Ítalo Calvino é um dos grandes fabuladores do nosso
tempo, um desmentido vivo àquela falsa dicotomia que opõe os “contadores de
histórias” aos “estilistas”, ou a “literatura de enredo” à “literatura de
estilo”. Calvino é mestre nas duas.
O Barão nas Árvores
(1957) é o segundo livro de uma trilogia que inclui O Visconde Partido ao Meio (1952) e O Cavaleiro Não-Existente (1959).
Este último já comentei aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2023/05/4938-o-cavaleiro-nao-existente-352023.html
O Barão é, nos primeiros parágrafos da história, apenas
um garoto, filho da aristocracia rural da Ligúria (noroeste da Itália), que na
hora da refeição recusa-se a comer um prato que lhe desagrada, bate-boca com os
pais, foge pela janela, pendura-se nos galhos de árvore mais próxima e jura de
pés juntos que nunca mais pisará no chão, em sinal de protesto. E o faz.
Cosimo passa a viver de galho em galho, como Tarzan,
saltando pelos cipós, dormindo em forquilhas confortáveis. Nos primeiros
capítulos, enquanto a família se desespera e tenta negociar, Calvino explica
como o rapaz, que é inteligente cheio de recursos, resolve durante os meses
seguintes os seus novos problemas de sobrevivência – comida, dormida, higiene,
roupas, etc.
Daí em diante são muitas as aventuras. Um escritor
contemporâneo (leitor dos manuais que nos pressionam a “fazer suspense”,
“obrigar o leitor a virar páginas com rapidez”, etc.) passaria a inventar
situações cada vez mais melodramáticas em que o rapaz estivesse a ponto de ser
forçado a botar o pé no chão, mas escapasse por um fio.
As situações até se apresentam – perseguições armadas,
lutas contra piratas, amizade com salteadores, invasão do exército francês...
Até mesmo um encontro pessoal com Napoleão Bonaparte, o imperador em seu cavalo
e Cosimo no seu galho. Mas a essa altura o leitor nem se interessa se ele vai
descer ou não. O autor impôs, com seu estilo de narrar, um novo conceito de
normalidade. Não queremos saber se Cosimo “vai voltar” ou não. Ele criou uma
nova regra para o mundo em que vive.
A história é narrada na primeira pessoa pelo irmão mais
novo de Cosimo, o que permite um certo distanciamento muito útil. Quando algum
detalhe da história não se encaixa direito, ou quando falta uma explicação, o
narrador simplesmente diz: “não sei como aconteceu, há várias versões” – e
estamos conversados.
(ilustração: Yan Nascimbene)
É uma história ambientada na virada do século 18 para o
19 (acompanhando os mais de 60 anos da vida de Cosimo), e tem um formato
aparentado aos “contos filosóficos” daquele tempo, semelhança ainda maior
quando pensamos que o Barão Cosimo, acima de tudo um estudioso, se corresponde
com Voltaire, Rousseau e outros intelectuais da época.
Ele se torna, inclusive, autor de um Projeto Constitucional para uma Cidade Republicana, com uma Declaração
dos Direitos do Homem, Mulheres, Crianças, Animais Selvagens e Domésticos,
incluindo Aves, Peixes e Insetos, e toda a Vegetação, sejam Árvores, Legumes ou
Grama.
Calvino, como já falei, é um grande contador de histórias,
e indivíduos com esse talento geralmente sabem extrair uma história de cada
personagem que lhes passa pelo teatro da mente. Os membros da família de Cosimo
Rondò vão sendo apresentados ao longo da narrativa, e cada qual tem sua cena,
seu episódio marcante, antes que o narrador retorne à vida do tarzã-da-Ligúria.
O argumento do livro lembra um pouco aqueles indivíduos
imprevisíveis que um belo dia tomam uma decisão meio gratuita, meio absurda,
mas mantêm-se fiéis a ela pelo resto da vida. É o velho pai de “A Terceira
Margem do Rio” de Guimarães Rosa, que embarca numa canoa e passa seu resto de
vida remando à toa, na água, sem falar com ninguém e sem voltar à terra firme. É
o “Wakefield” de Nathanael Hawthorne, que um dia não volta para casa, apenas
desaparece, e durante vinte anos fica espreitando de longe a esposa e vendo
como ela reage ao seu desaparecimento. É o “Bartleby” de Herman Melville que,
do dia para a noite, prefere não fazer nenhuma das tarefas que o patrão lhe
atribui, no escritório.
Essas venetas repentinas, que podem parecer sintoma de
loucura, correspondem, no seu rigor e na sua gratuidade, a certas “contraintes”
(“constrições, limitações auto-impostas”) que um escritor pode impor a si
mesmo, e que são um elemento fundamental do pensamento do grupo de que Calvino
fez parte, a OuLiPo (Ouvroir de
Littérature Potentielle, “Oficina de Literatura Potencial”).
(ilustração: Yan Nascimbene)
Os membros da OuLiPo (Calvino, Georges Perec, Raymond
Queneau, Jacques Roubaud, Harry Matthews e outros) consideravam que uma
liberdade plena acarreta uma frouxidão plena, e que a criatividade do autor é
estimulada e potencializada quando ele impõe para si mesmo uma regra
arbitrária, inventada, sem nenhuma razão-de-ser aparente, mas apega-se a ela e
procura criar a obra escrupulosamente dentro desses limites.
É o que faz o Barão Cosimo. “Nunca mais pisarei no chão!”
– e por mais de cinquenta anos ele vive de galho em galho, ali ele mora,
namora, dorme, passeia, trabalha, ajuda a apagar incêndios, ajuda a organizar
uma resistência armada durante a guerra. Ali ele estuda e escreve obras
filosóficas; e essa limitação auto-imposta torna-se parte de sua personalidade,
de sua biografia. A tal ponto que depois de certa altura seria impensável um
Cosimo caminhando no chão, pelas alamedas do castelo da família.
Seu universo se reorganiza de forma a ter como centro a
folhagem das árvores, as quais felizmente são abundantes naquela região. Mas o
narrador, a certa altura, conta como ele, chegando aos limites de suas
propriedades, se depara com um espaço vazio, não-arborizado:
Esse descampado, para Cosimo, era uma visão que o enchia de
desconforto. Tendo vivido sempre em meio à vegetação espessa de Ombrosa, com a
segurança de poder chegar a qualquer lugar seguindo seus próprios caminhos, bastava
ao Barão ver diante de si um espaço vazio e intransponível para ser tomado por
uma sensação de vertigem.
(The Baron in the
Trees, Picador, trad. ing. Archibald Colquhoun, trad. port. BT)
Em Viagem ao Centro
da Terra, Jules Verne fazia seus personagens, antes de descerem ao mundo
subterrâneo, subirem à torre da igreja para tomar “lições de abismo”. A lição
de abismo de Cosimo é horizontal. Não haver árvores, para ele, equivale a não
haver chão. É um espaço inacessível que lhe causa terror; um não-espaço.
(ilustração: Yan Nascimbene)
O irmão-narrador confessa:
Eu acompanho o noticiário, leio livros, mas eles me desnorteiam, o que
ele tinha para dizer não se encontra ali, porque ele compreendeu alguma coisa a
mais, alguma coisa que abrangia tudo, e ele não conseguia explicar isso com
palavras: somente vivendo como vivia. Somente sendo tão autenticamente ele
mesmo, como meu irmão o foi até sua morte, ele poderia deixar alguma coisa para
todos os homens.
Em seu clássico Cidades
Invisíveis, Calvino enumera dezenas de cidades fantásticas e a certa altura
sugere que a humanidade sonha com uma espécie de “cidade contínua” onde todas
se misturam; algo disso já existe nas grandes metrópoles de hoje, onde espaços
de serviços se repetem (aeroportos, supermercados, shopping centers, hotéis,
etc.) de tal modo que podemos mudar de cidade sem mudar de ambiente. Cosimo
criou para si uma cidade contínua feita de diferentes bosques, diferentes jardins,
diferentes matas selvagens, mas seu universo era definido pela existência ou
não de árvores.
Para os que entendem inglês, aqui há uma simpática sessão
de leitura e debate, em que o ator Richard Gere lê trechos de The Baron in the Trees, e depois debate
a obra com Giovanna Calvino, filha do escritor.
https://www.youtube.com/watch?v=BYx5VkYf7eY