quinta-feira, 27 de junho de 2024

5076) Por que esse começo de livro é bom (27.6.2024)



 
Fazendo-hora pelas redes sociais me deparei com uma lista de melhores começos-de-romance (ou de conto) da literatura. É um passatempo que pode ser útil, caso o leitor faça a si mesmo esta pergunta: “Por que eu achei isto bom? O que torna isto bom?”. 
 
A lista é em inglês, e traz os habituais suspeitos, os “começos famosos” sempre e eternamente citados. Isto nem sempre é bom para um livro. O que era impacto vai se reduzindo a clichê. Qualquer lista dessas, lá vêm os de sempre: “A Metamorfose”, “1984”, “Scaramouche”, “Cem Anos de Solidão”, “Anna Karenina”, “Moby Dick”, “O Estrangeiro”... Os que todo mundo cita, inclusive eu mesmo. 
 
Vou comentar alguns (a lista é longa). Há livros que eu nem li ainda, ou que desconhecia. Por que esses começos são bons? Há sempre um efeito pretendido pelo autor, um efeito que às vezes lhe ocorre de improviso, em outros casos é maduramente pensado. 
 
Esse efeito pretende, de certo modo, anunciar ao leitor o “tom” da narração, a voz narrativa, o modo a ser adotado no texto para contar os acontecimentos. Jacques Derrida dizia que “todo título é uma promessa”; digo eu que todo início é um diapasão. (Nem todo, é claro; etc. etc.) 
 
Comparando algumas dezenas de citações (em postagens assim, os leitores não se fazem de rogados para lembrar seus exemplos preferidos), a gente vê que certos formatos se repetem. 
 
Um começo que eu curto bastante é aquele que logo de saída vai fazendo uma mistura sutil (ou nem tanto) entre realidade e ficção, meio que tentando convencer o leitor de que “tudo aquilo é verdade”. (As traduções dos exemplos são minhas.) 
 
Vocês não me conhecem se não tiverem lido um livro chamado As Aventuras de Tom Sawyer; mas não importa. Esse livro foi feito pelo Sr. Mark Twain, e ele contou a verdade, na maioria das vezes.
(Huckleberry Finn, Mark Twain, 1884)
 
Hoje classificamos isto como metalinguagem, mas as fronteiras da literatura popular, da literatura que brotou nos jornais, sempre foram fronteiras porosas. Sempre admitiram esse tom de diálogo entre autor (cuja existência nunca é duvidada) e leitor. É uma conversa. Machado de Assis (mesmo sem nomear a si próprio) conversa o tempo todo, mesmo quando conta histórias na terceira pessoa.
 
E vejam na frase final o tom dubitativo do narrador quanto à veracidade dos fatos; não fica muito distante do tom usado por Kurt Vonnegut, Jr. (um desabusado total) no seu famoso Matadouro Cinco:
 
Tudo isto aconteceu; mais ou menos.
(Kurt Vonnegut, Jr., Slaughterhouse 5, 1969)
 
E o apogeu da metalinguagem vem com um tipo de estilista como Ítalo Calvino, malabarista-mestre na arte de refletir em voz alta sobre as artes de contar histórias e de refletir sobre elas:
 
Você está começando a leitura do novo romance de Ítalo Calvino, Se um Viajante Numa Noite de Inverno.
(Ítalo Calvino, Se Um Viajante Numa Noite de Inverno, 1979)
 
É sempre útil comunicar ao leitor, logo de cara, uma certa imprecisão, uma certa vagueza. Mostrar a ele que o texto que se segue não é um documento, é um relato. Jorge Luís Borges afirmava ter aprendido, com Rudyard Kipling e as sagas islandesas, a contar uma história como se não a entendesse por completo. (O problema com este recurso é que só funciona quando o autor entende a história por completo; é uma técnica que não beneficia os preguiçosos nem os confusos.)



(Somerset Maugham)


Nunca iniciei um romance com tanta apreensão. Se chamo a isto de romance é apenas porque não sei de outro nome para chamar.
(Somerset Maugham, The Razor’s Edge, 1944)
 
Maugham afirma, para fins ficcionais, que parte daquilo aconteceu de fato.  É o mais surrado dos recursos, mas sendo bem manipulado sempre produz algum efeito, porque corresponde a uma necessidade profunda do leitor: acreditar naquilo, pelo menos durante a narração.
 
Maugham é um autor de estilo clássico, eficientemente tradicional. Outra autora nessa mesma faixa é Edith Wharton.
 
Ouvi esta história, pouco a pouco, de várias pessoas, e, como geralmente aconntece em casos assim, a cada vez era uma história diferente.
(Edith Wharton, Ethan Frome, 1911)
 
Este é um formato que a gente também reconhece, intuitivamente; é um tipo confiável de imprecisão. Qualquer um de nós já passou pela experiência de ouvir versões diferentes (o que é inevitável) da mesma história.
 
Estes exemplos servem para relativizar o que se chama em geral de Narrador Onisciente: o narrador que sabe toda a história que aconteceu, sabe o que se passa na alma de cada personagem, sabe de cada personagem coisas que eles mesmos não sabem, e assim por diante. (Essa forma de contar poderia ser chamada também de Narrador Onipotente, mas seria um equívoco. “Narrador Onipotente” só existe na literatura absurdista, onde o cara inventa o que lhe der na veneta, os personagens que se danem, e o leitor que se conforme.)
 
Uma outra vertente desses “ganchos de abertura” vai noutra direção. Em vez de abrir com indecisão e rodeios, vai logo no osso, no cerne da ação. A entrada seca em uma cena, que pode ser estranha, violenta, inexplicavelmente cômica... Começos assim dão a nós, leitores, um pequeno impacto que nos avisa: “Se prepare”.



(Hunter S. Thompson)

 
Estávamos passando por algum lugar nas proximidades de Barstow, na fronteira do deserto, quando as drogas começaram a bater.
(Hunter S. Thompson, Fear and Loathing in Las Vegas, 1971)
 
Quando Augustus saiu para a varanda, os porcos estavam devorando uma cascavel, daquelas não muito grandes.
(Larry McMurtry, Lonesome Dove, 1985)
 
Havia dois mudos ali na cidade, e os dois andavam sempre juntos.
(Carson McCullers, The Heart is a Lonely Hunter, 1940)
 
Depois que matei o cara de cabelo ruivo, rumei para o Quinn’s para tomar um caldo de ostras.
(Michael Cox, The Meaning of Night, 2006)
 
Hale compreendeu, antes de ter passado três horas ali em Brighton, que eles tinham a intenção de assassiná-lo.
(Graham Greene, Brighton Rock, 1938)
 
É o tipo de começo que agarra o leitor, não por narrar algo espantoso, mas por saltar direto para a ação, sem explicar, sem fazer preparação. Como naqueles clichês de filme de aventuras, em que o protagonista está correndo perigo e “do nada” aparece a pessoa mais inesperada possível, dizendo: “Vem comigo, AGORA, depois eu explico”.