O filme mais recente de Wim Wenders, realizado no Japão,
é mais uma dessas combinações improváveis que têm uma boa probabilidade de não
dar certo, mas acabam funcionando. Um filme despretensioso, no sentido
ocidental, e um filme com endereço certo, no sentido oriental.
Os arqueiros zen dizem que você deve retesar o arco e
apontar a flecha para o alvo, mas sem dispará-la. Quando o alvo e a flecha
estiverem perfeitamente alinhados (e o olho humano é incapaz de perceber isso),
a flecha se disparará sozinha.
No futebol existe o conceito do “chute despretensioso”,
que em geral é um chute dado de looonga distância, aquelas bolas que o jogador,
lá da linha lateral ou do meio do campo, joga na direção do gol pra ver se
alguém a empurra para dentro, e quando menos espera vê que fez um gol – como
aquela falta de Ronaldinho Gaúcho contra a Inglaterra, na Copa de 1998.
A prefeitura de Tóquio mandou construir, de olho nos
Jogos Olímpicos de 2020, uma série de banheiros públicos, desenhados por vários
arquitetos, em pontos diferentes da cidade. Foi o projeto chamado The Tokyo
Toilet. Para divulgar o projeto, chamaram Wim Wenders, ao que parece para que
ele dirigisse uma série de comerciais curtos. Ele propôs fazer um longa de
ficção.
O filme foi escrito por ele e Takuma Takasaki em três
semanas, e filmado em mais 17 dias. Juntando tudo (montagem, edição de som,
etc.), poucos meses de trabalho e um filme minimalista, com poucos atores, rodado
quase todo em locação.
Gostei deste filme principalmente pelo fato de que ele
nos permite ver um homem que mora sozinho, não é rico nem pobre, e está
satisfeito com a vida que leva.
Na verdade, para mim foi um filme cheio de suspense,
porque fiquei imaginando o tempo todo que na última meia hora de filme ele iria
se apaixonar por uma japonesinha charmosa, ou iria ser perseguido pela Yakuza,
que invadiria seu modesto duplex para disparar rajadas de metralhadoras nas
plantas que ele “agôa” com tanto carinho.
Felizmente não era um filme americano.
(Wim Wenders)
É um filme de Wim Wenders, e retoma suas obsessões, seus
personagens permanentemente em trânsito, as engenhocas eletrônicas (câmeras,
gravadores) com que eles registram o presente e recuperam o passado, seu
relacionamento distante e contemplativo. E a sensação de que (como se diz em
algum diálogo deste filme) as pessoas vivem em mundos diferentes, mesmo quando
se cruzam na avenida, mesmo quando pertencem a uma só família, mesmo quando
estão conversando umas com as outras.
Talvez o momento em que Wenders encontrou a melhor
concretização dessa sua idéia foi em Asas
do Desejo (1987), quando ele mostra um par de anjos vestindo sobretudo e andando
por Berlim sem serem percebidos: vigiando, analisando, comentando
invisivelmente. E a cena notável em que Peter Falk, comendo um sanduíche num
trailer, sente a presença do anjo (que está parado à sua frente) e, sem vê-lo,
conversa com ele.
Wenders passou a vida filmando pessoas em mundos paralelos,
pessoas igualmente reais mas que estão (por assim dizer) em frequências de onda
diferentes. Até conseguem se ver, se tocar, mas esses contatos não perduram.
Como a moça que faz lanche num banco de um parque, perto de Hirayama: ela olha
para ele como se o visse através de um telescópio. Percebe a presença dele mas
sabe que estão a um universo de distância. Nada têm em comum. São como os
números que são “primos entre si”.
Outro momento semelhante é a famosa sequência de Paris, Texas (1984) das mulheres que se
despem diante de uma câmera enquanto um homem as voyeuriza na extremidade
oposta do circuito. Proximidade física, mundos diferentes.
Wenders percebeu a sutileza que cerca o trabalho
executado por Harayama: limpar privadas dos banheiros públicos. Ele despeja
água, limpa, esfrega, passa álcool, recolhe o lixo, limpa aqueles banheiros já
de si limpíssimos. Como duas pontas extremas que se tocam, a Sujeira e a
Limpeza.
E nesse toque tocam-se também dois extremos sociais,
porque a irmã de Harayama aparece a certa altura do filme num carro
moderníssimo, com motorista, e olha com visível repulsa o lugar simplezinho onde
ele habita. Vê-se que Harayama rompeu de forma brusca com uma família podre de
rica, uma família coberta de horror porque um deles trabalha agora como
limpador de privadas.
Essa irmã rica vive numa cultura em que sujar é normal,
mas limpar é vergonhoso. O que puxa por um outro fio, o da canção de Gilberto
Gil “A Mão da Limpeza”, onde ele pega o nosso contexto brasileiro (muito
diferente do japonês) e questiona essa idéia.
Mesmo depois de abolida a escravidão
Negra é a mão de quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
Negra é a mão, é a mão da pureza
Negra é a vida consumida ao pé do fogão
Negra é a mão nos preparando a mesa
Limpando as manchas do mundo com água e sabão
Negra é a mão de imaculada nobreza.
Aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=3nId4SUxlns
Harayama, com seu risinho tranquilo, seu auto-apagamento
voluntário, seu olhar que não perde nada do que acontece em torno, parece estar
pensando: “Sujar é normal, limpar também, se todos nós sujamos, por que não
limpamos todos também?”.
Depois de ver o filme fiquei um tempo aqui na janela,
velando o sono da cidade, e pensando. Por que foi que fiquei pensando nessas
coisas enquanto assistia um filme? E me ocorreu: porque nesse filme as pessoas
não falam o tempo todo. É um filme que deixa um tempo para a gente pensar.
O saudoso Peter Przygodda, montador de vários filmes de
Wim Wenders, tinha uma teoria de que o cinema (isso era nos anos 1970) estava
indo numa direção de planos cada mais mais rápidos, mais picotados, para evitar
que o público pensasse. Ele chamava isso de “cinema fascista”, por ser um
cinema que inibe o raciocínio e a comparação de idéias, e repousa apenas na
capacidade sensorial de absorver imagens rapidíssimas.
Dizia ele: “Nos filmes de Wim Wenders, há planos longos
que dão tempo do espectador fazer perguntas a si mesmo e ao filme; o filme e o
público respiram juntos, avançam juntos, sem pressa.”
Personagens lacônicos aparecem no cinema de Wim Wenders,
como se nos prevenissem: “Não vou explicar nada. Olhe. Preste atenção nos
detalhes. Vá deduzindo.” Voltando um
pouco, inclusive, à estética do cinema mudo, em que os planos demoravam um
pouco mais para que o olhar do espectador pudesse procurar e encontrar os
elementos que o diretor colocou naquela imagem para dar um recado qualquer.
O diretor e o espectador estão também em universos
afastados, não se veem, não podem conversar cara-a-cara, é preciso recorrer a
esse sistema intermediário de imagens, histórias, etc. O diálogo, porém, não é impossível. E neste
filme há uma minúscula metáfora disso quando Harayama percebe num banheiro um
papelzinho semi-oculto com um jogo-da-velha inacabado. E nos dias seguintes ele
e esse usuário invisível conversam, com jogadas sucessivas rabiscadas no papel.
Como o narrador do conto de Guimarães Rosa, “São Marcos”,
que rabisca frases num bambuzal e depois percebe que alguém está lhe
respondendo, lhe desafiando. Ele batiza esse interlocutor de “Quem Será”.
Quem serão essas pessoas com quem estou conversando? É o
que todo diretor de cinema, escritor, etc., se pergunta de vez em quando. Ele
pode estar sentado num avião ao lado de uma pessoa com quem não tem nada a ver,
e estar em sintonia com um espectador ou leitor do outro lado do planeta,
alguém que está na sua frequência de onda.
Dias Perfeitos,
longe de ser um filme perfeito, é um filme despretensioso porque se volta para
o mínimo, o pobre, o comum. Certos momentos do filme, em sua banalidade
cotidiana, lembram a famosa cena neo-realista da empregadinha enchendo de água
um caneco e jogando-a na fileira de formigas que cruza a parede. É a beleza do
banal.
Que não cancela a beleza do super-espetáculo, por certo.
Eu continuo fã de O Leopardo, de 2001, uma Odisséia no Espaço, de Lawrence da Arábia. O que faz um filme
prender a atenção da gente não é a perfeição visual, nem a escala, nem o peso
da ficha técnica. São as coisas que o filme suscita na gente durante as
imagens.
Dias Perfeitos
me trouxe à memória outro filme recente, Paterson
(2016) de Jim Jarmusch, um cineasta com mais de um ponto em comum com Wenders.
O filme tem um protagonista parecido, um motorista de ônibus que lê Emily
Dickinson e William Carlos Williams, e escreve poesia nas horas vagas. A poesia
é um fio que une pessoas distantes: há uma cena em que o motorista encontra um
japonês, leitor de Williams, que veio conhecer a cidade sobre a qual ele
escreveu.
Harayama, no filme de Wenders, lê obras de William
Faulkner e Patricia Highsmith; e ouve rock antigo em fitas cassete. Fitas
cassete, no universo de Wim Wenders, são pequenos talismãs, pequenos objetos
mágicos, e deve ser por isso que o diretor faz um discreto cameo na cena da loja de fitas.
No filme Kings of
the Road (“Im Lauf der Zeit”, 1976), um personagem começa a cantarolar um blues de Robert Johnson e o outro
comenta: “Os ianques colonizaram nosso
inconsciente”. A música dos EUA é outro fio que costura quase todos os
filmes de Wim Wenders e estabelece uma “frequência de onda” aproximando pessoas
de universos afastados.
Harayama ouve suas fitas de rock enquanto dirige, e a câmera
fecha em seu rosto, mostrando o minimalismo de suas reações. E como a cena se
demora, comecei a pensar nesse impacto do repertório musical (que é
visivelmente o da memória afetiva de Wim Wenders).
A música cria uma espécie de canal telepático entre nós e
o personagem. Se eu estou olhando o rosto do ator enquanto ele escuta um pop japonês qualquer, eu o observo à
distância, com uma espécie de simpatia antropológica. Dou um crédito de
confiança ao filme, e admito que aquilo deve ter uma ressonância qualquer
naquele sujeito antípoda.
No entanto, quando a música que aparece é a voz de Patti
Smith cantando “Redondo Beach” ou a de Van Morrison cantando “Brown Eyed Girl”,
a cena muda 100%, porque através desse canal de memória compartilhada eu sinto
esse personagem muito próximo, muito na minha frequência de onda. A imagem é a
mesma, mas por uma espécie de “Efeito Kulechov sonoro”, o significado da imagem
é totalmente condicionado e definido pela música.
Para um instante da vida ser diferente, basta estar
tocando outra música.
(KOMOREBI: é a
palavra em japonês para o tremeluzir de luzes e sombras criado pelas folhagem
que se agita ao vento; existe uma vez apenas, e naquele instante)