O técnico alemão Jürgen Klopp anunciou na sexta-feira, 26 de janeiro, que no fim desta temporada irá deixar o Liverpool, onde vem trabalhando há 9 anos.
Este período foi inesquecível para quem acompanha o bom futebol, porque ele pegou o time dos “Reds” lá embaixo, deu-lhe uma injeção de ânimo e de tática, e ganhou sete títulos em nove anos, entre eles a Champions League, o campeonato inglês (que o time não ganhava há 30 anos)... e, por último mas não abaixo, derrotou o Flamengo na decisão do Mundial de Clubes da Fifa.
Adorado pela torcida, apoiado pelos jogadores, respeitado pela diretoria, admirado pelos adversários, por que motivo Klopp, um rapaz de apenas 56 anos, iria desistir?
Ele disse:
"O coelho percebe que ele não é mais jovem quando nota que não consegue mais pular tão alto quanto pulava antes... (A decisão de sair) Não é algo proposital, simplesmente aconteceu. Esse clube e esse time precisam de um técnico top, do mesmo nível de todos eles. E, quando eu acho que não sou mais capaz disso, tenho que me posicionar. Por isso comuniquei a decisão ao clube e a todos aqui. Acho que é a coisa certa a fazer", iniciou.
"Eu estou trabalhando no futebol há 24 anos, e, quando você tem uma carreira como a que eu tive, tem que investir tudo isso. Agora me dei conta que meus recursos não são infinitos. Por isso, prefiro gastar o resto do que eu tenho nesta temporada. Não sou mais jovem como antes... Não consigo mais pular como eu pulava...", metaforizou.
A decisão de abandonar um trabalho “por não se sentir à
altura das exigências” é uma coisa que acontece a qualquer profissional. Principalmente
os que lidam com o corpo: atletas, dançarinos e dançarinas, artistas de circo,
atores e atrizes... Pessoas cuja performance física tem que estar sempre
“batendo no teto”.
O corpo é, em última análise, um recurso não-renovável. Vai até um certo ponto, apenas. No futebol, estamos acostumados a ver atletas que largam as chuteiras com 30-e-poucos anos, mas também outros que vão até 40+ anos jogando com eficiência. Não há dois corpos iguais.
“Mas, um técnico?... Técnico não corre!”.
Entra aí um outro aspecto, que é o desgaste físico e mental do técnico. Ele não serve apenas para falar diante de um quadro-negro.
(Pep Guardiola e Jürgen Klopp)
Chamam o estilo de Klopp “Heavy Metal”, porque defende um
envolvimento físico e mental extremo, ao contrário do futebol cerebral de Pep
Guardiola. Comentando o estilo deste quando estava à frente do Barcelona, Klopp
declarou:
Não é meu tipo de jogo. Não gosto de ganhar com 80% de posse de bola. Não é o bastante para mim. Meu jogo é futebol de luta, e não futebol de serenidade. Na Alemanha chamamos esse estilo de “Inglês”: dia de chuva, campo enlameado, placar de 5x5, todo mundo sai com a cara coberta de lama, vai para casa e fica semanas sem conseguir jogar de novo. (Wikiquotes, trad. BT)
Eu comparo a função de um técnico de futebol em alto nível à função de um diretor de cinema em alto nível. É desgastante, ocupa 24 por dia a cabeça de um indivíduo, porque ele tem que resolver problemas abstratos de certa complexidade e ao mesmo tempo motivar equipes de dezenas de pessoas.
O técnico tem que conversar, discutir, brigar, fiscalizar, confraternizar, negociar, argumentar... mas não apenas com os jogadores. Ele tem que fazer o mesmo com funcionários, preparadores físicos, médicos, administradores, diretores de futebol do clube. Assim como um diretor de cinema precisa conversar com motoristas, eletricistas, donos de laboratório, financiadores, gente da rua que vem peruar as filmagens...
Por mais que haja uma equipe para ajudá-lo, o diretor de
cinema precisa se envolver com tudo. A menos que trabalhe num daqueles esquemas
onde o diretor é uma prima-dona que fica no ar condicionado esperando um
assistente vir avisar: “Senhor, o set
está pronto, pode vir.”
Técnicos recentes que passaram pelo Flamengo (o clube que eu acompanho mais de perto) fracassaram, não porque lhes faltasse inteligência e conhecimento de futebol, mas porque não conseguiram criar um relacionamento produtivo com todos esses níveis de diferentes profissionais. Foi o caso de Paulo Sousa, Vitor Pereira e Jorge Sampaoli.
Disse Klopp, na entrevista em que anunciou sua decisão:
"Eu sou quem eu sou e estou aonde estou pela maneira que sempre fui. Se eu não consigo mais fazer as coisas como antes, preciso parar. Essa não era minha ideia quando renovei o contrato (até 2026). Eu estava 100% convencido de que conseguiria levar até 2026. Só que eu achei que meus níveis de energia eram infinitos. Eles sempre foram. Mas agora não são mais...", lamentou.
"Eu nunca consegui viver uma vida normal. Essa é a verdade. Antes, ter três ou quatro semanas de férias estava OK, mas não dá mais. Não vou comandar qualquer clube nem qualquer seleção no próximo ano. E nunca mais vou comandar outro time na Inglaterra, isso eu posso prometer. Mesmo que eu esteja morrendo de fome, isso não irá acontecer", garantiu.
Porque o Grande Artista (vamos considerar, por hipótese-de-trabalho, que a um técnico de futebol aplicam-se muitos critérios de criatividade e alta-performance que são aplicáveis aos artistas) muitas vezes deixa-se levar pelo conceito (que é típico do esporte) de ser sempre o primeiro, sempre o melhor.
Sabia muito bem disso Gabriel Garcia Márquez quando, depois de seu sucesso de vendagem mais estrondoso (Cem Anos de Solidão) publicou seu livro mais difícil, O Outono do Patriarca, como se dissesse: “Eu não quero competir com meu sucesso anterior. É proposital.”
Por sorte o Prêmio Nobel de Literatura só pode ser atribuído uma vez a cada pessoa, porque se não fosse assim algumas figuras estariam até agora “mexendo os pauzinhos” para ganhar o seu segundo e “tornar-se o maior de todos”.
Mas o futebol não é arte – é esporte. É competição, é concorrência, e nesse sentido está muito mais imbuído desse espírito, que é sempre o de fazer trinta e dois jumentos disputarem uma única cenoura.
Pelos talentos que tem, e pela sua personalidade simpática, Klopp poderia ficar muitos anos no Liverpool. Podia até bater o recorde de Sir Alex Ferguson, aquele velhote corado, mascador de chicletes, que passou 27 anos como técnico do Manchester United, e só se aposentou com mais de 70.
(Sir Alex Ferguson)
Quando um indivíduo no seu auge físico e mental – é assim que eu vejo a idade por volta dos 56 anos – diz que não consegue mais produzir no nível a que estava acostumado, e no nível que se espera dele, dá para considerar que seu trabalho é uma atividade predatória, que transforma uma pessoa talentosa num bagaço-de-cana, muito antes do que se podia imaginar.
Dias atrás eu estava vendo Ginger e Fred, de Federico Fellini, onde uma dupla de dançarinos idosos (Giulieta Masina e Marcello Mastroianni) emerge da aposentadoria para se apresentar num programa de TV com perfil nostálgico. Não dançam mais como antes. Não têm mais a mesma energia. Não têm mais a mesma beleza, o mesmo charme. Não querem competir com ninguém, não querem ganhar troféus, querem apenas dançar de novo, livres do pesadelo do sucesso, só pelo prazer de estar dançando.
Como diria Philip K. Dick:
Qualquer criatura incapaz de perceber a diferença entre um ser humano e uma máquina é uma máquina, mesmo que seja um ser humano.
(Klopp e sua esposa, a escritora Ulla Sandrock)