicos, ela mantinha uma silhueta de modelo, e, de acordo com os colegas de trabalho de Chandler na empresa Dabney’s, tinha a presença sexual de uma mulher de trinta anos. 
(Raymond Chandler: A Biography, cap. 2, trad. BT)
 
Não irei me estender aqui glosando teorias como o complexo de Édipo ou a síndrome de Peter Pan; deixo a tarefa para os mais fluentes em Psicologia. O que me interessa é entender de que modo a manutenção desse cordão umbilical simbólico, longe de prejudicar esses indivíduos, provavelmente os ajudou (imagino eu) a encontrar vazão para uma criatividade intelectual intensa, aliada a uma incerteza e instabilidade emocional para enfrentar a vida adulta. 
 
Cada um ao seu modo, é claro. Borges, por exemplo, era o menos prático dos homens; mas quisera eu ter a sagacidade profissional e o tino implacável de negociador de Raymond Chandler.  Ele tinha lá suas fragilidades, mas era capaz de botar no bolso os produtores de Hollywood e ganhar os salários mais altos de sua época, salários com os quais nenhum roteirista daquele tempo tinha sonhado. 
 
E ao mesmo tempo, quando lhe perguntavam se ele “era realizado como escritor”, Chandler, que vendia milhões de livros, dizia: “Gosto dos meus romances, mas lamento nunca ter escrito nada que pudesse mostrar com orgulho à minha mulher.” 
 
Escrever é uma tarefa aparentemente cômoda – basta ficar em casa digitando textos no teclado. Essa simplicidade logística, no entanto, bota todo o peso na extremidade oposta: o esforço para domesticar o tsunami mental do momento da escrita, composto de raciocínios, lembranças, emoções, sugestões verbais, memórias visuais, pedaços de frases, referências, associações de idéias... Como já disse alguém, “basta sentar na escrivaninha e abrir uma veia”. 
 
Há quem seja capaz, homem ou mulher, de cuidar sozinho de uma casa e construir uma obra literária; mas cada casa é um caso. Virginia Woolf dizia uma mulher precisava, para escrever, de um quarto só para si, e quinhentas libras anuais de renda. Agatha Christie escrevia à mão, em cadernos pautados, na mesa em que almoçava. 
 
Escritores de ficção são como qualquer outro trabalhador intelectual.  Precisam de períodos extensos de recolhimento e concentração. Frederik Pohl dizia preferir a madrugada porque não há interrupções nem distrações, “e é possível manter pensamentos longos e consecutivos”.  
 
Às vezes vivem sozinhos, às vezes com esposas (ou maridos) que servem de barreira para que não sejam interrompidos. Ou que trancam o talentoso num quarto e o obrigam a trabalhar, como a D. Mercedes casada com Gabriel Garcia Márquez. 
 
Quando é a mãe do romancista que procede assim, temos a tendência de deduzir daí uma infância artificialmente prolongada, uma atitude pouco masculina de quem refuga a guerra da vida adulta. Pode ter algo disto, sim. Mas cada família é feliz ou infeliz ao seu modo, e para quem olha à distância, depois que as pessoas de carne-e-osso viraram pó, o que conta é o resultado literário deixado por essa convivência – mesmo oblíqua, mesmo enviesada, mesmo pouco de acordo com O Modelo. 
 
Milton Nascimento e Caetano Veloso diziam que “qualquer maneira de amor vale a pena”; o poeta Mallarmé dizia que “tudo existe para resultar em livro”, e podemos pedir-lhes emprestados os conceitos para perguntar: Uma maneira de amor que resulta em tantos livros, será que não valeu a pena? 
 
 
 
 
 







terça-feira, 13 de maio de 2025

5178) O detetive Eduardo Coutinho (13.5.2025)





O filme Eduardo Coutinho, 7 de outubro está em exibição no streaming do SESC Digital, plataforma gratuita que sempre tem muitos clássicos do século passado ao lado de produções recentes. 
 
Este registro de 2015 tem direção de Carlos Nader, fotografia de Jacques Cheuiche, montagem de Jordana Berg. Nele, alguns jovens realizadores e técnicos se reuniram para entrevistar “o maior entrevistador do cinema brasileiro”, epíteto que logo nos primeiros momentos ele descarta com um dar-de-ombros e um olhar de “mas isso de novo?”.  
 
Coutinho pede licença para fumar, e também para dizer palavrões. Diz ele que gosta de falar o caralho a quatro. E começa a se perguntar de onde terá vindo essa expressão, que é aparentada com “o diabo a quatro” (título brasileiro de uma comédia dos Irmãos Marx). 
 
Certamente (agora sou eu pensando) não vem da folha de papel A-4, que é mais moderna. Talvez venha do jogo do bicho, que tem um esquema quaternário de 25 bichos multiplicados por 4 e correspondendo a 100 números. O Avestruz é o 1. Penso eu que se o considerarmos “a quatro” ele preenche os números 01, 02, 03 e 04.  A Águia (2), por sua vez preenche o 05, 06, 07 e 08. E isso vai até o último, a Vaca, que é 25, e considerada “a quatro” preencheria as dezenas 97, 98, 99 e 00 (cem). 
 
O caralho (ou qualquer coisa) “a quatro” seria então a dezena correspondente; algo multiplicado, potencializado. Estarei viajando? Pode ser. 
 
Coutinho era um emérito falador de palavrão. O palavrão – não como ofensa, mas como desabafo respiratório. A certa altura do filme ele diz que se recebesse a melhor notícia e a pior notícia as únicas coisas que seria capaz de dizer seriam “Puta que pariu” e “Ai meu Deus”. 
 
Coutinho e Nader conversam sobre um dos princípios do cinema dele, expresso na fórmula (que Coutinho sugere já fazer parte do jargão dos documentaristas) de que o que se busca não é “a filmagem da verdade, e sim a verdade da filmagem”. Diretor, câmera e equipe não estão ali para registrar, invisivelmente, objetivamente, neutramente, a vida daquelas pessoas. Estão gerando um fato (o encontro entre equipe + entrevistados) e registrando a fagulha que daí resulta. A equipe também é personagem. 



 
Coutinho dá exemplos de filmes seus como Edifício Master (2002) e O Fim e o Princípio (2005), produtos de escolhas quase aleatórias. “Filmar assim é como cavar petróleo”, diz Coutinho; “quando a gente começa a cavar aqui não está cavando em outro lugar.”  A escolha do Edifício Master e da cidade de São João do Rio do Peixe para esses dois filmes foi a escolha de um pacote fechado. Um salto no escuro, mas um escuro escolhido. Escolhe-se onde se vai saltar. O resto vem como consequência de ter caído justamente ali. 
 
Ele compara essas escolhas com uma “pena de morte” e “uma prisão”, advertindo que quando o documentarista escolhe essa prisão (“Vou filmar em São João do Rio do Peixe”) isso lhe dá uma liberdade absoluta. “O [momento] presente da filmagem é a única coisa que me interessa”, afirma ele, dizendo que prefere isso do que receber “dez milhões de dólares e nenhuma prisão”. 
 
E é um encontro sujeito a tudo, principalmente ao fracasso. “Ou acontece em meia hora, ou não acontece, não adianta ficar três horas”. 
 
A “prisão” do documentarista é, em linguagem literária, a “contrainte”, termo francês para qualquer restrição arbitrariamente escolhida e auto-imposta. É quando o escritor diz algo como: “Vou escrever um poema onde cada linha tem que ter uma letra a mais que a linha anterior... vou escrever um romance onde todos os personagens têm o mesmo nome e o leitor que se vire... vou escrever uma peça de teatro onde todas as palavras serão proparoxítonas...”  
 
Preso e emparedado no plano horizontal de tais escolhas, só resta ao artista olhar para o alto e ver que o céu é o limite. 
 
“Tudo é um mistério!  Nenhuma questão está resolvida, está dada!  E eu acho isso maravilhoso. Tudo está pra ser descoberto.” 




Entrevistar pessoas, para Coutinho, é ligar a câmera, deixá-la parada e registrar com aquilo uma pessoa real que fala, “um corpo que fala”, diz ele, sem a preocupação de fazer “planos de cobertura”, variação entre “frente e perfil”, o beabá dos entrevistadores e dos diretores de fotografia. 
 
Ele exemplifica com trechos de Santo Forte (1999) e diz ter se arrependido de semanas após a filmagem ter colocado “inserts”, imagens soltas que servem de ilustração mas não pertencem ao ambiente e ao momento da entrevista. 
 
Entrando no clima randômico que Coutinho parece tanto apreciar, o diretor Nader lhe pede: “Fala um número”, e ele responde com admirável presteza: “1.420”, provocando risadas de todos. Era um sorteio: ele se corrige para “7”, e o sorteado é um trecho de Edifício Master, a entrevista da jovem Alessandra. 
 
O filme mostra em paralelo trecho de O Fim e o Princípio em que um homem idoso, à janela, lamenta o fim da linguagem verdadeira, que se diluiu em lugar comum, e batendo na janela diz que quando Jesus criou o mundo janela era janela. “A palavra agora não é mais a coisa,” lamenta Coutinho, lembrando o conceito de “linguagem adâmica” de Walter Benjamin, a linguagem pré-divisão de tudo. 
 
E vem um trecho do Edifício Master com três jovens, aspirantes a banda de rock, em que dois cantam e um deles limita-se a aparecer, silencioso, impassível. O vocalista explica: “a nossa intenção com ele é que ele seja uma mensagem visual,  ele interpreta corporalmente o que a gente quer passar com a música... Então... se ele falar perde o sentido”. 
 
Cutinho volta a lembrar Walter Benjamin: “Todo passado contado é mais intenso que o passado vivido. Isso é uma verdade absoluta. Não há paixão, não há coisa que você tenha vivido que seja tão forte na vida real do que foi, do que vinte anos depois, contada. Não tem, não tem. É impossível.” 
 
“Eu tenho uma fascinação por tudo que é inacabado, por tudo que é impuro, por tudo que é imperfeito, que é precário... Por tudo que é resíduo, por tudo que é lixo, por tudo que é detrito... Eu sou apaixonado por esse tipo de coisa.“
 
Uma cena de Babilônia 2000 (2000): a mulher (negra, cabelo branco, bem curtinho, óculos) rememora que já trabalhou em boates famosas, conheceu Juscelino Kubitschek, e no final da entrevista confessa que a mãe engomava o terno do pai para que ele fosse namorar na Zona. “É o Caso do Vestido de Drummond,” comenta Coutinho. “Ela manda as filhas entrarem quando o marido volta bêbado: ‘vosso pai evém chegando’”. 



 
“Meus filmes veem o mundo do lado feliz, todo ao contrário do que eu sou. Por isso meus filmes são importantes pra mim.“ 
 
Coutinho conjetura que suas entrevistas funcionam devido a um elemento que ele não consegue definir com outra palavra senão “erótico”: a sensação de presença e proximidade de dois corpos, a “co-presença”, como ele diz. Cita (e mostra) uma imagem de O Fim e o Princípio, em que entrevistando D. Mariquinha, de 82 anos, a câmera em certo momento pega na margem direita um pedaço dos seus óculos. “O filme nos mostra juntos na mesma imagem”. É a proximidade entre os corpos, criando uma vibração erótica no sentido mais amplo da palavra. 
 
Um critério que ele alega ser importante é o de “justa distância”. “Eu não falo com alguém a dez metros de distância, mesmo que a imagem fique bonita”. “A pessoa fala uma coisa, mas porque eu estou lá. E porque eu estou lá se produz uma coisa, pelo fato de haver um interlocutor, e uma câmera. Pro bem e pro mal.”.“A necessidade de ser ouvido é uma das mais profundas, se não a mais profunda necessidade humana. Ser ouvido é ser legitimado, em sua mediocridade...”
 
O hábito de ler romances policiais me leva a comparar o estilo de entrevista de Eduardo Coutinho com o método investigativo de alguns detetives famosos, cujo melhor modelo é Hercule Poirot. O bom detetive sabe que todo mundo mente. Todo mundo esconde alguma coisa. Não é somente o assassino que está contando uma versão falsa dos acontecimentos. Cada um daqueles suspeitos está fornecendo uma versão distorcida da verdade: por medo; por insegurança; por mero esquecimento ou nervosismo; por interpretar erradamente algo que entreviu ou entreouviu; para esconder algo que não tem nada a ver com o crime; para acobertar outra pessoa... 
 
Hercule Poirot dedica seu tempo a longas conversas cheias de “cerca-lourenço”, de rodeios e despistes aparentemente sem objetivo, mas que têm o poder de extrair de cada suspeito uma porção de informações que o leitor vai registrando superficialmente. “Por quê que ele perguntou isso? Que importância tem essa informação?” 
 
Poirot consegue essa proximidade com o suspeito, em muitos casos, por ser uma figura aprentemente inofensiva: um homem de certa idade, meio janota, meio cabotino, mas muito educado e cortês... Ele se aproxima, faz um monte de perguntas irrelevantes, e o suspeito vai se soltando. E assim os fios da teia vão sendo tecidos. 
 
Coutinho não queria pegar criminosos. Queria flagrar cada pessoa no limiar de seus segredos, de suas confidências a que ninguém jamais deu ouvidos. De repente, bate à porta da pessoa aquele homem ríspido, de barbas brancas, acompanhado de câmeras e luzes. Um homem disposto a ouvir aquele velho contar como foi ao Inferno e voltou; ouvir a mocinha dizer que deixou de falar com o pai até que ele morreu de enfarte; ouvir aquela senhora humilde recordar como em outra vida viveu na Alemanha de Beethoven; ouvir como aquela outra disparou três vezes contra o ex-amante e o revólver falhou três vezes... 
 
“Tem uma coisa que... a pessoa que eu vou falar, que ela sabe... Não importa se é verdadeira. Tanto o que ela conta da vida, ou tanto o que ela pensa.  Mas tem uma coisa que eu tenho que estar ‘vazio’ pra que ela possa me dizer: eu sou assassino... Ela pode me dizer. Tem que dar a impressão de que ela pode falar isso, entende?
 



("Santo Forte")
 
 
 



sexta-feira, 9 de maio de 2025

5177) Revendo "O Falcão Maltês" (9.5.2025)

 

 
O Falcão Maltês é uma obra que, por duas linhas de influência (livro de Dashiell Hammett em 1930, filme de John Huston em 1941), marcou todo o gênero da história de detetive hardboiled
 
Hardboiled é uma expressão norte-americana para descrever ovos cozidos durante muito tempo, e que ficam duros, sólidos. Penso eu que há nisto uma ironia sutil ao hábito sofisticado de comer ovos moles, pouco cozidos, como os ovos escalfados, ou “ovos pochê”. 
 
A expressão hardboiled me evoca aqueles ovos-cozidos de botequim, com casca colorida, daquele tipo que o cara pede quando está no balcão, tão bêbado que não consegue enunciar direito o pedido e apenas aponta com o dedo, naquele vitrinezinha horizontal, o prato cheio de ovos com casca cor-de-rosa ou amarela. 
 
O detetive hardboiled (um detetive particular, ou um policial com distintivo) é alguém que passa a sensação de dureza (=valentia, violência, brabeza), e também a percepção de algo ou alguém fervido, castigado, curtido pela vida. 
 
Dashiell Hammett (1894-1961) escreveu cinco romances e algumas dúzias de contos que recriaram o gênero. O Falcão Maltês, o mais conhecido, foi serializado na revista Black Mask, e saiu em formato de livro em 1930. 
 
Os próximos comentários estão cheios de spoilers, mas não há outra maneira de comentar uma narrativa que se baseia em reviravoltas, revelações, surpresas. 
 
O detetive Sam Spade investiga o assassinato do seu sócio, Miles Archer, contratado por uma bela loura para descobrir o paradeiro da irmã desaparecida. Surgem alguns gangsters com interesse no caso, e vê-se que não é o que parecia à primeira vista. Spade começa um xamego amoroso com a cliente, Brigid O’Shaughnessy, que está, tal como os gangsters, à procura de uma jóia valiosa: a estátua de um falcão, feita em Malta, cravejada de brilhantes. 
 
Sam Spade consegue se adiantar a todos, mesmo pressionado pela polícia e pelos gangsters. Ele recupera o Falcão Maltês, negocia com os bandidos, mas descobre que a estátua é falsificada, e entrega todos à polícia – inclusive sua paixão Brigid O’Shaughnessy, porque no toma-lá-dá-cá das investigações e interrogatórios ele descobre que foi Brigid quem matou, no início do livro, seu parceiro Miles Archer. 



(placa atual, numa rua de San Francisco)

 
O filme de John Huston é muito bom, e segue de pertíssimo a narrativa do livro; mas o modo de escrever de Hammett é único e irreproduzível. No filme, Sam Spade é interpretado por Humphrey Bogart, o protótipo do “galã feioso”; só que, comparado ao personagem do livro, Bogart é um Adônis. 
 
Eis como Hammett descreve a aparência física de Sam Spade: 
 
A mandíbula de Samuel Spade era longa e ossuda, seu queixo um V proeminente abaixo do V mais flexível de sua boca. Suas narinas se curvavam para trás formando um V ainda menor. Seus olhos cinza-amarelados eram horizontais. O tema do V era reproduzido pelas espessas sobrancelhas castanhas que se erguiam de duas rugas sobre o nariz quebrado, e o cabelo castanho-claro se projetava para diante por entre duas têmporas lisas, convergindo para a testa. Tinha a agradável aparência de um satanás louro. (...) (Cap. 1) 
 
Ele tirou o pijama. O aspecto liso e roliço dos seus braços, pernas e corpo, e a postura curvada dos seus ombros volumosos, tornavam seu corpo parecido com o de um urso. Um urso escanhoado: seu peito não tinha um pelo sequer, e a pele era fina e rosada. (Cap. 3) – trad. BT 
 
Há três mulheres na vida de Sam Spade durante esta narrativa. 


(Humphrey Bogart e Lee Patrick)
 

A primeira é sua secretária e resolvedora-de-problemas Effie Perine (interpretada no filme por Lee Patrick). Com ela, Spade mantém uma relação simpática de companheirismo, ajuda, um carinho sem pressão, sem paixão, sem cobrança excessiva além da cobrança de chefe e funcionária.  



(Bogart  e Gladys George, "Iva Archer") 

A segunda aparece menos – é Iva, a viúva de Miles Archer, com quem Spade tem um caso, e que tem a função de pedra-no-sapato desde a primeira cena. Um típico caso extraconjugal (da parte dela) do qual ele se arrepende o tempo inteiro. 




 
(Bogart  e Mary Astor, "Brigid O'Shaughnessy)

A terceira é Brigid O’Shaughnessy (Mary Astor), a suposta cliente que depois se torna amante e cúmplice na busca pelo Falcão Maltês. O filme de John Huston é bastante casto em cenas de sexo (era a época do chamado Código Hays, de muita censura no cinema), mas a história precisa deixar claro que Spade se apaixona por ela desde o início – ou desde que os dois passam uma noite juntos entre o fim do capítulo 9 e o começo do capítulo 10. 
 
O livro também não pode ter muitas ousadias em termos de sexo. Era 1930, afinal de contas, uma época em que Hammett precisava escrever coisas como: “O rapaz disse duas palavras, a primeira delas um verbo curto e gutural, e a segunda you.” Quem fazia uma literatura desse tipo mal poderia sonhar com as cachoeiras de fuck, fucking e fucker que são despejadas na dramaturgia de 2025. 
 
Depois da noite que Spade e Brigid passam juntos, ele escapole enquanto ela está adormecida, furta a chave do apartamento dela e vai fazer uma revista, em busca do Falcão Maltês. O modo como Hammett descreve a cena é de uma atenção sensorial e uma minúcia quase eróticas. 
 
    No apartamento da garota ele acendeu todas as luzes. Revistou o local de parede a parede. Seus olhos e seus grossos dedos moviam-se sem pressa aparente, sem hesitar, sem vacilar, sem voltar atrás, de um centímetro de sua área de atuação até o seguinte, experimentando, escrutinizando, testando tudo com a segurança de um especialista. Cada gaveta, armário, caixa, mala, baú, trancado ou destrancado, foi aberto, e seu conteúdo examinado com dedos e olhos. Cada peça de tecido foi apalpada pelas mãos em busca de saliências ocultas, enquanto os ouvidos ficavam alerta à espera de um estalido de papel sob a pressão dos dedos. Ele arrancou os lençóis da cama. Olhou embaixo dos tapetes e de cada peça da mobília. Puxou para baixo as persianas para ver se nada tinha sido enrolado e oculto ali. Debruçou-se na janela e olhou se não havia nada pendurado para fora. Enfiou um garfo em potes de pó e de creme na mesinha de toalete. Ergueu sprays e frascos para olhá-los de encontro à luz. Examinou os pratos e as panelas e a comida e os recipientes. Esvaziou a lixeira em cima de folhas de jornal abertas. Ergueu a tampa da descarga no banheiro, esvaziou a água, olhou para dentro. Examinou e testou as telas de metal sobre os ralos do banheiro, da pia de rosto, da pia da cozinha e da máquina de lavar. 
                Ele não achou o pássaro preto. 
(cap. 10, trad. BT)
 
O detetive passou uma noite com a mulher (que ele logo adiante estará chamando de “my own true love”), e agora a trata com essa desconfiança implacável, voluptuosa, profissional. Que lembra o verso famoso de Chico Buarque: “Desfruta do meu corpo como se meu corpo fosse a sua casa” (“O Meu Amor”). 



(Dashiell Hammett)

 
Existe um machismo subjacente a toda história de detetive. São histórias escritas por homens, publicadas por homens e lidas por homens. Só na segunda metade do século 20 as mulheres passaram a ter uma presença quantitativamente significativa nessas três atividades. (As exceções havia, é claro, e eram brilhantes.) 
 
Quando no fim da história Spade compreende que foi Brigid quem matou seu parceiro de agência (o detetive Miles Archer), tudo muda. 
 
Ela diz que o ama. Ele diz que talvez a ame também, mas explica para ela: 
 
Quando o parceiro de um homem é assassinado, supõe-se que ele tem de fazer alguma coisa a respeito. Não faz a menor diferença o que a gente achava dele. Ele era seu parceiro, e você tem que fazer alguma coisa. E acontece que a gente trabalha no ramo de detetives. Bem, quando alguém da nossa organização é assassinado, não é bom para nosso trabalho se o assassino escapar impune. É muito ruim mesmo. É ruim para todo mundo que é detetive. 
(diálogo do filme; trad. BT)
 
Os detetives têm essa solidariedade, uma mistura de espírito-de-corpo, camaradagem, sentimento militar de “band of brothers”. Isto, para Sam Spade, é mais precioso do que o eventual amor que ele venha a sentir por uma mulher. 
 
Num dos romances de Chandler, o detetive Marlowe vai para a cadeia por se recusar a responder sobre o paradeiro de um cliente acusado de crime. Marlowe passa oito ou dez dias deitado numa cela, fumando e olhando para o teto. Um policial tenta convencê-lo de que ele está sendo idiota, e Marlowe precisa chamá-lo para a real. “Todo mundo no meu círculo de atividade sabe que eu estou preso, e por quê. O que pensariam eles se eu entregasse meu cliente só para ser solto? Quantos clientes você acha que eu conseguiria depois disso?”. 
 
Philip Durham, um estudioso do romance hardboiled, vê essa ética dos detetives como um prolongamento do chamado “espírito de fronteira” dos desbravadores do Oeste norte-americano, onde as populações tinham que criar seus próprios códigos de conduta. O herói (diz ele) reúne estas características: “coragem, força física, indestrutibilidade, indiferença ao perigo e à morte, uma atitude cavalheiresca, celibato, uma certa medida de violência, e o senso de justiça.” 
 
Dashiell Hammett trabalhou alguns anos como detetive da Agência Pinkerton. Um dos seus superiores lá, James Wright, assim definia o código dos detetives: “Não engane seu cliente. Mantenha-se anônimo. Evite riscos físicos desnecessários. Seja objetivo. Não se envolva emocionalmente com um cliente. E nunca violente sua própria integridade.” 
 
Estes dois últimos itens eram os que Sam Spade devia ter em mente quando entregou Brigid O’Shaughnessy à polícia pelo assassinato de seu parceiro. Quando se descobre qoe o Falcão Maltês, causa de todas aquelas mortes, era uma cópia falsa, alguém pergunta a Sam Spade o que é afinal esse objeto. E ele responde: “É a matéria de que nossos sonhos são feitos.” 
 
Curiosamente, esta última frase (o último diálogo do filme) não vem do livro de Hammett. Consta que foi uma sugestão de Humphrey Bogart, reformulando uma frase de Shakespeare em A Tempestade: “Somos a matéria de que os sonhos são feitos, e as nossas vidas minúsculas estão envoltas pelo sono.” 



(O Falcão Maltês)