(Carlos Drummond de Andrade)
O Brasil anda fervilhando de gente religiosa, a julgar
pelos jogadores de futebol que atribuem a Deus os seus gols e suas copas, pelos
empresários que mandam os empregados começarem o dia rezando pelos lucros da
firma, pelos incontáveis shows de canção gospel, samba gospel, blues gospel, carnaval
gospel e assim por diante.
Não custava nada alguém organizar uma antologia poética
de Carlos Drummond de Andrade reunindo todos os seus poemas que falam de Deus,
meditam sobre Deus, usam Deus como personagem, examinam o conceito de Deus, agradecem
a Deus, questionam Deus... Todos não, porque talvez se tornasse um volume
proibitivamente grande. Mas fizesse uma seleção, porque são muitos poemas, e
chega a nos parecer que são muitos poetas.
É curiosa a relação de nossos literatos com a religião. Penso
no caso de Machado de Assis, tido por muitos como nosso maior prosador, tanto
quanto Drummond é tido como nosso maior poeta. Machado não podia evitar falar
em Deus; qual de nós pode, mesmo o mais cético e descrente? Mas o tom com que
ele fala!
(João Cabral de Melo Neto)
Já outro cético famoso, João Cabral de Melo Neto, era uma
figura trágica porque confessava: “Meu problema é que eu não acredito em Deus,
mas tenho medo de ir para o inferno.” Um cínico aconselharia Cabral a fazer o
contrário: não acreditar, mas ter certeza de que iria para o Céu.
Entre céus e infernos arde o coração desses poetas, e
ardia também o de Carlos Drummond em plena filosofia de seus 28 anos, quando
estreou em livro com Alguma Poesia,
onde se lê esse belo e enigmático “Poema da Purificação”.
Depois de tantos combates
o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio.
Este verso sempre me inquietou e me pacificou. Tudo bem,
fala-se de combates, de guerras olímpicas entre as divindades, e mesmo um
leitor que não acredita na existência de anjos não tem dificuldade em acreditar
que eles lutam entre si. As guerras existem.
(G. K. Chesterton)
Não estou sendo blasé
– estou apenas glosando o católico Chesterton:
Os contos-de-fadas não fornecem à criança a sua primeira noção do que é
um monstro (“bogey”). O que eles fornecem à criança é a sua primeira idéia real
de que é possível derrotar o monstro. As crianças sabem o que é um dragão, bem
no seu íntimo, desde que começam a ter imaginação. O que os contos-de-fadas
lhes dão é um São Jorge capaz de matar o dragão.
(Tremendous Trifles, 1909, trad. BT)
No meu raciocínio, a criança pode até mesmo não acreditar
em gigantes, mas se o conto-de-fadas for bom, ela irá acreditar que eles podem
ser derrotados.
Carlos Drummond de Andrade, independentemente de sua fé (ou
não) na existência de anjos, escreve em seu poema que o anjo bom matou o anjo
mau. Isto seria o final de um conto-de-fadas – o triunfo inevitável (segundo os
contos-de-fadas, os folhetos de cordel, o cinema de Hollywood) de todas as
lutas do Bem contra o Mal.
A diferença entre um adulto cético e uma criança que crê
(não tento ser irônico) é que nenhum final feliz é bastante para o adulto. Se o
Anjo Bom mata o Anjo Mau, pensa ele, isto significa que o ato de matar pode
ser, em si, um ato bom? Um não-pecado? Cabe ao Bem matar os maus? Bastaria isto
para justificar a morte violenta de alguém? Se eu acredito que pertenço ao lado
Bom, posso sair matando quem eu acho que pertence ao lado Mau?
Podem parecer questões ociosas, mas comentei dias atrás
aqui no Mundo Fantasmo o sofrido poema “Outubro 1930” em que Carlos Drummond
narra episódios e sentimentos da Revolução que levou Getúlio Vargas ao poder
(onde ficou por quinze anos). Brasileiros matando brasileiros. Eram os
brasileiros bons matando os brasileiros maus? – perguntaria a criança de
Chesterton. E responderia: “Se for assim, então tudo bem”.
Essa questão não se esgotou em 1930. Nos Estados Unidos
de hoje, onde a proliferação de armas de fogo e de crimes gratuitos com armas
de fogo tem um índice jamais visto na História, esse é um dos argumentos mais
frequentes para justificar o uso de armas. Porque (dizem) se um “Bad Guy”
armado tentar invadir a sua casa, é preciso haver um “Good Guy” armado para
defendê-la. Precisamos do Anjo Bom.
As águas ficaram tintas
de um sangue que não descorava
e os peixes todos morreram.
Os rios são um escoadouro tradicional para as grandes
matanças. No Massacre da Noite de São Bartolomeu, em Paris, em 1572, mais de
mil cadáveres de huguenotes (protestantes) foram arremessados nas águas do
Sena. O rio leva, o rio lava, o rio limpa; mas às vezes há um sangue que não
descora.
Mas uma luz que ninguém soube
dizer de onde tinha vindo
apareceu para clarear o mundo,
e outro anjo pensou a ferida
do anjo batalhador.
O poeta termina sua pequena fábula com a promessa de uma
luz não identificada que vem colocar as coisas às claras, e de que um outro
Anjo virá cuidar dos ferimentos do Anjo Bom. Esta seria a interpretação mais
óbvia do poema. (Alguém perguntará: “Mas você não diz sempre que poemas não são
charadas u enigmas para serem interpretados?”. A resposta é que este poema se
desenrola como uma pequena fábula, uma pequena alegoria, uma pequena narrativa
com personagens e uma possível “moral da história”.)
O termo usado no derradeiro verso, “anjo batalhador”
refere-se ao anjo bom que venceu, ou ao anjo mau que foi morto? Se é de anjos
que estamos tratando, não é impossível que o anjo morto e atirado ao rio (que
era também um anjo “batalhador”, é claro) possa ter sido resgatado,
ressuscitado e curado por algum colega. Ou será que os dois anjos, o bom e o
mau, não seriam apenas versões parciais de um mesmo anjo, ou cópias reversas um
do outro?
Afinal, Drummond já usou (ou melhor – viria a usar, anos
depois de Alguma Poesia) um tema
análogo em “Os Dois Vigários”, em Lição
de Coisas, onde conta a história de dois padres: o casto e piedoso Padre
Olímpio e o dissoluto e debochado Padre Júlio, cada um deles sendo o
oposto-simétrico do outro, e no final acabam “enterrados lado a lado /
irmanados confundidos / dos dois padres consumidos / juliolímpio em terra
neutra / uma flor nasce monótona.”
Esse dúbio final feliz guarda uma última sutileza para o
leitor cuidadoso. Diz o poeta que “outro
anjo pensou a ferida / do anjo batalhador”. É um uso raro, mas normal e
correto, do verbo “pensar” com o sentido de “cuidar, tratar convenientemente,
fazer curativo”. Existe inclusive o substantivo “penso” no sentido de “curativo protetor que se coloca sobre um
ferimento” (é um termo corrente em Portugal).
(Augusto dos Anjos)
Existe uma longa história
etimológica por trás dessas formações, mas basta considerarmos que a
palavra “cuidar” vibra nessa mesma região intermediária: significa “tratar com
medicamentos”, significa “preocupar-se com a situação de algo ou alguém”,
significa “pensar, ajuizar, formar um conceito mental”, como quando Augusto dos
Anjos nos diz:
Porque o amor, tal como eu o estou amando,
é espírito, é éter, é substância fluida,
é assim como o ar que a gente pega e cuida,
cuida, entretanto, não o estar pegando!
(“Versos de Amor”, em Eu e Outras Poesias)
Pensar a ferida do anjo é cuidar dela, tratá-la com um
unguento qualquer; e pode ser também ficar pensando na ferida, ficar ajuizando
aquilo, ficar fazendo-se perguntas tipo: Existem anjos bons e anjos maus? Um
anjo que mata outro pode ser bom? Se um anjo mau obriga um anjo bom a matá-lo,
isto não acaba sendo uma vitória do anjo mau, que tornou o outro igual a si?