Ontem, a Seleção Brasileira, de saudosa memória, deu o ar
de sua graça no Estádio de Wembley.
Ou melhor – na “arena” que os ingleses construíram no
local onde existia antigamente o Estádio de Wembley, chamado pelos nossos
altissonantes locutores “o templo do esporte bretão”.
Foi o primeiro jogo sob o comando de Dorival Júnior,
substituindo Fernando Diniz, que após bons resultados iniciais (abre o olho,
Dorival) enfileirou uma série de derrotas.
(Dorival Júnior)
Não vou analisar o estilo dos dois técnicos, simpatizo com ambos,
acho que no futebol brasileiro de hoje em dia são dois talentos importantes,
como mostram os títulos que ambos ganharam nos anos mais recentes, por diferentes
clubes.
O que eu quero falar é algo mais abstrato que não tem
nada a ver propriamente com o dia de hoje, é algo do próprio ofício do futebol. Um clichê do ofício, que posso resumir na seguinte fórmula:
1) Técnico
de clube é uma coisa, técnico de seleção é outra.
2) Existem
duas possibilidades para um técnico: adaptar os jogadores a um esquema de jogo que
ele já traz na cabeça, e adaptar o esquema de jogo aos jogadores de que dispõe.
(São pontos extremos, claro – todo técnico mistura as duas coisas.)
O item 1 quer dizer:
O técnico de clube tem o ano inteiro para trabalhar com
seu elenco, vários dias por semana. Conversa, treina, convive, explica no
quadro-negro, comemora triunfos, choraminga derrotas, treina de novo, muda o
time, experimenta, volta a treinar... Meses seguidos, com (basicamente) os
mesmos jogadores. Que muitas vezes não foram escolhidos por ele – quando ele
chega no clube, o elenco já existia. Aos poucos (quando pode) ele pede à
diretoria: preciso de Fulano, de Sicrano... Quando pode.
O técnico de Seleção senta com seus assessores e diz:
Quero Fulano, Sicrano e Beltrano. É a famosa convocação. Ele convoca quem quer,
e em 90% dos casos o jogador vem mesmo. (Os 10% ficam por contra de contusões,
de sabotagem por parte do clube onde o cara joga, etc.)
Ele pode chamar Os Melhores. Mas tem pouquíssimo tempo para
treinar, a não ser quando é preparação para a Copa. Ele aposta na qualidade do
elenco. São os melhores? Pode até ser que sim, mas muitas vezes jamais jogaram juntos,
jamais conviveram, não se sabe “como vai ser a química”. São profissionais responsáveis?
Claro. Mas são também celebridades, cada um deles vive cercado por uma entourage que buzina pressões no seu
ouvido o tempo todo. Nunca se sabe como vão se comportar.
Ou seja: o trabalho no clube é a longo prazo, rola muito
aquela conversa de “a equipe está ganhando entrosamento, vai crescer ao longo
da competição...”. O trabalho na Seleção é de curtíssimo prazo. É reunir o
grupo na terça, pra ganhar o jogo no domingo, valendo 3 pontos.
E quanto ao item 2:
Todo técnico tem suas idéias de como uma equipe deve
jogar, em diferentes situações. Há técnicos mais defensivos, outros que gostam
mais de atacar, existe a Igreja Posicional dos Quadrângulos Numéricos... Mas ao
mesmo tempo o técnico olha em torno e tem que saber até que ponto o grupo é
capaz de executar o que ele tem em mente.
Alguém dirá: “Mas ele é o comandante do grupo, basta
explicar e exigir obediência!” Isso pode funcionar em quartel, mas duvido que
funcione muito no futebol, inclusive quando o técnico chega de automóvel para o
treino e quatro ou cinco jogadores chegam de helicóptero.
O técnico que tem um esquema na cabeça é um pouco como os
diretores que têm o filme na cabeça, e exigem que todo mundo faça o filme que ele quer fazer. Diretores como Alfred
Hitchcock ou Stanley Kubrick.
(Alfred Hitchcock)
Um jornalista perguntou a Hitchcock: “É verdade que o
senhor disse que atores de cinema são gado?...”
E Alfred respondeu: “Isto é uma calúnia. O que eu disse foi que eles
devem ser tratados como gado.”
Hitchcock era o homem do roteiro e do storyboard. Ele escrevia o filme inteiro
junto com o roteirista, e depois desenhava o filme inteiro, plano por plano.
Quando entrava no estúdio para o primeiro dia de filmagem, entrava bocejando,
entediado, porque para ele o filme já estava pronto. E ai de quem discordasse
de um ângulo de câmera, de uma frase do diálogo.
Kubrick era mais aberto à improvisação, ao acaso – e por
isso mesmo experimentava em excesso durante a filmagem, até de forma desumana,
mandando um ator repetir a mesma fala ou a mesma ação 120 vezes. O filme não vinha
já pronto em sua cabeça, mas ia se formando em sua cabeça; todo mundo trazia
200 opções e ele batia o martelo. Ele.
(Stanley Kubrick)
Diretores assim são como coreógrafos. Eles tem um “desenho”,
um “esquema”, um diagrama abstrato do que deverá ser o filme, e exigem que a
equipe execute isso.
É mais ou menos a maneira de trabalhar, acredito eu, de
técnicos como Pep Guardiola ou Fernando Diniz, dois workaholics com idéias muito claras sobre o que querem ver em
campo, e capazes de dirigir seus jogadores como um coreógrafo dirige seus
bailarinos. O bailarino é bom quando sabe cumprir o que foi desenhado no papel.
(Pep Guardiola)
O outro tipo de técnico é um cara que sem dúvida tem as
suas coreografias preferidas, mas guarda isso no bolso e pensa em primeiro
lugar no grupo que está recebendo quando chega no clube. Não adianta pensar num
jogo de alta velocidade quando o elenco quase todo é idoso, ou pesadão, ou está
fora de forma porque o trabalho físico no clube tem sido deficiente.
Esse técnico tem que olhar o grupo, fazer os primeiros
treinos, confirmar as impressões que já tinha (quando é um clube que ele
conhece bem à distância), e começar a armar o melhor jogo possível com o
material que ele tem em mãos.
É como um arquiteto que pode ter na cabeça alguns
projetos geniais e mirabolantes de residência, mas sempre vai ter que atender
as necessidades do cliente, o gosto pessoal do cliente, as condições físicas do
terreno do cliente, e assim por diante. Ou um arranjador musical que vai fazer
os arranjos de um disco e lhe oferecem um quarteto de câmara, um DJ, oito
percussionistas e duas guitarras: “O que tem é isso; te vira”.
(Fernando Diniz)
Um trabalho como o de Fernando Diniz tem mais condições
de render num clube, como tem rendido bons resultados no Fluminense, basta ver
os títulos recentes e inéditos que conquistou. É um trabalho de cima para
baixo, que um elenco precisa de tempo para assimilar, “mecanizar”, tornar quase
instintivo, com reações, respostas e opções-de-jogada decididas em frações de
segundo.
Bem mais difícil aplicá-lo numa seleção, onde o grupo se
reúne por dez dias de tantos em tantos meses.
Em casos assim, parece dar mais certo o jeito de Dorival
Júnior, também um bom técnico, que me lembro de ter visto no melhor time do Santos
nos últimos tempos (o de Neymar e Ganso), no Flamengo recente, e por último no
São Paulo, ganhando também um título inédito.
(Vicente Feola)
Dizem que Vicente Feola não interferia quase nada no que
o time fazia. Já vi jornalista dizer (em momento de euforia): “Feola ganhou a
Copa de 58 na hora da convocação”. Ou seja: era só distribuir o grupo em campo,
e quando algo não ia bem o próprio grupo chegava para ele e dizia: “Tem que
botar esses meninos que estão no banco, Garrincha e Pelé.” E ele botava.
Dorival Júnior vai fazer uma boa sequência na Seleção?
Tomara que sim. Não sou mais de torcer por Seleção, e até os meus times
preferidos eu acompanho à distância, pelo rádio. Gosto do futebol bem jogado.
Admiro “técnicos de esquema” como Guardiola e “técnicos de grupo” como
Ancelotti, do Real Madrid. O jogo sendo bonito e eficaz, fico satisfeito.
Porém, quando olho o trabalho de um técnico de futebol é
como se estivesse olhando o trabalho de um diretor de cinema, de um maestro de
orquestra sinfônica, de um diretor de teatro ou dança. Há um grupo de jovens
talentosos, e a gente precisa saber que nenhum grupo é igual aos outros. Como
trazer de casa a idéia de uma Obra, e conseguir juntar essa idéia à realidade
desse Grupo, e conseguir produzir uma terceira coisa, que ainda não sabemos o
que vai ser?
(Fitzcarraldo, dirigido por Werner Herzog)