quarta-feira, 24 de abril de 2024

5055) Os prêmios literários (24.4.2024)




Os prêmios literários funcionam de maneira semelhante aos prêmios cinematográficos, musicais, teatrais, etc. Um grupo de jurados se reúne e escolhe as melhores obras, geralmente as obras lançadas num período específico (o ano tal, etc.). Os jurados mudam a cada ano. A obra que foi premiada agora, pelo grupo X, talvez não o fosse no ano passado, ou no ano que vem, avaliada por outras pessoas. 
 
Comento às vezes que “ser indicado é equivalente a ganhar”. Não é mera diplomacia. Se cinco obras são indicadas, ou dez, isto quer dizer que o júri poderá dar o “Grande Prêmio” a qualquer uma delas, pois chegando a este ponto são igualmente merecedoras. Mas... vale aqui a regra de que “todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros”. E o Oscar vai para Fulano de Tal. 
 
No interior desta situação básica, há muitas variantes. 
 
Por exemplo: um prêmio literário que se destina a obras publicadas é diferente de um prêmio concedido num concurso para obras inéditas, inscritas sob pseudônimo. São processos de natureza muito diferente. 
 
No primeiro caso, estão sendo julgadas obras conhecidas por todos. O nome do autor(a) pode pesar na escolha. 
 
No segundo caso, de obras que concorrem sob anonimato, julga-se o texto pelo texto – embora muitas vezes seja possível saber quem o escreveu. (Autores que concorrem sob pseudônimo têm variadas maneiras, explícitas ou indiretas, de indicar aos jurados qual foi o livro que inscreveram. Sempre existe alguém, com ou sem desconfiômetro algum, que tenta exercer este tipo de pressão.) 




Os prêmios de ficção científica dos EUA são atribuídos a textos de diferentes extensão: os critérios geralmente são “Melhor Romance” (“Best Novel”), “Melhor Novela” (“Best Novella”), “Melhor Noveleta” (“Best Novelette”), “Melhor Conto” (“Best Short Story”). 
 
Essa subdivisão é problemática, sim, do ponto de vista literário, mas os organizadores cravam um critério numérico que todo mundo aceita, e isto ajuda a colocar cada texto em sua gavetinha. Na última vez que chequei, os parâmetros estavam assim: 
 
Conto: até 7.500 palavras.
Noveleta: entre 7.500 e 17.500 palavras.
Novela: entre 17.500 e 40.000 palavras.
Romance: de 40.000 palavras em diante.
 
(Prêmios cinematográficos adotam uma regra parecida, fazendo a divisão entre curta, média e longa metragem.) 
 
A dificuldade aumenta quando partimos para conceitos mais amplos, porque “Melhor Conto de FC” e “Melhor Conto de Fantasia” acabam sendo questionáveis. Há incontáveis textos que, a depender de uma interpretação subjetiva, podem ser vinculados a um gênero ou ao outro. É da natureza da literatura, e muitos autores fazem de propósito – não para aperrear os júris, mas para ensinar ao leitor que um mesmo texto pode ser lido de várias maneiras.  
 
(Digressão: Aliás, a discussão “Isto é fantasia ou ficção científica?” é uma das areias-movediças conceituais que espreitam o viajante incauto nessa floresta secular, sombria. Quem pisa nesse terreno dificilmente volta para a discussão sobre o livro propriamente dito.) 
 
Saindo da FC e olhando o caso dos prêmios em geral, segmentados por gênero literário: aparentemente é simples dividi-los em “Prosa”, “Poesia”, “Ensaio”, “Não Ficção”, “Biografia”, etc. Do ponto de vista literário, esses critérios nunca são vistos do mesmo modo. Sempre há um livro renitente que pode ser visto como prosa ou como poesia, como ficção ou como não ficção, e assim por diante. Ainda bem. 
 
Devemos erguer um brinde às Exceções, que nos mostram o quanto de arbitrário e circunstancial existe na aparente objetividade das Regras. 
 
Já vi, mais de uma vez, algum autor ver seu nome na lista de indicações a um prêmio e dizer baixinho algo como (estou parafraseando!): “Mas meu livro não é poesia! É uma meditação, um ensaio fragmentado, constelar, sobre as virtualidades do existir, num século de estilhaçamento de conceitos!...”.  E eu aconselho: “Rapaz, se tu tás dentro do trem, pouco importa o vagão!”.  





(Jonathan Lethem)


Dentro da própria ficção científica existe uma discussão (puxada por Jonathan Lethem) sobre quais teriam sido os caminhos do gênero se o Prêmio Nebula de 1973 tivesse sido concedido não a Encontro com Rama de Arthur C. Clarke, como de fato aconteceu, mas a O Arco-Íris da Gravidade de Thomas Pynchon, que também estava entre os indicados. 
 
Mais detalhes aqui:
https://hipsterbookclub.livejournal.com/1147850.html
 
Aproveito para lembrar que até Jorge Luis Borges já foi indicado para este prêmio de FC, e fico imaginando sua reação sarcástica se tivesse ganho. (Foi com “Utopia de um Homem Cansado”, em 1976; Borges perdeu para “Catch that Zeppelin!” de Fritz Leiber, um grande escritor hoje esquecido.) 
 
A existência de obras ambíguas dessa natureza produziu centauros conceituais como o termo “literary science fiction”, contraposto a “genre science fiction”, ambos já fazendo parte do vocabulário resenhístico de revistas como a Locus
 
Existem muitos jovens (=pessoas mais novas do que eu) em busca de um tema para tese ou dissertação acadêmica. Se eu tivesse mais anos pela frente eu me dedicaria a estudar esse curioso fenômeno dos gêneros literários, que são cistos populares dentro da literatura “propriamente dita” (há um esnobismo deliberado nesta expressão). 
 
O texto impresso, pós-Gutenberg, ao mesmo tempo popularizou o livro (onde havia 100 cópias manuscritas de uma obra passou a haver 100.000 impressas) e o elitizou (o livro impresso também não é acessível a todo mundo –  somente a quem é alfabetizado e tem algum dinheiro). 
 
Os prêmios literários são apenas uma entre muitas instâncias em que existe a literatura literária (uma espécie de Sala Vip para quem preenche uma série de requisitos) e a literatura de gênero, ou popular, ou popularesca, ou de massas, ou de entretenimento. A primeira delas inveja as vertiginosas vendagens da segunda. A segunda inveja a visibilidade, a respeitabilidade e as honrarias concedidas à primeira. 
 
Um prêmio é importante? Sem dúvida. Há prêmios em dinheiro que podem equilibrar as finanças de um autor para o resto da vida. (Este, claro, é o ponto de vista de um septuagenário.)
 
Há prêmios onde a remuneração é modesta, ou simbólica; mas a repercussão é grande, junto à imprensa e ao público. Um prêmio pode fazer decolar uma obra de valor que até então estava na obscuridade. Foi o que aconteceu com Jorge Luís Borges ao ganhar na Europa o Prêmio Formentor, aos 61 anos. Do dia para a noite o mundo inteiro tomou conhecimento dos contos que ele tinha escrito vinte anos atrás. 
 
Cada prêmio tem seu viés. Voltando ao território da ficção científica, o Prêmio Hugo é votado pelos fãs, pelos leitores, no contexto da Convenção Mundial de FC que se realiza todo ano. É um prêmio de popularidade, por assim dizer. O Prêmio Nebula é votado pelos membros da SFFWA, entidade que reúne escritores, editores, críticos, etc., nos campos da FC e da fantasia; é um prêmio mais exigente em termos literários (em tese, pelo menos). 
 
Eu tenho uma simpatia especial pelo Prêmio Philip K. Dick, concedido anualmente ao melhor livro inédito publicado em formato de bolso (“paperback”). Dick foi um grande escritor que publicou, nesse formato “de pobre”, livros que hoje são clássicos da FC, re-publicados em edições de luxo, caríssimas. Quem primeiro reconheceu seu talento, e apostou nele, foi o livro de bolso.