Compor canções, como qualquer outra atividade criativa,
tem suas marés, suas idas e vindas. Tem, por exemplo, épocas em que a gente
está concentrado em produzir coisas complexas, mais esteticamente ambiciosas, e
épocas em que a gente se dedica a fazer coisas mais simples. Uma tarefa nos
descansa da outra, em ciclos alternados.
Compondo com Lenine, muitas vezes ficávamos tentando
produzir letras mais complicadas – com temas de ficção científica, por exemplo
– e melodias com três ou quatro partes diferentes. E outras vezes corríamos
para o abrigo da canção popular mais básica. Como a gente dizia na época: “Uma
música que poderia ser gravada por Jackson do Pandeiro ou Marinês”.
Um exemplo nessa linha, que já comentei aqui, foi “A Roda
do Tempo”, gravada por Elba Ramalho:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2019/12/4529-minhas-cancoes-roda-do-tempo.html
“Lavadeira do Rio” é uma música desse período, que foi
sendo feita de modo intermitente, um trecho hoje, outro trecho daqui a mais um
tempo, e ficou na gaveta até ser gravada por Elba Ramalho no disco Flor da Paraíba (1998), pelo próprio
Lenine em Falange Canibal (2002) e
por Maria Rita em seu disco de estréia Maria
Rita (2003).
Elba:
https://www.youtube.com/watch?v=tgEN-rD8P4s
Lenine:
https://www.youtube.com/watch?v=dlIZD6bj5RU
Maria Rita:
https://www.youtube.com/watch?v=2_Wdrqg87z8
Cantiga de lavadeira é uma coisa linda.
A TV-Zero, do Rio de Janeiro, mostrou em sua preciosa
série “O Som da Rua” um grupo de lavadeiras de roupa de Almenara (MG), na beira
do rio Jequitinhonha, cujas cantigas de trabalho acabaram virando um espetáculo
que correu o Brasil. Eis aqui um vídeo, apresentado pelo cantor Carlos Farias,
que dá uma boa idéia da arte dessas cantoras:
https://www.youtube.com/watch?v=SvaBe6SgYPQ
Recentemente, foi compartilhado no mural de Felix
Rivera-Cabrera, no Facebook, um curto vídeo da cantora espanhola Buika escutando
o canto de lavadeiras venezuelanas:
https://www.facebook.com/505332363/videos/1453560108629211/
O canto das lavadeiras é um dos muitos tipos do Canto de Trabalho,
que por si só é um grosso capítulo na história da canção oral – a canção invisível,
a que nunca é gravada, que surge espontaneamente para musicar um momento de
vida e não tem o menor propósito de se transformar num produto comercial.
Acaba se transformando, em muitos casos, e isso é bom,
porque permite a gente como eu ficar sabendo o que cantam as mulheres
venezuelanas quando lavam roupa ao ar livre. Cantam quadrinhas rimando ABCB, sempre
com a mesma linha melódica (como nesse exemplo do Facebook), e a certa altura
terçando vozes com uma afinação comovente.
Quando nossa “Lavadeira do Rio” foi gravada por Elba
Ramalho, um crítico comentou no jornal que eu e Lenine estávamos fazendo
“macumba para turistas”, a conhecida expressão de Oswald de Andrade para
designar a exploração do folclore (ou da cultura popular) para vender
contrafações a consumidores desavisados.
Um mal-entendido frequente nas nossas avaliações da
música popular é achar que porque um sujeito é branco e de classe média ele
cresce numa bolha impermeável e não convive com o que se chama “gente do povo”.
Na minha visão, o contato entre classes sociais, pelo
menos no Nordeste em que cresci, é muito mais intenso e constante do que se
pode imaginar. Não só no Nordeste: eu diria que no próprio Rio de Janeiro esse
contato existe, só que ele é mais pervasivo e habitual na Zona Norte (por
exemplo) do que na Zona Sul, onde as classes se misturam na rua mas não se
frequentam nas casas.
No meu caso, as lavadeiras e suas cantigas foram parte da
minha vizinhança desde os meus 11 anos, quando meus pais se mudaram para o Alto
Branco, para as proximidades da Lavanderia Municipal, que fica a 20 ou 30
metros da nossa casa. O Alto Branco é uma colina muito úmida, com águas
subterrâneas que descem o tempo todo, e afloram em certos trechos.
Nas proximidades da Lavanderia, havia um trecho de poços
dágua rodeados de grama (hoje essa área está toda coberta de casas), onde as
mulheres lavavam roupa nos dias de sol. Além da Lavanderia oficial, esses poços
atraíam mulheres que lavavam a roupa dos moradores em torno. E cantavam.
Um detalhe interessante é que o Alto Branco sempre foi
sujeito a ventanias, e de vez quando se armavam por ali alguns “redemunhos” violentos
na direção dos poços dágua, arrebatando as roupas estendidas na grama e
arremessando-as a dez ou vinte metros de altura, para desespero das lavadeiras.
Menino não presta, e uma diversão nossa, quando um
redemunho se formava, era correr para o terraço ou a calçada e ficar gritando:
“Rapadura Preta!... Rapadura Preta!...”
Rapadura Preta é um nome popular do Diabo que mora no meio do redemunho,
e chamando esse nome (teoricamente) estávamos atraindo o redemunho na direção
dos poços, para ver os lençóis, as camisas e as saias rodopiando no ar.
Minha mãe ficava furiosa e partia lá de dentro empunhando
um cinturão ou uma chinela, ameaçando dar uma surra em quem chamasse o Diabo
para atanazar as pobres lavadeiras.
Outro detalhe relativo a esta canção é que ela acabou se misturando
com outra música, “Rita”, que tinha o mesmo formato de estrofe (duas quadras +
refrão) e melodia parecida. Pegar o violão para tocar uma delas sempre induzia
a tocar a outra, e desse modo letras e melodias foram se misturando e
resultaram numa música só.
Aqui outra interpretação, com a cantora paraense Lia
Sophia:
https://www.youtube.com/watch?v=ZNUrZLNZWwA
Em todo caso, a origem da canção como um coco, a sua
intenção de parecer com um coco que “poderia ser gravado por Jackson do
Pandeiro”, acabou encontrando rumo quando a música foi regravada pela dupla
Caju e Castanha no disco Professor de
Embolada (2013).
A gravação de Caju e Castanha:
https://www.youtube.com/watch?v=8rFsE0vv_4Y
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LAVADEIRA DO RIO
(Lenine / BT)
Ah, lavadeira do rio...
Muito lençol pra lavar!
Fica faltando uma saia
quando o sabão se acabar.
Corra pra beira da praia
veja a espuma brilhar
ouça o barulho bravio
das ondas que batem na beira do mar.
Ê-ô, o vento soprou
Ê-ô, a folha caiu
Ê-ô, cadê meu amor
que a noite chegou fazendo frio...
Rita, tu sai da janela,
deixa esse moço passar...
Quem não é rica e é bela
não pode se descuidar.
Rita, tu sai da janela,
que as moça desse lugar
nem se demora donzela
nem se destina a casar...
Ê-ô, o vento soprou
Ê-ô, a folha caiu
Ê-ô, cadê meu amor
que a noite chegou fazendo frio...