quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

5157) "Ainda Estou Aqui" (27.2.2025)




O filme de Walter Salles Jr. é um filme sobre a memória, o apagamento, o esquecimento, etc., porque afinal de contas trata-se da adaptação do livro em que Marcelo Rubens Paiva conta como se deu o sumiço do seu pai, o ex-deputado Rubens Paiva, em 1971, por obra e graça da ditadura militar. 
 
Marcelo, aliás, surgiu com outro livro de memórias, Feliz Ano Velho, em que narrava um pouco dessa história mas, principalmente, o período que se seguiu ao acidente que o deixou tetraplégico. O livro é excelente, foi um best-seller da década de 1980, é um livro formador para minha geração – e aí tenho que fazer uma traquinagem nas contas numéricas, porque Marcelo Rubens Paiva, apesar de mais novo do que eu, publicou primeiro, e seu livro fez parte das minhas “leituras formadoras”. 




Não é só memória, no entanto, ou melhor, é isso – e tudo o mais que está enganchado nisso, emaranhado, grudado, acumulado, fazendo parte disso. 
 
A cabeça de quem escreve é uma mistura de xadrez, tômbola, e biscoito-da-sorte. Um pensamento desencadeia algumas reações imprevisíveis, associações de idéias ou de imagens, e a gente escreve, como quem copia um ditado, sem ter tempo de enxergar quem está ditando. 
 
Isto talvez ajude a explicar uma palavra aleatória que usei no primeiro parágrafo deste texto. Comecei pensando em ir noutra direção, mas agora vou pegar essa transversal, depois volto à avenida. 
 
A palavra é “sumiço”, uma palavra que uso rarissimamente, e que só aparece no meu vocabulário quando pretendo me referir ao livro do francês Georges Perec La Disparition (1969), frequentemente citado neste blog. 



 
É o famoso “romance onde não aparece a letra E”. O livro foi publicado em inglês como A Void, em italiano como La Scomparsa e no Brasil, em tradução de Zéfere, como O Sumiço (Ed. Autêntica, 2015). 
 
O livro conta o desaparecimento de um indivíduo chamado Anton Voyl e a busca desesperada de seus amigos para localizá-lo. Aos poucos, um dos significados da história vai se esclarecendo: Voyl significa “voyelle”, (“vogal”). O livro acontece em um mundo de onde a letra “E” desapareceu e todo o resto das coisas que existem teve que se desarrumar e arrumar de novo, se reorganizar, se recombinar, para preencher aquela ausência. 
 
O livro tem muitas outras coisas, mas para o presente caso serve como ilustração. Quando se subtrai algo essencial ao idioma, à fala, à vida, à conversa humana (à literatura...), e essa subtração é irreversível, não tem jeito a dar. O mundo inteiro tem que se arrumar de novo para preencher aquela ausência, aquela desaparição, aquele vazio, aquele sumiço. 
 
E mais: sem ter plena consciência do que aconteceu – sabe-se apenas que tudo agora é assim e talvez tenha sido sempre assim. O mais cruel de um sumiço é quando todo mundo precisa se acostumar a essa ausência e acaba mesmo pensando que “é, foi sempre assim, está tudo normal, não sumiu nada nem ninguém”. 
 
Daí (voltando à avenida principal) a importância da história central contada em Ainda Estou Aqui. 




(Eunice Paiva) 

 
Não li o livro de Marcelo Rubens Paiva e não sei os contextos em que a frase do título aparece. Quando soube do filme e todo o fuzuê que ele gerou em torno de si (milhões de ingressos, indicações ao Oscar, etc.) compreendi que essa frase era uma frase-símbolo de Eunice Paiva, a viúva-sem-ser, a mulher que passou décadas infernizando a vida dos militares, da polícia, do sistema judiciário, da imprensa, como quem diz: “Não, não fui embora, ainda estou aqui. Olha eu aqui de novo. Vim reclamar outra vez. Vim bater na porta outra vez. Tem resposta? Tem explicação pra mim? Tem justificativa? Alguém pode me contar de verdade o que aconteceu? Alguém pode me fazer a fineza de dizer o que aconteceu com meu marido?. 
 
A interpretação de Fernanda Torres é excelente e merece todo o reconhecimento que tem obtido. Não pude deixar de lembrar dela em Terra Estrangeira, meu filme favorito na obra de Walter. Duas personagens, dois mundos tão distantes e parecidos. 
 
Por outro lado, gostei muito de Selton Mello como Rubens Paiva, com uma semelhança notável com o personagem. Bonachão, tranquilo, sorridente, sério, firme, ele ocupa a primeira meia hora de filme (mais ou menos), construindo uma presença maciça sem esforço. Selton Mello é um dos atores mais descontraídos que há, larga as falas como se estivesse improvisando tudo, naquele mesmo instante.




E é essa presença tão carismática que é subtraída ao filme a partir da chegada dos policiais da repressão, e sua partida para o quartel. Aliás, uns policiais extremamente plausíveis para quem viveu aquela época. Não são soldados com farda do Exército e cabelo à escovinha. Não. É aquele contingente dos lumpen-repressores, cabeludos, barbudos, desconfortáveis. O tipo do executor pegado-no-laço para fazer trabalhos sujos e depois sumir.
 
Perguntado sobre sua ocupação, um deles diz: “Sou especialista em parapsicologia”. Gente com alguma escolaridade, mas sem planos além da sobrevivência, gente sem ideologia além de leituras ao acaso e meia dúzia de preconceitos herdados sem refletir. Gente facilmente cooptável por qualquer tipo de regime, em troca de algum salário e – principalmente – em troca do Poder de amedrontar outras pessoas.



 
Depois que Rubens Paiva desaparece, quebra-se aquela felicidade familiar que orbitava em torno dele. (E aí não é preciso dizer que todo passado é utópico para quem escolhe recordá-lo assim. Por que não posso achar que algum dia já fui feliz?!...)   
 
E nesse momento o título do filme muda da origem e de tom. Não é mais Eunice quem fala. É como se fosse o marido e o pai dizendo, do outro lado de sabe-se-lá-que-abismo: “Ainda estou aqui. Ainda estou com vocês, pelo menos enquanto vocês lembrarem de mim. Continuem falando em mim, para que eu continue a estar com quem não esqueceu”.



E a luta da família fica não somente como uma luta pela Justiça, mas uma luta pela Presença, pela continuação daquela presença que para eles era preciosa.
 
Uma presença que vaza, de fora para dentro, mesmo em imagens onde o personagem não aparece. Eunice é conduzida encapuzada pelos corredores escuros do quartel, e ouve os faxineiros derramando baldes de água no chão do corredor e esfregando o piso com rodos. Esfregando o que?  Sangue, mas de quem?
 
Na hora da mudança forçada para São Paulo, uma das filhas some, e a mãe vai encontrá=la sozinha, na areia da praia, olhando em despedida o mar de Ipanema. Sim, é um adeus a Ipanema, por alguém que provavelmente gostaria de jamais ir embora de Ipanema. Mas é a presença do pai no mar, vazando para dentro da cena. Será que foi neste mar que jogaram meu pai?



 
Também muito se falou da reconstituição “de época” do filme, e imagino o trabalhão que deu compor aquelas ruas, fachadas de lojas, móveis, automóveis, roupas, detalhe de arquitetura. Vim ao Rio de Janeiro pela primeira vez em 1970, já cineclubista e universitário, olhos arregalados para aquilo tudo, sem imaginar que viveria aqui mais da metade da minha vida. Existe algo de aconchegante na visão daqueles fuscas, daquelas camionetes, daqueles cabelos. O mundo já foi assim.
 
Por outro lado, o “clima de época” se solidifica em outro tipo de cena. As cenas dos olhares de esguelha quando passa um caminhão de soldados, quando se percebe uma blitz lá adiante, quando a TV anuncia mais um atentado, quando os amigos se reúnem num apartamento para trocar novidades em voz baixa.
 
É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.
(Carlos Drummond, “Nosso Tempo”, A Rosa do Povo)

Tempos que nunca passarão de todo, infelizmente, porque não há utopia alguma no horizonte futuro do radar.
 
Vendo o filme de Walter Salles me veio à mente um filme iraniano recente, A Semente do Figo Sagrado (Mohammad Rasoulof, 2024). Ali se vê também a imagem de uma mãe e uma filha, encapuzadas, sendo levadas pelos corredores sem luz de uma prisão estatal, para interrogatório. É também uma tragédia familiar, mas de outra natureza. O pai é juiz, recebe uma promoção no Tribunal Revolucionário de Teerã, e a família dá um pulo bacana em estilo de vida, moradia, roupas, etc.
 
Só que aos poucos a mãe e as filhas ficam sabendo que, para isto, o marido aceitou assinar sentenças de morte (contra os inimigos do regime) sem sequer examinar os autos. A filha precipita a tragédia final ao trazer às escondidas para dentro de casa uma amiga, “estudante subversiva”, ferida durante uma manifestação. E o pai descobre.
 
Cada família infeliz é infeliz à sua maneira, dizia um escritor. Só que nem toda família a quem sobrevém uma tragédia é necessariamente uma família infeliz. Uma tragédia que não pode ser revertida precisa ser assimilada. A família tem um milhão de coisas práticas para resolver, tem uma memória para salvar, tem uma Presença para manter junto a si. A imprensa quer uma foto, mas precisa (ah, imprensa) de uma foto triste. Eunice diz: “Sorriam”.
 



 






segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

5156) Eita, me esqueci (24.2.2025)

 

 
Minha irmã Clotilde é escritora hiperativa e médica aposentada. Se bem que médico nunca se aposenta, principalmente se tiver família. Vai num aniversário e logo encosta um sobrinho: “Tia, aproveitei e trouxe meus exames pra senhora dar uma olhada...”  
 
No presente caso, o consulente fui eu, porque ultimamente estava me dando uma bobeira preocupante, tipo parar diante da estante, numa prateleira específica, mão erguida, gesto parado no ar, e uma pergunta: “O que foi mesmo que eu vim buscar?”. As desistências da memória. 
 
Liguei pra ela, que mora em Natal (RN). 
 
-- Acho que estou com Alzheimer – anunciei, porque sou da escola jornalística “conclusões primeiro, explicações depois”. E há precedentes. Meu pai, que morreu com 86, passou seus últimos anos num limbo, cercado de desconhecidos que forcejavam para dar-lhe banho ou comida, e por âncoras de TV que nunca respondiam suas provocações. Só que naquela época o diagnóstico era: “Papai está esclerosado”. 
 
Enfim: não custa nada consultar um médico, principalmente quando é de graça. E ligo eu para o 084. 
 
Ela escutou os sintomas, e mandou “na lata”: 
 
-- Tenho boas e más notícias. A boa é que não é Alzheimer. A má é que é velhice, e não tem cura. Quando chegar na cozinha e não se lembrar do que foi fazer, beba água. 
 
É velhice, é um carro rodado, como o fusca de Zé Fernandes, que tinha mais de 600.000 km no velocímetro e ele dizia: “Meu carro já foi na Lua e voltou”. O cérebro se desgasta, os neurônios, as sinapses, as conexões. 
 
E tem um agravante. À medida que a gente vive mais, o organismo sofre o desgaste natural, mas o nosso universo mental não cessa de se ampliar, com novas vivências, novas tarefas, novas leituras, novas experiências. O prédio da Biblioteca encolhe, mas livros novos não param de chegar. 
 
Esquecer o nome de um escritor ou de um centroavante não é um problema dos mais sérios, o problema é esquecer a data de uma palestra ou a hora de tomar um remédio. Quando isso acontece (“eita, meu voo não é semana que vem, é hoje”) fico me sentindo como o personagem daquele conto: “Sábio Com Um Buraco Na Memória”, daquele escritor argentino – ele não... o outro... o altão... o que morava na França, gostava de jazz... está na ponta da língua. 
 
Por isso mesmo quero aproveitar cada momento de lucidez e de capacidade escriturária.  Há quem me pergunte por que escrevo tanto. Quando eu tinha trinta anos, pensava: “Serei lido daqui a mais trinta!”. De que me adianta continuar pensando assim agora? Escrevo pelo prazer de escrever, que é um prazer semelhante ao de ser capaz de subir sozinho uma escada de aeroporto ou rodoviária, mochila pesada às costas, sem a ajuda de ninguém. Vocês não sabem o quanto isto é prazeroso. 




Fiz um mergulho muitas vezes agradável, e muitíssimo útil, nesses incômodos assuntos quando colaborei numa série de TV dirigida por Paola Vieira (produção da Luni/Recife), para o Canal Curta, A Persistência da Memória. Perguntamos sobre “memória” a pessoas como Sidarta Ribeiro, Ailton Krenak, Mary Del Priore, Luiz Antonio Simas, Eliana Alves Cruz, Hernane Heffner (Cinemateca do MAM), Antonio Marinho, Aluf Alba (Arquivo Nacional), Karen Worcman (Museu da Pessoa), Paulo Lins, Sílvio Meira (Porto Digital)... 
 
Procurem aqui:
https://www.curtaon.com.br/series/serie.aspx?serieId=1327
 



Ter que assistir e editar dezenas de entrevistas de especialistas sobre o tema não melhorou minha capacidade mnemônica, mas me ajudou a aceitar a existência dos buracos, das bobeiras, dos “brancos”. A mente é uma rua de terra. Tem buracos? Paciência. Se a gente não pode passar ali a 120 por hora, como passava aos trinta anos, vai devagarinho, e segue em frente. Buraco de estrada também é chão. 
 
Quando me pedem entrevista, sempre prefiro fazer por escrito. Entre outras vantagens (poder responder na hora que preferir – de madrugada, por exemplo) existe a de poder consultar na estante ou no Google algum nome, título, data, seja lá o que for. 




Não quero ficar, ao vivo, numa TV ou rádio-por-telefone, como algum locutor esportivo idoso que diz: “Parte o Flamengo para o contra-ataque, defesa está aberta, Gerson estica para Bruno Henrique, ele disputa a bola com o zagueiro do Fluminense, o... o nosso amigo... o da camisa tricolor, o número 20 do tricolor das Laranjeiras, disputando a bola com o atacante rubronegro...” e enquanto ele lembra dos nomes a bola já foi gol e alguém já deu nova saída. 
 
O que atrapalha pra valer é esquecer de pagar o boleto no vencimento, esquecer de mandar a documentação, de assinar a autorização ou a carta de anuência, de cobrir a conta na véspera do débito automático, de comprar o remédio antes do fim da caixa... 
 
Atrapalha também, mas sem consequência graves, esquecer de responder as dezenas de emails ou zaps com perguntas, comentários, alôs, olás... Ou até responder duas vezes por esquecer que já tinha respondido (tomara que as duas respostas sejam parecidas). 
 
Tudo isto faz parte do varejo da memória, dos lembramentos e esquecimentos diários, miúdos, cotidianos. Temos que nos conformar com isto sem fazer um exagero em torno.  




Quando a gente tem 15 anos, esquece do dia da prova, esquece de devolver uma grana emprestada, esquece de botar a camisa pra lavar antes do jogo de domingo... É problema mental? Não, é fuzuê mental. A cabeça de um adolescente é um salão cheio de pessoas falando ao mesmo tempo. 
 
A cabeça de um velho é o mesmo salão, ampliado pelos muitos anos de vida. O velho, porém, descobriu o botão do volume. Quando fica muito alta a gritaria dos compromissos, dos trabalhos, dos lembretes, das agendas, das conversas pessoais, das discussões práticas... ele simplesmente abaixa o volume. Fica todo mundo mexendo a boca, e ele pode fechar os olhos em paz por meia hora. 
 
Só que não há botões individualizados – ou aumenta tudo, ou abaixa tudo. 




O que nos dizem os especialistas em memória é que esquecer é tão importante quanto lembrar, porque a capacidade de processamento do cérebro é finita (e, em muitos casos, declinante com a idade) e é mais útil poder manter um fluxo normal e incessante de idéias do que ficar sujeito a um “engarrafamento de trânsito” em que memórias irrelevantes ficam bloqueando o caminho de coisas mais urgentes ou mais significativas. 
 
O segredo de lidar com a memória é desapegar, priorizar, maximizar isto, minimizar aquilo, poder pegar uma transversal e continuar sabendo em que direção fica a via principal, saber administrar um combustível na-reserva sem rodeios inúteis... 
 
Como dizia Walter Franco: “O que é que faz com essa cabeça, irmão?... Saiba que ela explode... Olha que ela pode...”. 


https://www.youtube.com/watch?v=rXoLe-EBUgc



 
 












sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

5155) Contracapa de DeepSeek (21.2.2025)

 



(“Gato e um Pássaro”, Paul Klee, 1928)


&   não tenha medo: eu não tenho tentáculo de polvo nem pinça de caranguejo 
 
&   ser capaz de tomar suco em caneca de louça é um passo importante para a conquista da independência filosófica, acadêmica e espiritual 
 
&   o sertão vai adoecer de cidade, e a cidade vai adoecer de sertão 
 
&  a juventude é uma doença a que o corpo se acostuma até perdê-la 
 
&  quem admira Napoleão não pode criticar quem admira Virgolino 
 
&  tem gente que dá uma dentada pra entrar numa briga e uma dentadura pra sair 
 
&  deviam inventar um Teleporte só de ida, depois se pesquisava o resto 
 
&  prender essas pessoas vai fazer baixar o nível moral das cadeias brasileiras 
 
&  isso não é nada que um divórcio não resolva e uma bebedeira não cauterize 
 
&  queixam-se de que a Ciência não explica certas coisas, mas não querem ouvir o que ela consegue explicar 
 
&  o poeta é a agulha, tudo que deixa atrás de si é linha 
 
&  as Ciências Exatas sofrem de labirintite quando chegam na zona crepuscular onde florescem as Humanas 
 
&  a fúria fervente dos vencedores só pode ser comparada ao rancor gelado dos vencidos 
 
&  tem gente que prefere não-ter do que pedir 
 
&  os gramáticos são os veganos da língua 
 
&  é curioso, só proclama a existência da luta de classes a classe que está perdendo a luta 
 
&  nada prejudica tanto o meu trabalho quanto a necessidade de ganhar dinheiro 
 
&  daqui do meu lugar-de-fala, todo espartano é um sibarita, e todo zen-budista é um dândi 
 
&  tem pessoas cujo olhar revela, sem perceber, o estado de uma alma em decomposição 
 
&  e você, preferiria ser o torturador ou o torturado? 
 
&  as pessoas muito ansiosas pela perfeição moral parecem estar devendo alguma coisa 
 
&  tem homem que é melhor ter como amigo do que como inimigo, e mulher que é melhor ter como inimiga do que como amante 
 
&  a Poesia é um esporte-de-contato contra  entre o coração e a palavra 
 
&  não me pergunte o que eu não posso dizer, e assim eu não direi o que você não pode escutar 
 






terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

5154) O eclipse dos amores inconclusos (18.2.2025)




Meu saudoso professor da Escola de Cinema da UCMG, o padre Massote, costumava palestrar longamente sobre os aspectos arquitetônicos do cinema de Michelangelo Antonioni, um dos seus diretores preferidos. Parece estranho, eu sei, um padre católico mineiro gostar de um diretor tão crítico da religião, tão voltado para os dramas eróticos e existenciais de gente rica, burguesa, européia. 
 
Acontece que Massote era acima de tudo um adorador da imagem, e aqui não me refiro à arte sacra: era a imagem cinematográfica mesmo, aquele mundo falso-3D no 2D da tela, aquela Terra plana e vertical, aquele planeta retangular. 
 
Nisto ele seguia uma tradição brasileira, a proximidade filosófica entre a doutrina católica e a fascinação pelo cinema. O cineclubismo nordestino, por exemplo, sempre recebeu muito apoio das dioceses e paróquias locais, inclusive nas épocas da “caça às bruxas”, em que jovens de 18 ou 20 anos podiam ser presos (ou pelo menos intimados a prestar depoimento no quartel) somente porque estavam exibindo Aruanda de Linduarte Noronha. 
 
E havia a tradição dos livros de autores católicos que minha geração lia com aplicação, como os Elementos de Cinestética do Pe. Guido Logger, O Cinema tem Alma? de Henri Agel, Caminhos do Cinema do paraibano José Rafael de Menezes, Noções de Cinema do Irmão Samuel...  
 
Nenhum desses livros nos conduziu ao Seminário, assim como Aruanda não nos conduziu às Ligas Camponesas. Por que? Talvez porque nossa geração (ou pelo menos a turma com quem eu convivia mais) tivesse sido tocada mais pela imagem do que pela mensagem. 


 
Revi agora O Eclipse (1962) de Antonioni, que não via há mais de vinte anos. É um filme belo, frio, luminoso como um bisturi. Dizem que Antonioni celebrava (criticava? lamentava?) o vazio emocional de seus personagens de classe média alta, e para conseguir melhor esse objetivo drenava as emoções da platéia, impedindo que ela se envolvesse, se identificasse, sofresse, risse, ficasse comovida ou assustada. 
 
Neste sentido, o cineasta de Deserto Vermelho talvez fosse o mais brechtiano dos diretores, não fosse pelo fato de que, ao contrário de Brecht, não oferecia um substituto nítido para a catarse emotiva – não propunha um tipo qualquer de iluminação da consciência. Nada disso. Na maioria dos filmes dele, e em O Eclipse especialmente, vemos personagens que parecem ter olhado para o abismo e deixado lá tudo que traziam dentro de si. Voltaram “só a casca”. 
 
Ninguém ilustrou melhor esse vazio do que Mônica Vitti, que foi casada com o diretor nesse período, e apareceu para o mundo em quatro filmes sucessivos dirigidos por ele: A Aventura (1959), A Noite (1960), O Eclipse (1962) e Deserto Vermelho (1964). 
 
Os minutos iniciais do filme são uma amostra dos contrastes que ele malabariza. Começam os letreiros (o filme é em preto-e-branco) ao som de uma cançãozinha-pop estridente e banal. Quando surge o letreiro “Música: Giovanni Fusco”, começa a trilha sonora de verdade, atonal, dissonante, ora ruidosa, ora minimalista. Uma música “de clima”, um clima de expectativa e estranheza. 
 
Essas duas referências acompanham o filme todo. Podemos dizer que está dividindo entre a estridência formal da vida moderna e a melancolia desamparada dos que não conseguem se integrar a ela. 



 
Um apartamento, paredes cobertas de pinturas, um ventilador ligado. Silêncio. Um homem de camisa branca (Francisco Rabal, “Riccardo”), uma mulher de vestido preto (Monica Vitti, “Vittoria”). A câmera acompanha a mulher enquanto ela vagueia pela sala, mexe nos objetos. O homem está sentado, olhando para ela. O diálogo que começa entre os dois é frouxo, desinteressado, vê-se que ela não quer mais nada com ele, mas ele ainda insiste, sem forçar. Há copos de bebida, cinzeiros cheios. Vê-se que passaram a noite acordados, discutindo. Sem violência, mas naquela areia-movediça mental em que quando mais se conversa menos se entende. 


 
Ela se despede, volta a pé para casa, e aí vemos que os dois estão num bairro de edifícios modernos com vastos espaços vazios entre eles. É a área residencial e de escritórios chamada “EUR”, espólio do fascismo, e, na época do filme, talvez um sintoma de que a Roma milenar estava mergulhando de cabeça nas novidades americanizadas do pós-guerra (uma constante no cinema italiano dos anos 1940-50-60). 
 
A certa altura surge o que é talvez a cena mais polêmica do filme: um número de dança blackface. Vittoria e uma amiga visitam outra mulher, que mora no Quênia e tem opiniões arrepiantemente racistas sobre os africanos. Este seu apartamento em Roma é coberto por objetos nativos, fotos, etc. E então, “do nada”, Vittoria se pinta de preto, veste um traje ficcionalmente africano e executa uma dança selvagem. Como disse um crítico da época: “Passarão mil anos e Mussolini continuará invadindo a Etiópia”. 




Nos planos externos dessa parte do filme Antonioni se multiplica (com o fotógrafo Gianni di Venanzo) em ângulos de pessoas perdidas numa paisagem de superfícies vazias e enormes blocos de concreto. Essas sequências lembram Brasília, lembram o sonho modernista de eliminar tudo que seja rugosidade, dobras, capilaridade, proliferação biológica. Lembram o poema de João Cabral de Melo Neto:
 
A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.

 

O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.

 

(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro).

 

A água, o vento, a claridade,
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples.
(Em O Engenheiro, 1942-45)
 
 


Essa arquitetura (que no filme cumpre um papel modernista, independente de seu estilo) contrasta com as sequências que trarão o namoro seguinte de Vittoria, com o jovem workaholic Piero (Alain Delon).  Nas cenas no centro velho de Roma, na Bolsa de Valores, tudo é o contrário desse episódio inicial. Os velhos prédios carcomidos, escritórios desmazelados, cheios de tralha funcional (papel, máquinas de escrever, pastas, anotações...) e na Bolsa propriamente dita o berreiro frenético dos investidores.
 
Nas sequências da Bolsa e sua gritaria atordoante, Antonioni cria uma coreografia circular de homens possessos, e faz Alain Delon rodear esse círculo, rompê-lo, entrar, sair, numa dança precisa. (Conta-se que o diretor escolheu um investidor real e fez o ator copiar-lhe os mínimos gestos.)




Delon está no auge de sua versatilidade física, saltando, correndo, esbarrando, gesticulando com veemência. A certa altura, Vittoria pergunta, agastada: “Você não pára?!...” Ele é um personagem totalmente moderno, um yuppie (a palavra não existia em 1962) jovem, obcecado em fazer muito dinheiro no menor tempo possível, o cara que não pára, não relaxa, só pensa em dinheiro, mal escuta o que lhe dizem... 
 
No filme, ele é o contrário de Monica Vitti, que aperfeiçoou aqui a sua “persona” frágil, desamparada, hesitante, parecendo consumida por algo que não pode revelar. Aquilo que o crítico  Andrew Sarris chamou de “antoniennui” (“antedioni”?...). Ela exprime melhor que ninguém aquela instabilidade que Antonioni imprime a alguns personagens, que parecem (no dizer de David Thomson) “epidermes frágeis que mal conseguem roçar umas nas outras sem se ferir”. 
 
Nesses filmes Antonioni/Vitti renasce o mito do diretor que usa a câmera para acariciar o corpo da mulher que o inspira, como fizeram Jean-Luc Godard com Anna Karina e Josef von Sternberg com Marlene Dietrich. Não importa se o cineasta quer mostrar um mundo burguês emocionalmente estéril ou um vibrante mundo moderno em que tudo parece possível: entre ele e o mundo se interpõe aquela presença carnal que arrasta a câmera consigo. 
 
O Eclipse poderia também ser o filme de abertura de um hipotético festival intitulado “Amores Inconclusos”, e que incluiria também In the Mood for Love de Wong Kar Wai, Vestígios do Dia de James Ivory, Lost in Translation de Sofia Coppola, Nunca Te Vi, Sempre Te Amei de David Jones e certamente muitos outros.


Dizia-se de Antonioni ser o cineasta da incomunicabilidade, do desencontro. Ele é também o cineasta do personagem humano perdido na paisagem urbana, uma paisagem não propriamente ameaçadora ou hostil (como nos filmes do Expressionismo Alemão), mas indiferente. Uma proliferação de edifícios em multiplicação constante e que parecem expulsar de seu projeto esses seres humanos incômodos, que vagueiam como zumbis. 
 
O mundo modernizou-se tão depressa e tão cruelmente que nos deixou para trás.  Minto: nos leva consigo, mas nos leva fora dele, como astronautas que saíram da espaçonave para dar uma volta e depois não conseguiram mais entrar, ficaram pendurados no vácuo, sendo arrastados espaço afora, mas fora do mundo. 
 
Um objetivo aparentemente conseguido na famosa sequência final de O Eclipse, uma série de imagens desconexas mostrando os ambientes por onde Vittoria e Piero passaram, como se os dois tivessem finalmente deixado de existir e a Cidade pudesse ser somente a Cidade. 














sábado, 15 de fevereiro de 2025

5153) Cacá Diegues, 1940-2025 (15.2.2025)



 
Perdemos Cacá Diegues, o cineasta que para muita gente tinha o perfil mais parecido com o Cinema Novo. 
 
Assunto que rende etílicas polêmicas, é claro. Para uma igrejinha obstinada (onde me benzo de vez em quando), a cara do Cinema Novo era Glauber Rocha, sem discussão. Glauber foi o motor-de-luz que energizou uma geração inteira, excitando, provocando, desafiando, incentivando, polemizando, mas deixando claro a todos que o momento era de fazer cinema no Brasil. 
 
Sem dinheiro, sem indústria, sem patrocínio, fosse como fosse. E fazer um cinema provocativo, questionador, “revolucionário”. E de fato o cinema feito por Glauber, entre Barravento (1962) e O Dragão da Maldade... (1969) foi tudo isto, e serviu de bandeira a toda uma geração. “Sigam-me!  É por aqui!...” 




(Glauber Rocha) 

 
Depois, o cinema de Glauber deixou de ser bandeira e virou farol: “Afastem-se, o terreno aqui é perigoso”. O talento voluntarioso, a imaginação indisciplinada, os rasgos de ousadia, tudo isto sustentou o cinema que Glauber continuou fazendo até morrer em 1981; mas aí já não era mais o Cinema Novo, era o delírio pessoal de Glauber, suas cartas do exílio e seu manuscrito-encontrado-numa-garrafa. 
 
Para outros, a cara do Cinema Novo era Nelson Pereira dos Santos, que teve uma carreira totalmente diferente. Amigo de Glauber, Nelson era de outro planeta como pessoa e como diretor. Era um referencial de equilíbrio, de cabeça firme, de habilidade e sobrevivência mesmo no pior dos Anos de Chumbo. E tinha seu viés de doidice tropicalista também, vide Como Era Gostoso Meu Francês (1971), Um Azyllo Muito Louco (1970), Quem é Beta (1972) e outros experimentalismos que não perdiam para os de Glauber. 
 
E Nelson foi um dos esteios de uma faceta importantíssima (para mim, pelo menos) do Cinema Novo, que foi a aliança com a literatura brasileira. Glauber não adaptava ninguém: tudo era ele, e tudo era dele. Nelson construiu pontes cinematográficas com a obra de Graciliano Ramos, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, Nelson Rodrigues, Jorge Amado, uma aliança onde a obra literária, já consagrada, fornecia o chão, e o cinema fornecia o voo. 



(Nelson Pereira dos Santos) 

 
Não vou poder desfiar aqui o perfil de cada um dos cinemanovistas –  Arnaldo Jabor, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Paulo César Sarraceni, Leon Hirszman... Tantos e tantos outros... Cada um deles é um cinema-novo à parte. E Cacá Diegues? 
 
Cacá era um cara de conversa longa e prazerosa, de temperamento cordial, sorridente e gentil  -- é a imagem que me ficou das vezes em que estivemos juntos. Tinha um perfil de amante do cinema, do espectador que vira diretor pelo prazer de trazer um instrumento novo à orquestra coletiva. 
 
Muitos diretores queriam chutar o pau da barraca, desafinar o coro dos contentes, explodir a tela em fotogramas, bouleversar para sempre o juízo das platéias. Não era o caso dele, que mesmo em seus filmes mais incisivamente políticos estava mais focado nas pessoas, nos dramas, tragédias, farsas e comédias em que as pessoas se metem por causa de coisas como política, dinheiro, poder, sexo, violência, e o mais que se segue. 
 
No cinema de Cacá sempre vi também um respeito grande e uma curiosidade grande pelos temas nordestinos. Ele era um nordestino transplantado, como tantos outros, nascido em Maceió mas vindo muito cedo para o Rio. E lembro da leve surpresa que tive, já com mais de trinta anos, quando descobri que ele era filho de Manuel Diegues Jr., grande estudioso da cultura popular, autor de ensaios definitivos sobre a literatura de cordel e a poética dos cantadores. 



 
É de Cacá a boutade famosa de dizer que aqui no Brasil “Cinema é apenas uma abreviatura de Cinema Americano”. Muita gente via nessa frase uma confissão de subserviência diante de Hollywood; eu sempre a vi como um diagnóstico sincero do que é ser espectador de cinema num país como o nosso. 
 
E olha que quando Cacá disse esse gracejo, nosso mercado era muito mais aberto a produções do mundo todo. Em Campina Grande, nas décadas de 1960-70, eu via a toda hora filmes russos, japoneses, mexicanos, iugoslavos... E o próprio cinema norte-americano ainda não estava sujeito à ditadura do “primeiro fim de semana”, que decide a vida e a morte de um filme. Ainda estávamos longe das distorções do século atual, quando um único filme de super-heróis ocupa, simultaneamente, 80% ou mais das salas de exibição do Brasil inteiro. 



 

Cacá nunca deixou  de dirigir, mas tornou-se produtor, e é neste aspecto que vejo nele (e em Nelson Pereira) uma cara mais “Cinema Novo” do que a de Glauber, que será sempre um irredutível número-primo em nossa História e nossa Cultura. Glauber forcejava para ser uma eterna exceção, mas cineastas como Cacá Diegues e Nelson ajudaram a pavimentar o caminho para a criação de uma regra. A criação (sempre polêmica e contraditória) de uma indústria cinematográfica, capaz de atrair (e salvar!) cineastas, roteiristas, atrizes, atores, fotógrafos e tudo o mais. 



 
Arte é uma coisa engraçada. Quando um artista morre, a primeira coisa que a gente sente é o choque da perda humana, da perda individual, ainda mais quando é alguém que a gente conheceu pessoalmente. Aquela ausência nunca mais será preenchida. Aquele vácuo vai ficar sempre ali, até o dia em que sejamos nós a falta que vai ficar. 
 
Mas nesse momento a gente procura se refugiar na obra. Reler o livro, botar o CD pra tocar, dar play no filme. A morte recente de David Lynch, no mês passado, me fez rever uns 4 ou 5 filmes e pegar agora as 3 temporadas de Twin Peaks, que estou revendo à razão de um episódio por dia. (Sou aristotélico: tudo meu é com planilha.) 



 
O que tenho de Cacá, aqui em casa? Tenho Bye Bye Brazil (1980), o meu preferido, que vivo revendo. Devo ter também Chuvas de Verão (1978), uma beleza de filme sobre o Rio de Janeiro (o Rio de Janeiro não é um conjunto de paisagens, é uma galeria de tipos humanos que só poderiam ter brotado aqui).  

No YouTube, de ontem para hoje, já achei e marquei Ganza Zumba, Rei dos Palmares, 1963 (um épico juvenil, abrindo a possível trilogia que inclui Xica da Silva, 1976, e Quilombo, 1984), A Grande Cidade (história das pessoas anônimas que são mais reais do que as pessoas famosas). 
 
Tem outros por aí, e curiosamente vejo agora que tem vários que nunca assisti: Dias Melhores Virão (o filme sobre os dubladores!), O Maior Amor do Mundo, O Grande Circo Místico... Vou botar cerveja pra gelar. Lembro que alguns deles foram desancados por este ou aquele crítico, o que não deixa de ser uma recomendação e um alerta, um pisco no radar. 



(Deus é brasileiro)


E lembro uma conversa que tive com um crítico de cinema (não-profissional) quando assisti Deus é brasileiro (2003). Falei que gostei muito do filme. Meu amigo perguntou: “É mesmo? É alguma obra-prima, então?”  E eu disse: “Longe de ser uma obra prima, mas é um filme que eu precisava ver e não sabia, e acho que qualquer filme ganha mais sendo isso do que sendo obra-prima”. 









 
 
 
 
 





quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

5152) Um paraibano na Copa do Mundo (12.2.2025)




 
Ser o primeiro jogador paraibano a disputar uma Copa do Mundo é algo tão importante quanto ser a primeira atriz brasileira (ou a segunda) a ser indicada para o Oscar. 
 
No resto do mundo, fora do “universo de interesse”, fora dessa bolha (por maior que seja, é uma bolha), pode não ter a menor importância; mas só quem chega a esse patamar sabe a ladeira que subiu. 
 
A verdade é que se um filme brasileiro ganhar um Oscar ou um escritor brasileiro ganhar um Prêmio Nobel todo brasileiro (=um grande número de brasileiros) se sentirá implicitamente valorizado por essa premiação. Um pouco dessa glória choverá sobre nós, que compartilhamos com o premiado um parâmetro dos mais importantes: somos do mesmo país, do mesmo caldo cultural. 
 
Me lembro do que dizia Jorge Luís Borges: “Talvez algum átomo de oxigênio que eu respiro agora já tenha sido respirado por Shakespeare”. 




 
Se Fernanda Torres (que eu admiro muito) ganhar um Oscar, tenho o direito (poético) de imaginar que uma raspa da estatueta dourada choverá sobre meus cabelos, e poderei espalhá-la com o pente. Serei (poeticamente) oscarizado também. 
 
Se em vez da atriz for premiado o filme, comemorarei também. Meus amigos do-contra escarnecerão: “Ah, está comemorando vitória de um bilionário? Você não diz que combate eles?...” Em primeiro lugar, não combato bilionários, combato os mosquitos da dengue, uma luta onde pelo menos posso contabilizar relativas vitórias. E se a categoria “poder aquisitivo” me distancia do bravo Walter, somos aproximados pela categoria “colaborador-na-construção-da-muralha-da-China-levemente-absurdista-que-é-o-cinema-brasileiro,-uma-indústria-em-país-ocupado”. Fica uma coisa pela outra. 
 
Uma exposição que se abriu hoje em João Pessoa (Manaíra Shopping, em frente à Livraria Leitura) celebra o jogador Índio, do Flamengo, hoje meio esquecido pela imprensa e pela torcida. É compreensível. Eu mesmo, que sou paraibano, sou flamenguista, e ainda tenho o cacoete das estatísticas de futebol, lembrava o nome dele, mas somente como atacante do Flamengo, nem lembrava dessa passagem pela Seleção.
 
E hoje cá estou eu, cheio de orgulho retroativo, imaginando como eu-menino teria me sentido, se na infância longínqua tivesse sabido que ele era paraibano. 



(Índio, com a bola, entre Evaristo de Macedo e Didi)


A exposição é organizada por Fábio Henrique Alves, também autor da biografia Índio, o Herói de 57 (Livros De Futebol, 2022), e de um documentário sobre o jogador. 
 
Quando Índio teve seu auge no futebol, no Flamengo, em meados dos anos 1950, eu nem era gente ainda. Pelo clube rubro-negro ele realizou (entre 1951 e 1957) 202 jogos e marcou 134 gols. 
 
Meu pai colecionava revistas de futebol, entre elas a inesquecível Manchete Esportiva, e foi ali que ouvi falar em Índio pela primeira vez. Não sabia que era paraibano e, pensando bem, talvez se soubesse não tivesse dado importância. Quando eu era menino, Campina Grande e o mundo eram uma coisa só. 



(A batalha de Berna: Hungria 4x2 Brasil) 

 
Há dois grandes momentos na carreira de Índio na Seleção. Ele jogou na partida conhecida como “a Batalha de Berna”, na Copa da Suíça em 1954, quando o Brasil foi eliminado pela Hungria, num jogo de muitos pontapés, algumas expulsões, que terminou 4x2 para os húngaros. 
 
O segundo momento foi em abril de 1957. O Brasil disputava um mata-mata contra o Peru. Quem ganhasse iria à Copa da Suécia em 1958. No primeiro jogo, em Lima, o Brasil conseguiu empatar por 1x1, com gol de Índio; e classificou-se na volta com 1x0, no Maracanã, graças a uma folha-seca de Didi. 




Eu soube de tudo isto lendo na Manchete Esportiva, que meu pai encadernava. Já com 12 ou 13 anos, eu sentava na poltrona com um volume ao colo (era uma revista grande, maior que a Piauí) e ia descobrindo o imprevisível passado. 
 
Índio nasceu em Cabedelo em 1931, morreu no Rio de Janeiro em 2020, aos 89 anos. Além do Flamengo, jogou no Corinthians e no Espanyol (Barcelona). 




 
Toda vez que eu, como torcedor do Flamengo, via um jogador nordestino vestindo aquela camisa, sentia um orgulho particular, semelhante ao que muitos fãs do cinema brasileiro sentem quando veem Rodrigo Santoro, Sonia Braga ou Selton Mello trabalhando em grandes produções internacionais. Eu lembrava logo o alagoano Dida, o alagoano Zagalo, o sergipano Nunes, o paraibano Júnior, sem falar em vários baianos, desde Júnior Baiano até Hernane “Brocador”.  

E, é claro, o cearense Everton Cebolinha, o maranhense Wesley, e o potiguar Ayrton Lucas (“acelera, Ayrton!”). 
 
Aqui, no “Baú do Esporte” da TV Globo, uma entrevista com Índio, aos 81 anos, e imagens raras de um Flamengo x Vasco em que ele marca gol.
https://www.youtube.com/watch?v=70JfW_T9ilQ
 
A exposição ‘Índio – O Primeiro Craque’ será realizada no Manaira Shopping (em frente a Livraria Leitura), de 12 a 16 de fevereiro, das 14h âs 20h. A Realização é do Manaira Shopping e TV Cabo Branco, afiliada da Rede Globo, na Paraíba. A exposição terá uma série de objetos utilizados pelo ex-jogador durante a sua trajetória no futebol, acervo de Fábio Henrique Alves.