Vou transcrever aqui a primeira versão que ouvi desta
piada, com seu inevitável sabor datado, visceralmente ligado a um momento
histórico e social.
A professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de
seu pai, contasse como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é
bombeiro, meu pai é comerciante, meu pai é motorista...
Na vez de Joãozinho, ele disse:
– Meu pai é travesti e faz strip-tease numa boite gay.
Todo mundo ficou assustado e a professora mudou rapidamente para o
próximo aluno. Depois da aula, a colega Glorinha veio falar com o menino.
– Joãozinho, eu não sabia que seu pai era travesti.
– Ele não é. Ele é jogador do Flamengo, mas fiquei com medo que a turma
me zoasse.
A anedota é um gênero literário ainda pouco analisado. O
próprio Sigmund Freud, citado amiúde, não escreveu propriamente sobre ela, e
sim sobre o “chiste”, o “gracejo” geralmente baseado num trocadilho.
A obra de Freud (Os
Chistes e a Sua Relação com o Inconsciente, “Der Witz und seine Beziehung
zum Unbewußten”, 1905) é voltada para os desvios verbais, os trocadilhos voluntários
ou involuntários, que revelam associações de idéias ocultas, reprimidas,
proibidas, etc.
Freud escreveu sobre o chiste, mas não sobre a anedota,
que é uma pequena historinha, como o exemplo acima, com leis próprias de
dramaturgia.
Uma coisa básica da anedota é que ela é (freudianamente,
também) toda baseada num mal-entendido, num duplo-sentido, numa ilusão; 90% da
anedota são uma história que parece estar dizendo uma coisa, e nos 10%
restantes, aquilo que chamamos de punchline
ou desfecho, há uma revelação, uma surpresa, uma puxada-de-tapete absoluta, que
provoca o riso.
Um aspecto interessante da anedota é que todo mundo que
escuta uma anedota ri com o seu “conteúdo”, a historinha que foi contada. Está
OK. Mas na verdade está rindo por causa de sua “forma”, essa maneira de
estruturar e contar a historinha.
Vou dar agora uma versão mais recente da piada acima:
A professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de
seu pai, contasse como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é
bombeiro, meu pai é comerciante, meu pai é motorista...
Na vez de Joãozinho, ele disse:
– Meu pai é miliciano e mata gente.
Todo mundo ficou assustado e a professora mudou rapidamente para o
próximo aluno. Depois da aula, a colega Glorinha veio falar com o menino.
– Joãozinho, eu não sabia que seu pai era miliciano.
– Ele não é. Ele é pastor, mas fiquei com medo que a turma me zoasse.
Esta versão da piada não é minha: peguei na Internet.
(“Peguei na Internet” é a fórmula atual que substitui “Aconteceu de verdade,
com o marido da minha prima”, etc.)
Repeti literalmente a verbalização do primeiro exemplo,
para ficar claro que os personagens mudam, e quem nos faz rir é a maneira
econômica, direta, tensa, com que a historinha é contada, e que faz com que a
“mecânica” funcione. Sem perda de tempo com detalhes desnecessários, sem
referências colaterais a nada que não seja a piada em si.
Existe uma comparação jocosa entre duas profissões. Essa
comparação, contudo, precisa ser feita de acordo com essa regra: preparação
breve, desfecho instantâneo.
É a qualidade literária da “Rapidez”, que Ítalo Calvino
elogiava tanto.
Essa rapidez narrativa distingue o bom e o mau contador
de piadas. Quantas e quantas vezes, numa mesa de bar, alguém começa a contar
uma piada que a gente já conhece! E sempre acontece uma destas duas coisas: 1)
alguém conta uma piada engraçadíssima, mas a estraga totalmente, porque não soube contar;
2) alguém conta uma piada banal que a gente já ouviu dez vezes, mas desta vez a
piada bate, a gente gargalha até contra a vontade.
Muita gente atribui esse “jeito para contar piada” ao
histrionismo, a facilidade de fazer caras-e-bocas, de imitar a voz dos
personagens, e de fato muita gente se vale disso. A piada pode nem ser muito
engraçada, mas “Fulano é engraçado o tempo todo”. Funciona também – mas é outra
coisa. Não é isso a raiz do humor da anedota.
A raiz desse humor consiste em 90% de preparação e 10% de
surpresa, e num modo de contar que otimiza este contraste.
Na primeira versão acima, a piada era engraçadíssima,
sim, porque o Flamengo (eram os anos 1990) vivia numa pindaíba de vitórias que
dava dó, levava goleadas a torto e a direito, vivia lutando contra o
rebaixamento. A frase de Joãozinho (digo por experiência própria) era
dolorosamente verossímil. Mas... a piada era engraçada porque comparava flamenguistas
e travestis? Bem, esse era o objetivo
da piada, mas só foi conseguido através do uso correto da mecânica: 90% de preparação e 10% de surpresa na frase final.
Na segunda versão (miliciano / pastor), a mecânica da
piada é rigorosamente mantida, e pouco importa se os alvos do deboche são os
milicianos e os pastores. O conteúdo desta piada vai mudar de dez em dez anos,
ou mesmo de dez em dez dias, não importa. A mecânica dela será sempre esta: o
garoto diz que seu pai tem uma profissão (circunstancialmente) vergonhosa para
não dizer que tem outra, aparentemente respeitável, mas que o autor da piada
quer tornar mais vergonhosa ainda.
Não duvido que a primeira formulação dessa anedota tenha
sido algo como:
Na época da Terceira Dinastia, na escola de Hatseph, às margens do Rio
Nilo, a professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de
seu pai, contasse como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é escriba
do templo, meu pai é construtor de pirâmides, meu pai é fabricante de papiro...
Na vez do pequeno Eutychius, ele disse:
– Meu pai é comerciante de peles de crocodilo.
Todo mundo ficou horrorizado e a professora mudou rapidamente para o
próximo aluno. Depois da aula, a colega Bashma veio falar com o menino.
– Eutychius, eu não sabia que seu pai era comerciante de peles de
crocodilo.
– Ele não é. Ele é sacerdote do culto de Fahd-al-Raqq, mas fiquei com
medo que a turma me zoasse.
As funções exercidas pelo personagem vão variando de país
para país, de época para época, e têm a função social de ridicularizar a última
profissão citada; é por causa disso que a gente ri. Mas quando a gente vê mais
de uma piada obedecendo à mesma estrutura, a gente percebe que a gente não
riria do “conteúdo” se a “forma” não estivesse bem aplicada. E para a forma ser
bem aplicada, é preciso que o “conteúdo” tenha um significado social para quem
escuta.
A piada desse tipo irá morrer e renascer mil vezes,
sempre substituindo os “tipos sociais” de acordo com os preconceitos da época,
a realidade social da época, os conceitos de “digno/indigno”, “sério/ridículo”,
etc., da época.
É a mecânica da
surpresa que caracteriza a anedota, que é diferente do “chiste” freudiano, embora
muitas anedotas usem um “chiste freudiano” para deflagrar sua surpresa, o que também
é totalmente válido.
A profissão de “redator de humor” é um grande paradoxo,
por ser aquela onde mais se ri e onde mais se chora. Forçado a arrancar diariamente
do cérebro uma coisa engraçada qualquer, o mísero redator vê-se muitas vezes
forçado ao mais aviltante dos recursos: o furto de uma piada alheia, e isso
acaba se tornando um hábito, depois uma obrigação, depois um direito natural da
profissão. (Como acontece na maioria das outras.)
Esse furto, quando criativo, acontece assim: a gente vê
uma piada engraçadíssima, e volta ao começo, relendo com cuidado, e separando o
que é a roupagem circunstancial (jogador do Flamengo, vendedor de pele de
crocodilo, etc.) e o que é a mecânica: De que modo é feita a preparação? De que
modo acontece o desfecho? Identificada a mecânica, basta substituir os
pesonagens, a época, o local, e projetar a anedota num universo facilmente
reconhecível pelo público.
A professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de
seu pai, como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é bonbeiro,
meu pai é comerciante, meu pai é motorista...
Na vez de Joãozinho, ele disse:
– Meu pai é coach de auto-ajuda.
Todo mundo ficou assustado e a professora mudou rapidamente para o
próximo aluno. Depois da aula, a colega Glorinha veio falar com o menino.
– Joãozinho, eu não sabia que seu pai era coach de auto-ajuda.
– Ele não é. Ele é poeta de vanguarda, mas fiquei com medo que a turma
me zoasse.
“Pano rápido.”
(Billy Wilder)