Franz Kafka nasceu no ano da morte de Karl Marx, e morreu
no ano do nascimento de Osman Lins.
Os fatos enunciados acima não têm nenhuma relação causal
ou simbólica entre si. São o que se pode chamar de justaposições inevitáveis,
não são significativos. Todo ano nasce e morre gente, e nem sempre há uma
relação causal, concreta, entre esses fatos. O problema com a relação simbólica
é que ela depende apenas da nossa vontade e da nossa capacidade de inventar
argumentos.
Eu posso dizer (por exemplo) que a morte de Marx e o
nascimento de Kafka, ambos ocorridos em 1883, marcam o fim da última tentativa
de impor a Razão às sociedades humanas (o socialismo científico) e o começo da
civilização do Absurdo, a civilização do capitalismo terminal (“terminal” para
a humanidade, é claro), em que os processos de produção, lucro, informação e
controle, desencadeados mais de um século antes, tomaram as próprias rédeas e
transformaram os seres humanos (políticos, militares, bilionários) em meros
executores, deslumbrados com a própria “riqueza” e o próprio “poder”.
Poso dizer também que o fato de Kafka morrer em 1924 e
Osman Lins nascer no mesmo ano constitui um marco divisório, agora no âmbito da
Literatura. Morre o profeta do Absurdo, e nasce o futuro profeta da ordem
estrutural: o romancista para quem um romance deveria ter a mesma complexidade
de simetrias e equilíbrios que encontramos numa catedral gótica, num vitral,
num bordado, num relógio de pêndulo, num observatório astronômico.
Nenhuma dessas “teses” acima se sustentaria por muito
tempo, mas é de teses assim que vive o jornalismo cultural (que é como eu classifico
este blog e as publicações parecidas) e vivem os estudos acadêmicos.
A Humanidade procura descobrir significado em tudo,
precisa de significado, tem ânsia por sentido. Procura descobri-lo onde ele
pode estar oculto, e procura inventá-lo onde ele não há.
Jogue no colo de uma pessoa inteligente cinco ou seis
informações aleatórias e prometa-lhe um prêmio se ela conseguir descobrir um
nexo de significado entre todas elas – e aguarde o resultado. É como mostrar
uma foto do céu estrelado e dizer: “Escolha algumas dessas estrelas, trace uma
constelação e dê-lhe um nome.” Qualquer pessoa medianamente inteligente é capaz
disso.
Numa entrevista que pode ser vista no YouTube (em alemão,
com legendas em inglês) Max Brod cita um episódio curioso de sua amizade com
Kafka, na juventude. Kafka foi visitar Brod para bater papo, e ao chegar lá
teve que atravessar uma sala onde o pai de Brod estava deitado num canapé,
dando um cochilo. Ele deve ter feito algum ruído ao caminhar, porque o homem,
semi-adormecido, fez algum movimento, e Kafka, muito discretamente, disse em
voz baixa: “Considere-me um sonho”, e saiu da sala.
Max Brod:
https://www.youtube.com/watch?v=v8iNnpP5tc4
Nesta entrevista, Max Brod comenta vários aspectos de sua
amizade com Kafka, inclusive destacando o grupo de quatro amigos que se
visitavam e se reuniam com frequência em suas respectivas casas (Kafka era o
único solteiro, e que ainda morava com os pais): Kafka, Brod, o filósofo Felix
Weltsch (1884-1964) e o poeta e músico cego Oskar Baum (1883-1941).
(Felix Weltsch)
(Oskar Baum)
Sobre o famoso pedido de Kafka para que Brod destruísse
seus manuscritos após sua morte, Brod esclarece que esse pedido não foi feito
pessoalmente, nem através de um testamento formal. Foi apenas um bilhete, sem
data, que Brod achou entre os papéis do amigo. Para Brod, Kafka tinha
oscilações (como qualquer pessoa) entre momentos de otimismo e de pessimismo,
mas que em seus últimos dias estava num momento feliz, principalmente através
de seu relacionamento com Dora Diamant (1900?-1952).
A palavra de Brod vale alguma coisa? “Amigo é pressas coisas”, diz a sabedoria popular. Brod tornou-se
uma espécie de executor testamentário informal com relação à obra do amigo. Suas
opiniões ganharam visibilidade, por um lado, e perderam credibilidade, por
outro. Depois que uma pessoa morre e não pode comentar, fica fácil dizer coisas
elogiosas ou desairosas a seu respeito.
Walter Benjamin critica, num texto de 1938, essa atitude
de Max Brod, que ele qualifica como uma “intimidade ostentosa”: algo que
encontramos com frequência em biógrafos, confidentes, melhores-amigos, e até em
pessoas que em algum momento conviveram com o morto ilustre. “Às vezes, ele costumava desabafar comigo, e
dizer que...” Não há poucos casos de amigos que, cuidando da obra póstuma
de alguém, querem impor sua visão da obra como a única válida, pela proximidade
que tiveram com o autor.
No centenário da morte de Kafka, ocorrido pouco tempo
atrás, a imprensa fervilhava de cogitações e especulações sobre sua vida e sua
morte.
Para mim, a imagem mais forte de toda a obra de Kafka não
é o rapaz transformado em inseto (A
Metamorfose), nem a Estátua da Liberdade empunhando uma espada (América), nem o faquir que se deixa
morrer de fome numa jaula porque nenhuma comida lhe apetece (Um Artista da Fome), nem o homem que se
considera inocente mas é degolado “como um cão” num terreno baldio (O Processo)...
É a máquina de tortura em Na Colônia Penal, em que o condenado é amarrado e um mecanismo
complicado usa agulhas pontudas para escrever na sua pele a sentença que lhe
foi destinada. O prisioneiro fica tentando
atribuir sentido às linhas dolorosas que a máquina desenha em seu corpo, sem
poder enxergá-las. Atribuir sentido à própria dor, por confiar que existe um
sentido (=verbal) na dor que sente.
Jorge Luís Borges elogiava em Kafka sua disposição em
inventar parábolas estranhas mas não lhes atribuir uma “moral da história”,
como procurava fazer, por exemplo, Nathaniel Hawthorne. O adjetivo “kafkeano”
está agora acoplado às reflexões sobre o nazismo, o inchaço burocrático, as
tarefas insensatas, a infinita procrastinação das tarefas, a passividade diante
da violência alheia...
Além disso tudo, Kafka tinha uma queda pelos animais como
protagonistas ou figurantes bizarros de seus textos (“Josefina, a Cantora”, “Investigações
de um Cão”, “A Toupeira”, “Relato Para uma Academia”, o sonho do Macaco de
Tinta). Usava regiões remotas, em geral no Oriente, para situar suas parábolas
políticas. Suas ficções, longas ou curtas, têm um clima crepuscular, claustrofóbico,
inquisitorial, parecem acontecer no sótão do mundo. Sucedem-se comportamentos
bizarros que não sabemos se devemos atribuir à imaginação do autor ou aos
hábitos de sua cultura.
Enfim, lemos Kafka como um tcheco talvez leia Jorge Amado:
sob a impressão de que tudo aquilo tanto pode ter a intenção do realismo quanto
a do absurdo, porque basta-nos viajar pelo mundo para constatar o quanto é
falso vincular o conceito de Realidade à nossa bolha sociológica.
Pouco tempo atrás, num prefácio para Contemplação, livro de estréia de Kafka, publicado em 2021 pela Ed.
Bandeirola (com tradução de Marcus Tulius Franco Morais), escrevi:
[O mundo de Kafka] é o mundo dos labirintos de videogames, onde o
avançar cria mais e mais bifurcações à frente do jogador que avança; onde, a
meia distância, existe apenas uma nuvem cinza de probabilidades, mas um novo
espaço aparentemente real começa a brotar no instante em que o personagem para
lá se encaminha. É um mundo imóvel onde
o personagem está sempre no centro, andando sem parar.
Essa sensação de irrealidade ativa, em que temos plena
liberdade de movimentos mas nada que fazemos tem sentido, perpassa também os Sonhos e os Diários de Kafka, esse indivíduo tímido, arguto, obstinado, que
enxergou nosso mundo melhor do que nós.
“Considere-me um sonho,” disse ele, e saiu.