O que é um catalisador? É um termo científico para
designar, por exemplo, um agente qualquer cuja presença ajuda a desencadear uma
reação química. Ele não está diretamente envolvido, e em geral não se altera;
mas sem a presença dele aquela reação química não se produz. Ele cria as
condições, por assim dizer, e depois que o evento acontece ele vai embora,
inalterado.
Estou simplificando, é claro,
mas é mais ou menos isto. Um websaite me dá a seguinte definição: “Um catalisador é uma substância
que pode ser adicionada a uma reação para aumentar a sua velocidade sem ser
consumida durante o processo.”
A primeira vez que vi essa palavra foi no romance Planeta Maldito, de Vargo Statten,
livrinho de bolso da antiga coleção “Futurâmica” das Edições de Ouro, cujo
título original em inglês é justamente “The Catalyst” (1951). É uma história
completamente pulp fiction, tendo
como tema uma rocha extraída do planeta Mercúrio, a qual, em contato com a
água, pode transformá-la em ouro. O que – evidentemente – provoca um caos
econômico nas nações da Terra.
Um catalisador é também uma pessoa capaz de criar e
estimular um ambiente criativo sem que seja, ela própria, uma artista. Não deve
ser confundido com o “mecenas”, o indivíduo rico que tem bom gosto, que tem
entusiasmo pela arte, e que se dedica a financiar filmes, comprar quadros,
bancar de seu bolso peças de teatro, etc.
O catalisador não tem esse poder, essa “bala na agulha”,
esse talão-de-cheques providencial. Geralmente ele é um membro de uma turma de
indivíduos mais talentosos do que ele, e os incentiva com sua companhia, suas
idéias, etc.
Andei pensando nisso ao pesquisar sobre Luís Buñuel
recentemente. Pela primeira vez parei e perguntei a mim mesmo: “Mas, quem diabo
é Pepín Bello?...” É um nome onipresente
em muitos veios criativos da cultura espanhola, e sempre que estudei a obra de
Buñuel ele aparece, reiteradamente. Lendo alguma coisa sobre Federico Garcia
Lorca, lá aparece Pepín Bello. Vou ler sobre o surrealismo na Espanha e sobre
Salvador Dalí... lá está Pepín.
Procurei livros seus nas livrarias, nas bibliotecas, no
Projeto Gutenberg... e nada.
(Salvador Dalí, Federico Garcia Lorca e Pepín Bello, em 1923)
Pepín Bello foi, na juventude, companheiro de Buñuel,
Garcia Lorca e Salvador Dalí na famosa Residência Universitária de Madri, um
centro atrator de jovens estudantes criativos que depois se tornariam famosos. As
cartas que Buñuel lhe escreveu durante décadas são citadas pelos biógrafos do
cineasta como documentos importantes, dado o respeito intelectual e a amizade
descontraída entre os dois.
Nascido em 1904, Pepín faleceu em princípios de 2008, aos
103 anos de idade. Era considerado, dentro de sua turma, “um artista sem obras”.
De certa forma, servia de “escada” aos colegas mais talentosos, funcionando
como interlocutor, incentivador, consciência crítica, parceiro de aventuras
intelectuais.
Um catalisador, em resumo; alguém que não produz arte,
mas sabe atrair para perto de si os que a produzem, e lhes dá algum tipo de
estímulo intelectual de que os artistas – sempre meio complicados – tanto
precisam.
Aqui, uma matéria bem elucidativa sobre esta simpática
figura, quando completou 97 anos. Ele rememora os tempos de convivência com
Lorca, Dalí e Buñuel, além de outros escritores daquela época, como Rafael
Alberti e Dámaso Alonso:
https://www.elmundo.es/magazine/m84/textos/bello1.html
O personagem de Pepín Bello me lembrou outro, este
brasileiro, que teve um papel importante em nosso Modernismo da primeira metade
do século passado. É o famoso Jaime Ovalle (1894-1955), outro “artista sem
obra” (ou quase), parceiro musical de Manuel Bandeira, constantemente lembrado
pelos artistas da época como “o mais inteligente de todos nós”, e que deixou
uma obra rarefeita, talvez indigna de seu talento.
(O Santo Sujo, de Humberto Werneck)
Jaime Ovalle, contudo, teve a sorte de ser biografado por
Humberto Werneck: O Santo Sujo (Cosac
& Naify, 2008) é uma das melhores biografias literárias que já li,
reconstituindo não apenas a pessoa (mercurial, inalcançável, indefinível) do
biografado, como a época em que atuou, os talentos sobre os quais exerceu uma
influência reafirmada por todos.
Ovalle foi um catalisador, um boêmio (apesar de ter sido
um funcionário exemplar nas autarquias onde ganhava a vida), bebedor, namorador,
raparigueiro, leitor onívoro, amante da música.
Uma cachoeira permanente de ditos, frases, teorias, versos, canções, comparações,
idéias que ele espalhava à-toa nas mesas dos bares e restaurantes onde passou a
parte mais luminosa de sua vida.
De pessoas assim é comum dizer-se coisas como “era o mais
inteligente de todos nós”, “infelizmente não deixou uma obra”, “criava em torno
de si um ambiente de produção de idéias”, etc.
Alguns os veem como confidentes, outros como gurus, outros como
referência crítica.
Estes tipos não são criadores, são catalisadores.
Acompanham a criação dos quadros, dos romances, dos filmes de seus amigos (que são
os primeiros a reconhecer sua influência), mas não produzem uma obra própria,
ou por desinteresse, ou por uma vida caótica, por falta de método e de
aplicação.
É o caso de outro brasileiro esquecido, mas não por mim,
porque era frequentemente citado por meu pai. Paula Ney (1858-1897) foi
jornalista e poeta no Rio de Janeiro, na época mais turbulenta e mais
efervescente da poesia parnasiana e dos movimentos abolicionistas e
republicanos. Talentoso, inteligente, bem-humorado, leitor voraz, foi retratado
por seu amigo Coelho Neto como “o Neiva”, no romance A Conquista.
Era um catalisador nato, e fez parte da turma de Olavo
Bilac, Aluísio Azevedo, José do Patrocínio, Guimarães Passos, e tantos outros.
Meu pai se deliciava com o livro No Tempo
de Paula Nei, de Ciro Vieira da Cunha, na Coleção Saraiva. E sempre tinha
uma advertência a fazer, durante o jantar:
– Você é todo metido e inteligente e a engraçado, mas
cuidado para não virar um Paula Nei, que era engraçado e inteligente mas não
deixou uma obra. Publique livros. Não passe em branco.
Os sonetos de Paula Ney são comuns, banais, sem nenhum
sopro de novidade; meros prolongamentos dos lugares comuns de sua época. Não
foi um grande poeta: foi um grande catalisador, um agitador intelectual. Esta
página, do Recanto das Letras de B.
S. Pereira, recupera um pouco o seu talento. Não chegou a ser um talento
desperdiçado. Digamos que seu talento era estimular o talento dos que o
cercavam, antes de morrer aos 39 anos.
https://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/44129