quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

5025) Minha Lapa boêmia (24.1.2024)

 

 
A música popular tem o poder de eternizar o que não existe mais, e de tornar famoso um completo desconhecido. 
 
Anos atrás escrevi um artigo aqui no blog comentando a passagem das décadas e dos séculos, fazendo com que sejam esquecidos nomes que hoje são óbvios, e fazendo com que as celebridades de agora venham a se tornar mistérios inexplicáveis para os leitores de daqui a um século. 
 
Naquele artigo eu comentava uma cena bonita que assisti ao vivo no carnaval do Recife, em 2009, no palco do Marco Zero. No show de Antonio Nóbrega, para dezenas de milhares de pessoas espremidas na praça, ele chamou ao palco Ariano Suassuna e Caetano Veloso, que estavam assistindo da lateral. E os três cantaram juntos o frevo Evocação no 1, de Nelson Ferreira: 
 
Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon,
cadê teus blocos famosos?
Bloco das Flores, Andaluzas, Pirilampos, Apois Fum,
dos carnavais saudosos...

 



(maestro N
elson Ferreira)
 
Foi uma cena bonita de um pernambucano, um paraibano e um baiano rendendo homenagem ao carnaval antigo de Pernambuco. E relembrando esses nomes outrora famosos, nomes de gente, nomes de blocos... Eu canto esse frevo desde pequeno e confesso, humildemente, que não sei NADA sobre Felinto, sobre Pedro Salgado, sobre Guilherme ou Fenelon. Sei apenas que citar esses nomes, no Recife velho de guerra, seria mais ou menos como aqui no Rio de Janeiro a gente enumerar Donga, João da Baiana, Marçal e Heitor dos Prazeres. 
 
A gente que mexe com letra de música, seja cantando, seja escrevendo, seja comentando, se vê de vez em quando na posição incômoda de ter que explicar o que não entende. 
 
Porque a música brasileira é cheia de retalhos de outro mundo, de uma realidade que era óbvia e presente para o compositor que escrevia. Hoje, meio século depois, ou até menos do que isto, esses retalhos se transformaram em hieróglifos – nítidos, inequívocos, mas inexplicáveis. 
 
Naquele texto sobre o Carnaval do Recife, comentei também que para um brasileiro de 2009 os nomes de Ariano e de Caetano eram familiares; o de Nóbrega talvez um pouco menos, mas ainda assim eram nomes do momento presente, da cultura presente. Daqui a cem anos, contudo, quem pode imaginar como estará o mundo? Talvez no carnaval de 2109 ainda haja quem seja capaz de explicar aos filhos quem foram esse tal de “Ariano”, esse tal de “Caetano”... 
 
Tudo isto me passou pela lembrança quando fui dias atrás à festa de aniversário da Livraria Folha Seca, de Rodrigo Ferrari, uma das minhas livrarias preferidas no Rio (Rua do Ouvidor, 37). Sábado à tarde, rua estreita engarrafada de gente, todos os bares abertos, roda de samba com piano (coisas do Rio)... 
 
A gente parou ali, naquele forno de 3 horas da tarde. Ficamos tomando uma long-neck gelada, e pisando em paralelepípedos (eu, que não saio mais de casa, estava com saudade de pisar em paralelepípedos). E deitando falação sobre qualquer assunto, porque em multidão aglomerada em torno de samba e livraria, assunto chove do céu feito confete. 



(Igreja de N. S. da Lapa dos Mercadores)
 

E começamos a prestar atenção nas igrejas das imediações. Eu estava num grupo flutuante de cariocas nativos e adotivos, entre eles Marcelo Moutinho, Paulo Roberto Pires e Sérgio Cohn. E foi surgindo um multiálogo mais ou menos assim: 
 
-- Bonita essa igreja, hein? Daqui de fora dá pra ver a nave.
 
-- Sim, é a igreja que levou um tiro de canhão.
 
-- Tiro de canhão?
 
-- Sim, durante a Revolta da Armada.
 
-- Sim, é isso mesmo. Tem até um samba falando nisso.
 
-- Mas é um samba sobre a Lapa. Nós estamos depois da Praça XV.
 
-- Vai ver que eles consideram a Praça XV um prolongamento da Lapa.
 
-- Mas foi isso mesmo. O navio disparou uma bala de canhão, lá da baía, e derrubou a torre da igreja.
 
-- Sem dúvida. O samba diz: Falta uma torre na igreja... Vou lhe contar meu irmão... Foi na briga de Floriano... Foi um tiro de canhão...
 
-- Pois é. A “briga de Floriano” foi a revolta da Armada, no governo de Floriano Peixoto.
 
-- Descrita por Lima Barreto no Policarpo Quaresma.
 
-- Exatamente. Por isso a igreja está faltando uma torre.
 
-- Mas a igreja que falta uma torre não é essa aqui. É a da Lapa, ali perto da Sala Cecília Meireles.
 
-- Mas essa aqui também é “da Lapa”. Olha esse estandarte pendurado: Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores.
 
-- Então é isso. O tiro foi aqui?
 
-- Claro que foi. Venha aqui num dia de semana e você vai ver a bala de canhão, eles guardaram e está exposta aí dentro.
 
-- Então o tiro foi aqui, e quem falta uma torre é a outra, lá na Lapa de verdade?
 
-- Sim, a de lá é Igreja de Nossa Senhora da Lapa do Desterro. Confundem porque é ela que fica no bairro da Lapa.
 
-- E ela só tem uma torre.
 
-- Sim. Sabe padre como é. No Brasil tem um milhão de igrejas com uma torre eternamente incompleta, e assim o padre pode passar vinte anos pedindo doações pra completar a torre.
 
-- É como o médico idoso que tirou férias e deixou a clínica com o filho, também médico. Quando voltou, o filho disse: “Papai, uma boa notícia, curei a artrite do Coronel Fulano”. O pai botou as mãos na cabeça: “Seu idiota, não era para curar, foi essa artrite que pagou seu curso!”.




(Igreja de N. S. da Lapa do Desterro – a igreja de uma torre só ]


E assim, passeando pela História do Brasil e com leves alfinetadas na igreja católica e na classe médica, só para não enferrujar o ferrão, fomos destrinchando esse mistério que me embalava a insônia desde os 10 anos. 
 
Porque quando eu tinha essa idade ouvia no rádio o tal samba, na voz de Nelson Gonçalves, e ficava fantasiando a Lapa carioca como uma mistura de monumento histórico e de bairro boêmio: 
 
Lapa... dos capoeiras...
Miguelzinho Camisa Preta, Meia Noite e Edgar...
Lapa... Minha Lapa boêmia...
A lua só vai pra casa depois do sol raiar.
 
Falta uma torre na igreja, vou lhe contar meu irmão;
foi na briga de Floriano, foi um tiro de canhão...
E nesse dia a Lapa vadia teve sua glória,
deixou o nome na história...
 
Aqui, a canção:


O samba é de Wilson Batista e Jorge de Castro, e tinha para mim essa conotação ao mesmo tempo de museu e de submundo. Eu perguntava a meu pai quem eram esses caras citados, e ele dizia: “Ora, são os capoeiristas lá do Rio... Miguelzinho Camisa Preta é famoso... Eles brigam, eles dão surra na polícia, não tem quem pegue!...” 



(M
iguelzinho Camisa Preta)
 

E um dia o rádio estava ligado e uma empregada lá de casa, Maria de Severina, estava cantando feliz da vida a plenos pulmões.
 
Lapa... dos capoeiras...
Miguelzinho Camisa Preta, Meia Noite
e uma meia de náilon!
 
Eu franzi a testa e fui em cima dela.
 
-- Maria, tu tás doida? Que história é essa de meia de náilon? É Edgar!...
 
-- Oxente, menino, tu não conhece a música não? A música é assim!
 
-- E o que diabo tem meia de náilon a ver com capoeira?
 
-- E camisa preta, tem a ver o que?  Ôxe!  Presta atenção na música! Esse menino parece que é doido.
 
Era um mondegreen dela, da imaginação dela, tão fértil quanto a minha, e a voz de Nelson Gonçalves permitia que eu entendesse ali o que convinha a mim, e ela o que convinha a ela. A meia de náilon eu não sei que fim levou, mas na minha próxima ida à Folha Seca vou lá na igreja, fazer uma visita a essa bala de canhão. 



(A bala de canhão)


Tour em 3-D da Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores:
https://my.matterport.com/show/?m=YU7KhgRXxq3