terça-feira, 30 de janeiro de 2024

5027) O Sol por Testemunha (30.1.2024)



 
Há filmes que eram muito famosos no tempo em que eu era cineclubista, em Campina Grande, mas tinha menos de 18 anos e não conseguia vê-los. Claro que de vez em quando dava um drible-de-corpo nos fiscais do Juizado de Menores, e foi assim que vi minha inesquecível Viridiana. Outras vezes, era vergonhosamente interpelado e mandado de volta para a Praça da Bandeira, onde ficava esperando a sessão terminar e os colegas mais velhos (ou mais sortudos) saírem pra contar o filme. 
 
Compus uma lista, com o título “Fichas Que Não Caíram”, e olhe, passou-se meio século e tem vários que ainda não assisti. 
 
Uma dessas fichas caiu agora, porque acabei vendo O Sol Por Testemunha (“Plein Soleil”, 1960), de René Clément. É de um romance de Patricia Highsmith, filmado mais de uma vez, a mais recente com Matt Damon e Jude Law nos papéis principais. São dois rapazes norte-americanos passeando pela Europa.  Jovens, bonitões, da mesma idade, do mesmo tipo físico, amigões de farras e de estrepolias – só que um é milionário, e o outro é pobre. 



(Maurice Ronet e Alain Delon)


A certa altura, o pobre mata o milionário, durante um passeio de barco, e passa a usar as roupas dele, ocupar os apartamentos dele, assinar os cheques dele, num jogo interessante de dupla identidade, porque a toda hora ele está cruzando com pessoas que conheciam os dois, e troca de identidade num piscar de olhos, conforme a necessidade do momento. 
 
Esse pobretão é Tom Ripley, que depois voltaria a ser protagonista de outras histórias de Patricia Highsmith. É um assassino frio e charmoso, um cara “com papo de derrubar avião”, pragmático, ligadíssimo, sedutor, e totalmente sem escrúpulos. 
 
Foi este papel que projetou Alain Delon como ator, porque ele parece ser exatamente isso que Tom Ripley é. Luchino Visconti, que nesse mesmo ano o colocou como personagem central em Rocco e Seus Irmãos (1960), dizia: “Esse rapaz é bonito demais para ser honesto”. E prova do talento de Delon é que seu personagem Rocco é ingênuo, bom filho, bom irmão, rapaz-de-bem, e chega a ser irritantemente altruísta. 
 
O maior spoiler com relação a O Sol Por Testemunha é a piada antiquíssima a respeito do título que o filme teria recebido em Portugal: O Cadáver Estava Embaixo do Barco. 



 
Em todo caso, um dos aspectos fascinantes do filme é o modo como ele faz o paralelismo entre dois caras que são praticamente a mesma pessoa, só que um tem muito dinheiro, e o outro não tem nenhum. O rapaz rico é Philippe Greenleaf (Maurice Ronet), e é um desses rapazes que nasceram nadando num mar de dinheiro, e cuja vida adulta é uma diversão permanente, porque o dinheiro abre todas as portas e fecha todas as bocas. 
 
Tom Ripley é aquele personagem tão conhecido aqui no Brasil: o rico que nasceu, por azar, no corpo de um pobre. É aquele cara que tem gosto e apetite para as boas coisas da vida (bons hotéis, boas mesas, bons vinhos, boas camas) mas não tem um centavo. Tanto não tem que o pai de Philippe lhe oferece 5 mil dólares para ir buscar o filho na Europa e trazê-lo de volta aos Estados Unidos, para assumir nos negócios da família. 


 
A dinâmica entre os dois personagens me lembrou muito outro filme que vi há pouco tempo: Aquele Que Sabe Viver (1962, de Dino Risi), com Vittorio Gassman e Jean-Louis Trintignant, nos papéis do rico e do pobre, respectivamente. Neste caso, são dois rapazes que se conhecem por acaso e o rico (que vive numa atividade febril de festas, passeios, jantares, namoros, etc.) convida o pobre para curtir a vida durante um fim de semana. 
 
É um desses enganosos “filmes onde nada acontece” e onde coisas acontecem o tempo todo. Não há uma trama, não há isto que hoje chamam um “arco narrativo”. É uma espécie de road-movie, dois rapazes num carro esporte vagando pelas rodovias – indo visitar um amigo, uma turma, curtir uma festa, curtir uma praia. Um roteiro que hoje seria reprovado porque “falta conflito”, “falta jornada do herói”, “falta a pinça narrativa do segundo ato” ou coisa parecida. 
 
É interessante ver O Sol Por Testemunha e Aquele Que Sabe Viver lado a lado, pelas semelhanças e diferenças entre as duas duplas de amigos. Em Il Sorpasso, não existe o mesmo equilíbrio de personalidades em confronto. Bruno (Vittorio Gassman) não só é rico como é calejado, arguto, tem malícia. Roberto (Jean-Louis Trintignant) é tímido, livresco, ingênuo, e desde o primeiro momento deixa-se fascinar pelo outro, por sua esperteza, por sua alegria fácil, sua disposição para curtir a boa vida. 



(Jean-Louis Trintignant e Vittorio Gassman) 

 
O filme de Dino Risi tem o título italiano de Il Sorpasso, e o título é uma das melhores coisas do filme. “A Ultrapassagem”: algo que o personagem de Vittorio Gassman faz o tempo todo com seu carrinho sem capota, acelerando ao máximo, fazendo manobras arriscadas, colando no parachoque traseiro dos outros carros, infernizando seu juízo. “Quem está aqui sou EU!... Deixem-me passar!...” 



 
Hoje em dia, no submundo das celebridades eletrônicas, vemos uma versão radical disso. Pessoas que abrem caminho a poder de dinheiro e de desespero desejante. É o pessoal que “não pode perder” a festa que vai ter no dia 10 na Bahia, nem o jantar que vai ter no dia 12 em Paris, nem o aniversário de um amigão no dia 14 em Roma, e depois o show que vai fazer dia 17 no Rio, seguido pela gravação do clip dia 18 em Manaus. E depois tem o II Fyre Festival, numa ilha do Caribe... E por aí vai. 
 
Os que são artistas precisam enfiar suas datas de trabalho no meio dessa programação social intensa. Há outros que nem artistas são – apenas têm dinheiro, e sentem a angústia de saber que quando morrerem, mesmo aos 100 anos de idade, ainda deixarão algum dinheiro que não conseguiram gastar. 
 
Como o nosso “pleiba” mais emblemático, o autor-narrador das Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), que gasta dinheiro, gasta mocidade, namora, desnamora, borboleteia de projeto inacabado em projeto inacabado, e morre sozinho, certamente ainda com algum dinheiro que não gastou. Também Brás Cubas sentia em si o fogo ambicioso da juventude, como lembra de si mesmo no pós-morte: 
 
Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas. (Cap. XIV) 
 
Também Brás Cubas nasceu tendo à mão a varinha mágica do dinheiro de família, aparentemente inesgotável, como as bolsas de moedas das Mil e Uma Noites: 
 
Era meu o universo; mas, ai triste! Não o era de graça. Foi-me preciso coligir dinheiro, multiplicá-lo, inventá-lo. Primeiro explorei as larguezas de meu pai; ele dava-me tudo o que eu lhe pedia, sem repreensão, sem demora, sem frieza; dizia a todos que eu era rapaz e que ele o fora também. Mas a tal extremo chegou o abuso, que ele restringiu um pouco as franquezas, depois mais, depois mais. Então recorri a minha mãe, e induzi-a a desviar alguma cousa, que me dava às escondidas. Era pouco; lancei mão de um recurso último: entrei a sacar sobre a herança de meu pai, a assinar obrigações, que devia resgatar um dia com usura. (Cap. XV) 
 
A ultrapassagem é a imagem típica desse tipo de rapaz que sempre consegue o que quer, e acha que basta querer uma coisa para ter direito a ela. Seu movimento instintivo é mesmo o de ultrapassar, de não deixar que os retardatários-sem-chance atrapalhem sua disparada rumo à vitória. Ele quer chegar primeiro, ou no mínimo chegar logo. É aquele sujeito que “não aceita um não como resposta”, que fura filas, que distribui “agrados” (gorjetas, propinas). Ele acha que o mundo lhe deve tudo que ele resolveu desejar. 




É curioso que este sentimento não seja exclusivo dos ricos. O Cobrador, de Rubem Fonseca, é o pé-rapado que, de arma em punho, resolve tomar na-marra tudo a que tem direito. Tudo que a “sociedade de consumo” lhe oferece via propaganda, e lhe nega via exclusão de classe. 
 
Esse impulso de velocidade, de impaciência social, faz desses jovens tanto as futuras lideranças, quando têm pedigree (têm “berço”), quanto os futuros exércitos de profissionais obcecados, quando (como Tom Ripley) são classe média e percebem diante de si um longo caminho a percorrer. 
 
Esse jogo febril de jovens se ultrapassando uns aos outros está presente também num dos meus contos preferidos de James Joyce, “After the Race” (Dublinenses, 1914), sobre uma turma de quatro ou cinco rapazes (uns de família muito rica, outros nem tanto) divertindo-se ao longo de um dia e uma noite, por ocasião de uma corrida de automóveis. Diz Joyce: “O movimento veloz pelo espaço produz uma sensação de euforia. O mesmo se dá com a celebridade; o mesmo se dá com a posse de muito dinheiro”. 
 
Nas últimas cenas de O Sol Por Testemunha, Tom Ripley está na praia, curtindo a fortuna recém-conquistada, e curtindo o suspense de se saber a um fio de linha do desmascaramento. A mulher do restaurante praieiro se aproxima, pergunta se quer uma comida, uma bebida... E ele, olhos semicerrados diante do sol: 
 
-- Me sirva o melhor. O melhor. 










sábado, 27 de janeiro de 2024

5026) O etarismo e as profissões (27.1.2024)



O técnico alemão Jürgen Klopp anunciou na sexta-feira, 26 de janeiro, que no fim desta temporada irá deixar o Liverpool, onde vem trabalhando há 9 anos. 

Este período foi inesquecível para quem acompanha o bom futebol, porque ele pegou o time dos “Reds” lá embaixo, deu-lhe uma injeção de ânimo e de tática, e ganhou sete títulos em nove anos, entre eles a Champions League, o campeonato inglês (que o time não ganhava há 30 anos)... e, por último mas não abaixo, derrotou o Flamengo na decisão do Mundial de Clubes da Fifa. 

Adorado pela torcida, apoiado pelos jogadores, respeitado pela diretoria, admirado pelos adversários, por que motivo Klopp, um rapaz de apenas 56 anos, iria desistir? 

Ele disse:

https://www.espn.com.br/futebol/liverpool/artigo/_/id/13149049/klopp-nao-descarta-aposentar-vez-revela-qual-pais-nunca-ira-trabalhar-deixar-liverpool-nem-estiver-morrendo-fome

"O coelho percebe que ele não é mais jovem quando nota que não consegue mais pular tão alto quanto pulava antes... (A decisão de sair) Não é algo proposital, simplesmente aconteceu. Esse clube e esse time precisam de um técnico top, do mesmo nível de todos eles. E, quando eu acho que não sou mais capaz disso, tenho que me posicionar. Por isso comuniquei a decisão ao clube e a todos aqui. Acho que é a coisa certa a fazer", iniciou. 

 

"Eu estou trabalhando no futebol há 24 anos, e, quando você tem uma carreira como a que eu tive, tem que investir tudo isso. Agora me dei conta que meus recursos não são infinitos. Por isso, prefiro gastar o resto do que eu tenho nesta temporada. Não sou mais jovem como antes... Não consigo mais pular como eu pulava...", metaforizou. 

 

A decisão de abandonar um trabalho “por não se sentir à altura das exigências” é uma coisa que acontece a qualquer profissional. Principalmente os que lidam com o corpo: atletas, dançarinos e dançarinas, artistas de circo, atores e atrizes... Pessoas cuja performance física tem que estar sempre “batendo no teto”. 

O corpo é, em última análise, um recurso não-renovável. Vai até um certo ponto, apenas. No futebol, estamos acostumados a ver atletas que largam as chuteiras com 30-e-poucos anos, mas também outros que vão até 40+ anos jogando com eficiência. Não há dois corpos iguais. 




“Mas, um técnico?...  Técnico não corre!”.

Entra aí um outro aspecto, que é o desgaste físico e mental do técnico. Ele não serve apenas para falar diante de um quadro-negro. 



(Pep Guardiola e Jürgen Klopp)


Chamam o estilo de Klopp “Heavy Metal”, porque defende um envolvimento físico e mental extremo, ao contrário do futebol cerebral de Pep Guardiola. Comentando o estilo deste quando estava à frente do Barcelona, Klopp declarou:

Não é meu tipo de jogo. Não gosto de ganhar com 80% de posse de bola. Não é o bastante para mim. Meu jogo é futebol de luta, e não futebol de serenidade. Na Alemanha chamamos esse estilo de “Inglês”: dia de chuva, campo enlameado, placar de 5x5, todo mundo sai com a cara coberta de lama, vai para casa e fica semanas sem conseguir jogar de novo. (Wikiquotes, trad. BT)

Eu comparo a função de um técnico de futebol em alto nível à função de um diretor de cinema em alto nível. É desgastante, ocupa 24 por dia a cabeça de um indivíduo, porque ele tem que resolver problemas abstratos de certa complexidade e ao mesmo tempo motivar equipes de dezenas de pessoas. 

O técnico tem que conversar, discutir, brigar, fiscalizar, confraternizar, negociar, argumentar... mas não apenas com os jogadores. Ele tem que fazer o mesmo com funcionários, preparadores físicos, médicos, administradores, diretores de futebol do clube. Assim como um diretor de cinema precisa conversar com motoristas, eletricistas, donos de laboratório, financiadores, gente da rua que vem peruar as filmagens... 



Por mais que haja uma equipe para ajudá-lo, o diretor de cinema precisa se envolver com tudo. A menos que trabalhe num daqueles esquemas onde o diretor é uma prima-dona que fica no ar condicionado esperando um assistente vir avisar: “Senhor, o set está pronto, pode vir.” 

Técnicos recentes que passaram pelo Flamengo (o clube que eu acompanho mais de perto) fracassaram, não porque lhes faltasse inteligência e conhecimento de futebol, mas porque não conseguiram criar um relacionamento produtivo com todos esses níveis de diferentes profissionais. Foi o caso de Paulo Sousa, Vitor Pereira e Jorge Sampaoli.

Disse Klopp, na entrevista em que anunciou sua decisão:

"Eu sou quem eu sou e estou aonde estou pela maneira que sempre fui. Se eu não consigo mais fazer as coisas como antes, preciso parar. Essa não era minha ideia quando renovei o contrato (até 2026). Eu estava 100% convencido de que conseguiria levar até 2026. Só que eu achei que meus níveis de energia eram infinitos. Eles sempre foram. Mas agora não são mais...", lamentou. 

 "Eu nunca consegui viver uma vida normal. Essa é a verdade. Antes, ter três ou quatro semanas de férias estava OK, mas não dá mais. Não vou comandar qualquer clube nem qualquer seleção no próximo ano. E nunca mais vou comandar outro time na Inglaterra, isso eu posso prometer. Mesmo que eu esteja morrendo de fome, isso não irá acontecer", garantiu. 

 Para mim uma das frases-chave é “se não consigo mais fazer as coisas como antes, preciso parar”. É nesse ponto que eu (que vinha concordando com tudo que ele dizia) preciso parar para pensar. 

Porque o Grande Artista (vamos considerar, por hipótese-de-trabalho, que a um técnico de futebol aplicam-se muitos critérios de criatividade e alta-performance que são aplicáveis aos artistas) muitas vezes deixa-se levar pelo conceito (que é típico do esporte) de ser sempre o primeiro, sempre o melhor. 



Um escritor, um músico ou um diretor de cinema não têm a obrigação de fazer, a cada trabalho, uma obra superior à que veio antes. O gráfico de uma carreira artística é sempre uma série de subidas e descidas, não é uma linha de crescimento ininterrupto. A “linha de crescimento ininterrupto” é um delírio do Capitalismo e das seitas que o reverenciam. 

Sabia muito bem disso Gabriel Garcia Márquez quando, depois de seu sucesso de vendagem mais estrondoso (Cem Anos de Solidão) publicou seu livro mais difícil, O Outono do Patriarca, como se dissesse: “Eu não quero competir com meu sucesso anterior. É proposital.” 

Por sorte o Prêmio Nobel de Literatura só pode ser atribuído uma vez a cada pessoa, porque se não fosse assim algumas figuras estariam até agora “mexendo os pauzinhos” para ganhar o seu segundo e “tornar-se o maior de todos”. 

Mas o futebol não é arte – é esporte. É competição, é concorrência, e nesse sentido está muito mais imbuído desse espírito, que é sempre o de fazer trinta e dois jumentos disputarem uma única cenoura.  

Pelos talentos que tem, e pela sua personalidade simpática, Klopp poderia ficar muitos anos no Liverpool. Podia até bater o recorde de Sir Alex Ferguson, aquele velhote corado, mascador de chicletes, que passou 27 anos como técnico do Manchester United, e só se aposentou com mais de 70.   



 

(Sir Alex Ferguson)


Quando um indivíduo no seu auge físico e mental – é assim que eu vejo a idade por volta dos 56 anos – diz que não consegue mais produzir no nível a que estava acostumado, e no nível que se espera dele, dá para considerar que seu trabalho é uma atividade predatória, que transforma uma pessoa talentosa num bagaço-de-cana, muito antes do que se podia imaginar. 

Dias atrás eu estava vendo Ginger e Fred, de Federico Fellini, onde uma dupla de dançarinos idosos (Giulieta Masina e Marcello Mastroianni) emerge da aposentadoria para se apresentar num programa de TV com perfil nostálgico. Não dançam mais como antes. Não têm mais a mesma energia. Não têm mais a mesma beleza, o mesmo charme. Não querem competir com ninguém, não querem ganhar troféus, querem apenas dançar de novo, livres do pesadelo do sucesso, só pelo prazer de estar dançando. 

Como diria Philip K. Dick:

Qualquer criatura incapaz de perceber a diferença entre um ser humano e uma máquina é uma máquina, mesmo que seja um ser humano.



(Klopp e sua esposa, a escritora Ulla Sandrock)

  








quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

5025) Minha Lapa boêmia (24.1.2024)

 

 
A música popular tem o poder de eternizar o que não existe mais, e de tornar famoso um completo desconhecido. 
 
Anos atrás escrevi um artigo aqui no blog comentando a passagem das décadas e dos séculos, fazendo com que sejam esquecidos nomes que hoje são óbvios, e fazendo com que as celebridades de agora venham a se tornar mistérios inexplicáveis para os leitores de daqui a um século. 
 
Naquele artigo eu comentava uma cena bonita que assisti ao vivo no carnaval do Recife, em 2009, no palco do Marco Zero. No show de Antonio Nóbrega, para dezenas de milhares de pessoas espremidas na praça, ele chamou ao palco Ariano Suassuna e Caetano Veloso, que estavam assistindo da lateral. E os três cantaram juntos o frevo Evocação no 1, de Nelson Ferreira: 
 
Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon,
cadê teus blocos famosos?
Bloco das Flores, Andaluzas, Pirilampos, Apois Fum,
dos carnavais saudosos...

 



(maestro N
elson Ferreira)
 
Foi uma cena bonita de um pernambucano, um paraibano e um baiano rendendo homenagem ao carnaval antigo de Pernambuco. E relembrando esses nomes outrora famosos, nomes de gente, nomes de blocos... Eu canto esse frevo desde pequeno e confesso, humildemente, que não sei NADA sobre Felinto, sobre Pedro Salgado, sobre Guilherme ou Fenelon. Sei apenas que citar esses nomes, no Recife velho de guerra, seria mais ou menos como aqui no Rio de Janeiro a gente enumerar Donga, João da Baiana, Marçal e Heitor dos Prazeres. 
 
A gente que mexe com letra de música, seja cantando, seja escrevendo, seja comentando, se vê de vez em quando na posição incômoda de ter que explicar o que não entende. 
 
Porque a música brasileira é cheia de retalhos de outro mundo, de uma realidade que era óbvia e presente para o compositor que escrevia. Hoje, meio século depois, ou até menos do que isto, esses retalhos se transformaram em hieróglifos – nítidos, inequívocos, mas inexplicáveis. 
 
Naquele texto sobre o Carnaval do Recife, comentei também que para um brasileiro de 2009 os nomes de Ariano e de Caetano eram familiares; o de Nóbrega talvez um pouco menos, mas ainda assim eram nomes do momento presente, da cultura presente. Daqui a cem anos, contudo, quem pode imaginar como estará o mundo? Talvez no carnaval de 2109 ainda haja quem seja capaz de explicar aos filhos quem foram esse tal de “Ariano”, esse tal de “Caetano”... 
 
Tudo isto me passou pela lembrança quando fui dias atrás à festa de aniversário da Livraria Folha Seca, de Rodrigo Ferrari, uma das minhas livrarias preferidas no Rio (Rua do Ouvidor, 37). Sábado à tarde, rua estreita engarrafada de gente, todos os bares abertos, roda de samba com piano (coisas do Rio)... 
 
A gente parou ali, naquele forno de 3 horas da tarde. Ficamos tomando uma long-neck gelada, e pisando em paralelepípedos (eu, que não saio mais de casa, estava com saudade de pisar em paralelepípedos). E deitando falação sobre qualquer assunto, porque em multidão aglomerada em torno de samba e livraria, assunto chove do céu feito confete. 



(Igreja de N. S. da Lapa dos Mercadores)
 

E começamos a prestar atenção nas igrejas das imediações. Eu estava num grupo flutuante de cariocas nativos e adotivos, entre eles Marcelo Moutinho, Paulo Roberto Pires e Sérgio Cohn. E foi surgindo um multiálogo mais ou menos assim: 
 
-- Bonita essa igreja, hein? Daqui de fora dá pra ver a nave.
 
-- Sim, é a igreja que levou um tiro de canhão.
 
-- Tiro de canhão?
 
-- Sim, durante a Revolta da Armada.
 
-- Sim, é isso mesmo. Tem até um samba falando nisso.
 
-- Mas é um samba sobre a Lapa. Nós estamos depois da Praça XV.
 
-- Vai ver que eles consideram a Praça XV um prolongamento da Lapa.
 
-- Mas foi isso mesmo. O navio disparou uma bala de canhão, lá da baía, e derrubou a torre da igreja.
 
-- Sem dúvida. O samba diz: Falta uma torre na igreja... Vou lhe contar meu irmão... Foi na briga de Floriano... Foi um tiro de canhão...
 
-- Pois é. A “briga de Floriano” foi a revolta da Armada, no governo de Floriano Peixoto.
 
-- Descrita por Lima Barreto no Policarpo Quaresma.
 
-- Exatamente. Por isso a igreja está faltando uma torre.
 
-- Mas a igreja que falta uma torre não é essa aqui. É a da Lapa, ali perto da Sala Cecília Meireles.
 
-- Mas essa aqui também é “da Lapa”. Olha esse estandarte pendurado: Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores.
 
-- Então é isso. O tiro foi aqui?
 
-- Claro que foi. Venha aqui num dia de semana e você vai ver a bala de canhão, eles guardaram e está exposta aí dentro.
 
-- Então o tiro foi aqui, e quem falta uma torre é a outra, lá na Lapa de verdade?
 
-- Sim, a de lá é Igreja de Nossa Senhora da Lapa do Desterro. Confundem porque é ela que fica no bairro da Lapa.
 
-- E ela só tem uma torre.
 
-- Sim. Sabe padre como é. No Brasil tem um milhão de igrejas com uma torre eternamente incompleta, e assim o padre pode passar vinte anos pedindo doações pra completar a torre.
 
-- É como o médico idoso que tirou férias e deixou a clínica com o filho, também médico. Quando voltou, o filho disse: “Papai, uma boa notícia, curei a artrite do Coronel Fulano”. O pai botou as mãos na cabeça: “Seu idiota, não era para curar, foi essa artrite que pagou seu curso!”.




(Igreja de N. S. da Lapa do Desterro – a igreja de uma torre só ]


E assim, passeando pela História do Brasil e com leves alfinetadas na igreja católica e na classe médica, só para não enferrujar o ferrão, fomos destrinchando esse mistério que me embalava a insônia desde os 10 anos. 
 
Porque quando eu tinha essa idade ouvia no rádio o tal samba, na voz de Nelson Gonçalves, e ficava fantasiando a Lapa carioca como uma mistura de monumento histórico e de bairro boêmio: 
 
Lapa... dos capoeiras...
Miguelzinho Camisa Preta, Meia Noite e Edgar...
Lapa... Minha Lapa boêmia...
A lua só vai pra casa depois do sol raiar.
 
Falta uma torre na igreja, vou lhe contar meu irmão;
foi na briga de Floriano, foi um tiro de canhão...
E nesse dia a Lapa vadia teve sua glória,
deixou o nome na história...
 
Aqui, a canção:


O samba é de Wilson Batista e Jorge de Castro, e tinha para mim essa conotação ao mesmo tempo de museu e de submundo. Eu perguntava a meu pai quem eram esses caras citados, e ele dizia: “Ora, são os capoeiristas lá do Rio... Miguelzinho Camisa Preta é famoso... Eles brigam, eles dão surra na polícia, não tem quem pegue!...” 



(M
iguelzinho Camisa Preta)
 

E um dia o rádio estava ligado e uma empregada lá de casa, Maria de Severina, estava cantando feliz da vida a plenos pulmões.
 
Lapa... dos capoeiras...
Miguelzinho Camisa Preta, Meia Noite
e uma meia de náilon!
 
Eu franzi a testa e fui em cima dela.
 
-- Maria, tu tás doida? Que história é essa de meia de náilon? É Edgar!...
 
-- Oxente, menino, tu não conhece a música não? A música é assim!
 
-- E o que diabo tem meia de náilon a ver com capoeira?
 
-- E camisa preta, tem a ver o que?  Ôxe!  Presta atenção na música! Esse menino parece que é doido.
 
Era um mondegreen dela, da imaginação dela, tão fértil quanto a minha, e a voz de Nelson Gonçalves permitia que eu entendesse ali o que convinha a mim, e ela o que convinha a ela. A meia de náilon eu não sei que fim levou, mas na minha próxima ida à Folha Seca vou lá na igreja, fazer uma visita a essa bala de canhão. 



(A bala de canhão)


Tour em 3-D da Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores:
https://my.matterport.com/show/?m=YU7KhgRXxq3
 
 
 






domingo, 21 de janeiro de 2024

5024) O absurdo nos contos de fadas (21.1.2024)



(André Breton, by David Levine)

 
Deve existir algum limite, alguma regra, para os mundos descritos pela literatura fantástica? Ou ela pode ser justamente aquele espaço de liberdade total, aquele espaço do “vale tudo”, onde a imaginação do escritor não tem que ficar presa a conceitos como realismo, verossimilhança, positivismo, coerência e assim por diante? 
 
Por um lado existem autores, principalmente jovens, que querem botar pra quebrar, chutar o pau da barraca, virar a mesa. 
 
Os Dadaístas e os Surrealistas eram um pouco assim nos anos 1910-20, cem anos atrás. Inimigos ferozes da autoridade (do Estado, da Igreja, das Academias, etc.) eles defendiam a libertação total do espírito humano, uma explosão da vontade irracional para estilhaçar um mundo racionalmente asfixiante. 
 
André Breton definia, no primeiro Manifesto do Surrealismo (1924): 
 
Surrealismo, s.m. Automatismo psíquico em estado puro mediante o qual se propõe exprimir, verbalmente, por escrito ou por qualquer outro meio, o funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral.
(Manifestos do Surrealismo, Rio, Nau Editora, trad. Sérgio Pachá).
 
Breton queria, de maneira simpaticamente utópica, produzir uma linguagem pura, não-reprimida, brotada do inconsciente como a lava que brota de um vulcão. 
 
O surrealismo é uma espécie de “buraco negro” da literatura fantástica. O fantástico convencional, em qualquer de suas variantes, surge em contraste com o realismo, mas o surrealismo, por seu excesso de concentração no irracional, implode a realidade, o naturalismo e tudo o mais. Toda a literatura fantástica que temos hoje pareceria, aos surrealistas de 1924, excessivamente domesticada, pouco delirante. 
 
Essa literatura – que não precisa obedecer aos dogmas surrealistas – lida com regras, precisa de regras, sente-se na obrigação de traçar limites para si mesma. Uma fantasia solta no espaço, onde literalmente toda e qualquer coisa pode acontecer, perde a graça. Não existe tensão. É preciso haver algum limite, alguma restrição, algo que forneça resistência, apoio, um chão psicológico onde se possa pisar. 

 

(Garcia Márquez, by David Levine)


Gabriel Garcia Márquez talvez estivesse pensando nisto quando narrou como um conto infantil seu foi desdenhado por seu amigo Plinio Apuleyo Mendoza, cuja opinião ele respeitava muito, por ser uma mera “fantasia”. E Márquez fez sua distinção entre imaginação e fantasia: 
 
O argumento me pareceu demolidor, precisamente porque sempre acreditei que tampouco às crianças agrada a fantasia. O que lhes agrada, certamente, é a imaginação. A diferença é fundamental, pois entre a imaginação e a fantasia há a mesma diferença que há entre um ser humano e um boneco de ventríloquo.
 
(Garcia Márquez habla de Garcia Márquez, org. Alfonso Rentería Mantilla, Renteria, Bogotá, 1979, pág. 54, trad. BT)
 
G. K. Chesterton produziu um dos seus melhores ensaios no capítulo “The Ethics of Elfland” (em Orthodoxy, 1908), onde ele discute justamente o rigor com que as crianças absorvem as leis que regem os contos de fadas.
 
Qualquer pessoa pode entender isto se ler os contos de fadas dos Irmãos Grimm, ou as ótimas coletâneas de Mr. Andrew Lang. Por uma questão de prazer e pedantismo darei a isto o nome de “a Doutrina da Alegria Condicional”. Touchstone atribuía uma enorme virtude à expressão ”se”: e de acordo com a ética dos elfos toda a virtude repousa em um “se”. O tom dos enunciados das fadas é sempre: “Você poderá viver num palácio de ouro e safira, se jamais pronunciar a palavra vaca”; ou “Você poderá ser feliz para sempre com a filha do rei, se nunca mostrar a ela uma cebola”. A visão maravilhosa depende de um veto.
 
(...) Nos contos de fadas uma incompreensível felicidade repousa sempre numa incompreensível condição. Uma caixa é aberta, e todos os males do mundo saem voando. Alguém esquece uma palavra, e cidades inteiras são arrasadas. Uma lanterna é acesa, e o amor foge para sempre. Alguém colhe uma flor, e pessoas perdem a vida. Alguém come uma maçã, e toda a esperança em Deus desaparece.
 
(Orthodoxy, Fontana Books, 1961, pág. 54-55, trad. BT)



(G. K. Chesterton, by David Levine)
 
 
Essas regras parecem incompreensíveis ou absurdas, mas nos contos populares, dos Irmãos Grimm a Luís da Câmara Cascudo, elas correspondem ao modo como as crianças veem as restrições e as proibições que recebem no mundo dos adultos. Pode brincar na sala, mas não abra estas gavetas. Podem brincar na rua, mas tem que voltar antes que escureça. Não beba dessa garrafa. Não entre nesse quarto. Se fizer xixi na cama, não ganha presentes. Se pegar no pinto de noite, sua mão cai. Tudo é inexplicável, e não admite questionamento. 
 
E pode-se ver um paralelo também com a vida dos servos submetidos ao capricho de nobres e de senhores feudais, que parecem sempre dispor de um dinheiro infinito, quantidades infinitas de comida, e no entanto estão sempre fazendo exigências absurdas, divertindo-se com punições cruéis, ou usando os plebeus como se fossem bonecos. 
 
Desde a Idade Média até o corrente mês a gente ouve histórias sobre banquetes suntuosos, toneladas de comidas extravagantes e caríssimas sendo servidas para convivas já estufados, por criados tão famintos que cozinhariam uma espiga de milho sem caroços, para matar a fome. A princesinha adoece, e a babá faz uma promessa e se suicida, feliz em dar a vida por ela. 
 
A literatura de fantasia lida com a polaridade “mundo real / mundo fantástico” como uma polarização comparável às de crianças vs. adultos, e de servos vs. nobres. As regras podem parecem incompreensíveis ou absurdas, mas devem ser seguidas. Por que? Porque o mundo real é assim, é inexplicavelmente assim. As coisas são, e pronto. Depois, inventa-se uma explicação para o ser das coisas. 
 
O mesmo vale para partes consideráveis da população atual. Nossa sociedade é fundada num conjunto contraditório de leis grandiloquentes e absurdas, mal explicadas, mal aplicadas. É baseada em contratos sociais que beneficiam apenas um dos contratantes, e em valores morais proclamados com eloquência e ignorados com desfaçatez. A Constituição, o Código Civil, o Código Penal, a Babel das jurisprudências... A pessoa comum (principalmente a pessoa pobre) se submete a isto sem entender e sem ter como questionar. Tudo que é prometido com cem palavras obscuras pode ser cancelado com cento e uma. 
 
Se a atenção do autor consegue recuar um pouco e observar a meia distância os paradoxos deste mundo, suas contradições absurdas, suas fatalidades que ninguém deseja e que todos incrementam, pode entender um pouco da lógica do fantástico, ou dos mecanismos do absurdo. 
 
Não foi Franz Kafka quem inventou os processos inexplicáveis e a justiça inatingível. 
 


(Franz Kafka, by David Levine)
 
 
 
 






quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

5023) Marcel Proust, um planeta distante (18.1.2024)




Tenho pela obra de Marcel Proust uma admiração incondicional e depressiva. Incondicional porque não tenho nenhuma crítica a fazer-lhe, não tenho opiniões negativas a seu respeito. Depressiva porque é uma obra gigantesca, que nunca li (não por falta de interesse!) e que a esta altura do campeonato dificilmente lerei. 
 
É como o planeta Marte. Sempre me fascinou, mas já sei que nunca pisarei no seu chão. 
 
São sete volumes, mais de 4.200 páginas. Interesse não falta, mas cadê tempo e fosfato?! Não consegui até hoje encarar a leitura de coisas muito mais “fininhas”: Infinite Jest... Dhalgren... Stand on Zanzibar... Spangle... Cryptonomicon... 
 
Em Busca do Tempo Perdido é um desses clássicos tão impregnados em nossa memória-coletiva que é possível conversar sobre ele sem ter lido. Já li extensos trechos, em obras de crítica e técnica literária, muitos artigos de revistas, muitos depoimentos e análises. Tenho uma idéia aproximada do conteúdo, da época, do modo verbal inventado (?) por Marcel Proust. Não posso ter uma opinião crítica substancial; mas dá pra navegar numa conversa com gente que conhece. E de certa forma me identifico com ele. 
 
Proust é abominado por algumas pessoas para quem tudo que ele escreveu não passa de devaneio decadentista de um pseudo-aristocrata lamentando o fim de uma época “em que todo mundo era rico, bonito, inteligente e interessante”. 
 
Quando escrevi o meu ABC de Ariano Suassuna, transcrevi um comentário muito engraçado de Ariano sobre as discussões com seus amigos do grupo do TEP, o Teatro do Estudante de Pernambuco, todos com no máximo vinte anos. Diz Ariano: 
 
A minha formação universitária foi lá, não foi na universidade. As reuniões e os ensaios eram na casa do Hermilo [Borba Filho]. Era um grupo muito heterogêneo, mas todos ligados por essa paixão pelo teatro. Eu lembro que tinha o romancista Gastão de Holanda, que gostava muito de Gide e de Proust. Eu tinha horror. Eu o chamava de burguês decadente: "Você não tem vergonha na cara, não? Admirar um nojento desses!". Ele dizia: "Você é que é um imbecil! Eu quero é Proust, uma coisa refinada!". As discussões eram desse tipo, noite adentro. 
(ABC de Ariano Suassuna, Ed. José Olympio, p. 50-51)
 
Anos depois, livro publicado, vida correndo calma como riacho de chã, reencontrei Ariano Suassuna num hotel, durante um evento literário. Conversa vai, conversa vem, acho que acabamos falando sobre a literatura baseada na memória, na reconstrução e reinvenção do passado. E ele desandou a falar de Proust, e a elogiar a beleza do fraseado, o detalhismo da percepção, ou sei lá o quê. Aí, num gesto característico, deu uma palmada na perna, com força, e disse: 
 
– Ave Maria!  Dá vontade de quando voltar pra casa pegar e ler tudinho de novo! 
 
Eu fiquei ali meio esmagado ao ver um cara, com 81 anos, pelo menos considerar essa hipótese. Porque eu, no outono dos meus sessenta e poucos, achava que não ia mais ter tempo sequer de reler A Metamorfose, quanto mais encarar a cordilheira proustiana. 
 
Tudo isto me veio à mente ao assistir o belo filme Céleste, de Percy Adlon (diretor de Bagdad Café, Rosalie Vai Às Compras, etc.) contando os últimos anos da vida de Proust, com base nas memórias de Céleste Albaret, que foi a criada fiel do escritor durante este período. 



 
É um filme notável. Tudo acontece dentro do apartamento do escritor, com raras imagens do lado de fora. Dir-se-ia, pela unidade de espaço, que “parece uma peça de teatro”, mas Percy Adlon passeia nesse espaço com a câmera e seus atores de maneira fluida, usa cortes bruscos de montagem para nos inquietar com a passagem de um tempo em que nada acontece, e principalmente sabe usar o som. O filme tem música em raros (e essenciais) momentos, não é como o cinema de hoje em dia, encharcado de música em todas as cenas, submerso em orquestras, afogado em violinos, despedaçado por bate-estacas eletrônicos. 
 
A música já foi uma forma de arte, hoje em dia está virando uma doença mental. Metade das pessoas que a gente vê na rua estão com fones enfiados no ouvido, ouvindo música, música, música, música, música. Não importa se ouvem Beethoven ou Bob Dylan, Chico Buarque ou Luiz Gonzaga. É um massacre desnecessário. Quem lê muito, pensa pouco. Quem ouve muita música, também. 
 
Proust tinha o que a gente hoje chama de “T.O.C.”. Tudo que lhe era servido tinha que ser feito exatamente da mesma maneira, sempre: o café, o leite, os biscoitos, o vestuário... Sofria de asma. Tinha saúde frágil e era neurastênico, ranzinza. Afetuoso num momento e irritadiço no outro. A certa altura do filme, Céleste comenta: “Em alguns momentos me sinto como filha dele, e em outros momentos como se fosse sua mãe”



Tenho um cacoete meio notívago, e Proust também o tinha. Não sei direito por que sou assim. Já desenvolvi uma hipótese meio ciência-ficcional de que certas pessoas excessivamente sensíveis são telepatas em botão, telepatas incapazes de se comunicar pelo pensamento à distância, mas com sensibilidade bastante para captar o ruído mental da Humanidade que os cerca. Captar a mera estática, a barulheira sem sentido, como um rádio sintonizado entre duas estações, ou como “a televisão num canal fora do ar”. 
 
O dia claro, quando todo mundo está acordado e ativo, produz um ruído-de-fundo insuportável. De noite, contudo, três quartos da população da cidade estão adormecidos, desligados, inertes. E a mente do sensitivo respira aliviada, e pela primeira vez em muitas horas consegue pensar com clareza. 
 
Proust mandou forrar com cortiça seus aposentos, para eliminar os ruídos que vinham de fora. Precisava se concentrar nos seus pensamentos, no delicado afazer de fiar lembranças, de avançar pé ante pé no gelo fino do passado, que a qualquer movimento brusco pode se romper e nos mergulhar “nas águas glaciais do cálculo egoísta”, ou seja, na vida real. 
 
Céleste é um filme dirigido com muito discernimento. Fiel ao espírito de Proust, aquele apartamento onde transcorre a história inteira é silencioso como uma respiração suspensa. Ressoam os pesados sapatos da criada no piso de madeira. Tampas de armário, gavetas, janelas, tudo isto produz um barulho que, sem ser desagradável, parece mais alto do que na verdade é. 
 
Já morei em apartamentos tão silenciosos que durante a noite alta cada barulho se tornava insuportável. Você mexe na gaveta dos talheres, e tem a sensação de que está acordando o prédio inteiro. Assimilei a tal ponto essa neurose que meu computador não tem caixas de som: tenho que escutar tudo com os fones de ouvido. 
 
Proust se trancafiava naquela alcova e de lá não saía. Alguns críticos freudianos a comparam ao útero materno, de onde ele só teria emergido a contragosto. Ele desenvolveu um fuso horário próprio, que o fazia acordar no fim da tarde e adormecer depois que o sol saía. Em alguns momentos da minha vida consegui pôr em prática esta utopia cronológica, e a transportei para toda a geração do meu narrador anônimo do conto “Príncipe das Sombras”: 
 
A culpa era do buraco na camada de ozônio e da sujeira das praias, em coisa de vinte anos tinha surgido aquela geração de gente que nunca tinha sido exposta a nada mais que crepúsculos e auroras, nesta ordem. 
(A Espinha Dorsal da Memória, Bandeirola, p. 95)
 
Um arco temporal que reencontrei anos depois no belo título de Tarantino/Rodríguez: From Dusk to Dawn, “Do Crepúsculo à Aurora”. 
 
Acordar no fim da tarde e só ir dormir quando o sol nasce é uma utopia de gente excêntrica e branquela. Proust passava suas noites frequentando cafés, visitando a marquesa-dos-anzóis ou a madame não-sei-das-quantas. E ao voltar para casa (este é um dos aspectos divertidos do filme de Percy Adlon) detinha-se por um tempão a fofocar com a criada – que, evidentemente, cumpria um fuso horário paralelo ao do patrão, para estar sempre alerta.


 
Vozes, passos, uma eventual campainha que soa: o filme economiza sons e cada um deles se torna impactante. E então a música aparece. Proust convida um quarteto de cordas para tocar na sua casa – e aí ele se comporta como um aristocrata, um delicado patrão, cheio de gentilezas: “Poderiam, por favor, executar de novo aquela passagem para o movimento tal?... Veja, Céleste, que beleza... Merci, merci.”
 
E durante todos esses anos ele na cama, recostado nas almofadas, escrevia, escrevia, até capotar de sono. E quando ao entardecer Céleste ia levar-lhe o desjejum ao quarto a sua cama estava coberta de manuscritos, de anotações, de páginas pregadas com cola, de cadernetas espalhadas...
 
Estava em busca do tempo perdido, mesmo sabendo que tempo vivido não se perde.
 


segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

5022) A palavra gole (15.1.2024)




 
Um dos melhores sinônimos de literatura é a expressão popular “palavra puxa palavra”, porque as palavras nunca estão soltas. Estão presas umas às outras, como as contas de compridos colares que não acabam nunca, ou como os átomos que se prendem uns aos outros em moléculas. Você pega um deles com cuidado, quer somente ele, puxa devagarinho com a pinça... e todo o resto vem junto. 
 
Dias atrás eu estava lembrando dos tempos de farra lá em Campina Grande. Nessa época a nossa cachaça preferida era a Casa Grande, alternativa contestatória à predominância econômica da Caranguejo, fabricada às margens do Açude Velho. 
 
A gente estava num bar (não lembro qual) cujo dono se orgulhava de ter algumas cachaças especiais. Um conhecido nosso (não me lembro quem) tinha terminado de enxugar sozinho uma garrafa de Casa Grande, aí o dono do bar disse: 
 
-- Tou vendo que você aprecia a boa cachaça. Eu tenho uma cana-de-cabeça aqui que é do engenho do meu tio, é melhor do que Rainha. Quer provar?... 
 
Era uma provocação, porque o camarada já estava pra lá do meridiano 35, mas na voz de cana-de-cabeça ele se empertigou, focalizou o olhar, hesitou um pouco e, erguendo dois dedos no ar, imitando o gesto do Prof. Raimundo, de Chico Anysio, concedeu: 
 
-- Quero. Mas só um góipizim...
 
Palavra puxa palavra, e nesse mesmo dia eu lembrei outro fato. Na nossa casa do Alto Branco minha mãe dispunha de uma milícia informal de ajudantes domésticas que vez por outra prestavam algum serviço lá em casa. Eram as mulheres humildes que moravam espalhadas pela vizinhança, muitas delas nas casinhas de barro que ficavam por trás do muro do nosso quintal. Um lumpen-matriarcado composto de lavadeiras, engomadeiras, cozinheiras, arrumadeiras, prestadoras de serviços gerais que Mãe às vezes contratava com salário por alguns meses, e em outros momentos apareciam num dia de tarefa específica. 
 
E um dia eu estava zanzando por dentro de casa quando surge à porta dos fundos uma delas, trazendo à cabeça uma pesada trouxa de roupa lavada. Era um dia quente, de sol forte. Mãe a ajudou a botar a trouxa em cima da mesa e disse: 
 
-- Que calor, hein, Dona Maria?... Quer uma agüinha?...
 
E ela disse:
 
-- Só um góipizim, Dona Cleuza... 
 
Um góipe significa um golpe – e para mim era óbvio que um golpe significa um gole
 
As palavras são invisíveis para as pessoas que as usam sem prestar atenção. Eu sou daquele clube para quem elas são mais do que visíveis: são concretas, palpáveis, têm peso e dimensões, têm história e geografia, e, como dizia Guimarães Rosa, “têm canto e plumagem”. 
 
Não me passou despercebido que nas histórias em quadrinhos, toda vez que um personagem “engole em seco” (por nervosismo, constrangimento, etc.) a onomatopéia projetada no espaço é GULP!  E meu inestimável “Webster/Houaiss”, adquirido em 1987 quando comecei a traduzir para a Ed. Record, logo me informou que “to gulp” é de fato “engolir”. 




“Góipe” é uma corruptela de “golpe”, de “gulp”, de “gole”. Vale destacar que a lavadeira de minha mãe, quando usou essa palavra, o fez sem afetação alguma; era a palavra que ela conhecia, num contexto de conversa amigável com uma pessoa de sua convivência. E quando o bêbo aceitou a dose de cana-de-cabeça, usou a corruptela “góipizim” de forma espirituosa, como um gracejo. Ele não falava assim em sua vida normal. Era um daqueles professores jovens do Campus II da UFPB que no fim das manhãs de sábado iam para o Caldo de Peixe tomar umas e outras, e discutir tropicalismo, marxismo, armorialismo. 
 
Adivinhar as origens das palavras e os parentescos entre elas nunca é trabalho jogado fora, para quem quer ser jornalista, escritor, tradutor. Essa mania muitas vezes nos leva a cometer enganos, iludidos por semelhanças superficiais. (Dias atrás, comentei aqui minhas tentativas frustradas de descobrir se a palavra “obrigado” vinha do verbo “brigar”; não vem.) E pode nos proporcionar também uma diversão extra – inventar etimologias fictícias para uma palavra qualquer. 
 
Mas... voltando ao tema principal, como num sinfonia: de que maneira a palavra “golpe” adquiriu a pronúncia popular “góipe”? É um processo lento e sujeito às influências do Acaso, mas que pode ser rastreado. A Linguística tem certamente um termo específico para esse tipo de erosão fonética, ou de amaciamento sonoro. É algo que pode inclusive ser previsto, quando imaginamos como pode ser nosso idioma a 200 anos no futuro; e pode ser deduzido retroativamente, se nos projetarmos 200 anos no passado. 
 
Há uma certa tendência (corrijam-me os linguistas) amolecendo esse som de “L” (e às vezes de “LH”) num “I” que flui mais solto quando articulado em voz alta. (Lembrem-se, nada aqui tem a ver com letras escritas; estamos falando de sons.) 
 
Quando um nordestino pede na feirinha livre “um mói de coentro” ele está pedindo “um molho de coentro”. Quando ele diz que “Isso aqui é muito paia”, está dizendo que “é muito palha”, para dizer que não presta. E nem vou falar em termos como véio e véia, que todo mundo entende. 
 
Prefiro lembrar a piada clássica do barbeiro matuto, que depois de escanhoar o cliente pergunta, solícito: “Qué áico, táico, ou qué que mói?...” (“Quer álcool, talco, ou quer que molhe?...”). 
 
Tudo isto aqui está em formato de afirmações, mas são apenas hipóteses. Uma hipótese deve sempre vir em forma de afirmação, para despertar a sanha contestatória dos leitores, de onde tanto pode vir mero som e fúria, quanto um raio de luz nas trevas do nosso desconhecimento coletivo. 
 
Não tenho nenhuma hipótese de como a palavra “golpe” veio a significar “gole”, ou de como esta, que talvez seja mais antiga, acolheu essa variante. Registro apenas uma terceira ocorrência, muito próxima aos dois: o verbo “golfar” e o substantivo “golfada”. “O sangue golfava de um profundo ferimento que ele tinha no peito...”  “Traz um pano aí, o bebê está golfando...” Em ambos os casos, trata-se de pequenas quantidades de líquido, como num “gole”. 
 
É bom registrar que “golfada”  também sofre a mesma corruptela e aparece na linguagem nordestina como “goipada”, no sentido de “cuspida”, ou de “golfada de vômito”.


 
(DICIONÁRIO DE PARAIBÊS, Vicente Campos Filho)


Já na casa dos 20-30, folheando “bandas desenhadas” francesas, me deparei com a exclamação “Ta gueule!...” que minha inteligência artificial traduzia como “Tua goela!...”, ou seja, tua garganta. Aos poucos, por superposição de diferentes contextos, de Wolinski a Tintin, fui deduzindo um significado tipo “”Fecha essa matraca!...” Permaneceu, no entanto, a associação com “goela”, principalmente através da gíria campinense “bicho-güela”, no sentido de “sujeito falastrão, gabola, mas envolvente, com papo-de-derrubar-avião”.



 
E depois, vasculhando os dicionários à cata de uma palavra nova aqui, outra ali, fui percebendo a quantidade de palavras ligadas entre si por proximidade sonora/estrutural e vizinhança semântica. 
 
Goela = pescoço, garganta, falação 
Güelar = ganhar no papo, na conversa finória. “Preciso güelar um convite pra essa festa, vou dizer que sou músico-reserva da banda.” 
Gola = parte do vestuário em volta da garganta 
Gula = apetite excessivo 
Guloseima = comidinha gostosa 

... e por aí vai.
 
Ao verificar a relação entre “gueule / goela”, não pude deixar de pensar: “E a palavra pescoço?... Que papel desempenha nessa nuvem semântica?...”  
 
Claro que já havia uma certa pulsão rabelaisiana nessa linha de pesquisa, pois todo mundo sabe que “pescoço” em francês é “cou”; se não todo mundo, pelo menos Campina Grande inteira sabe, porque a quantidade de piadas, anedotas e gracejos envolvendo estas palavras daria um livro. 
 
Pescoço em francês é “cou”, mas também é grafado como “col” – e vejam como a Terra é mesmo redonda, a gente dá uma volta tão longa e retorna ao português. “Colo” é pescoço, sim, lembrem da personagem de Arsène Lupin, “Edite, colo de cisne”. Só que devido ao sacolejo dos séculos a palavra aqui foi se espalhando por toda a parte fronteira do corpo – falamos de uma mulher cujo decote a deixa “com o colo à mostra”, falamos de “trazer um bebê ao colo”, falamos de “sentar no colo”... Mas tudo isso, palpito eu, escorre do pescoço. “Colar” (o adereço) deve ter a mesma origem: algo que se usa ao pescoço. 



 
O trajeto dos dominós veio se encaixando assim: golpe / gole / goela / pescoço / cou / ... E num estalo completei mais uma volta e cheguei ao ponto de partida: golpe é francês é coup, de onde vêm as expressões famosas “coup de grâce” (“golpe de misericórdia”) e “coup d’état” (“golpe de estado”). Coup é associado ao verbo “couper”, cortar. Parece que os franceses têm uma tradição guilhotinadora, enquanto outros países optavam pelo fuzilamento e a cadeira elétrica. Quando fui verificar coup, no entanto, o que encontro como sentidos possíveis? 




O mesmo sentido que deu início a este passeio: “golpe” (coup) quer dizer “gole (de bebida)” (coup).
 
Claro que estas associações de idéias não são fixas nem têm todas as mesmas nuances. Cada cultura e, mais, cada pessoa projeta vibraçõezinhas diferentes em tudo que diz. Chego mesmo a concordar com Douglas Hofstadter, quando no seu incrível Le Ton Beau de Marot (1997, cap. 10), ele questiona: 
 
Um novaiorquino do Upper East Side fala a mesma linguagem de outro que é do Upper West Side? “Central Park” significa a mesma coisa para ambos? E o que dizer de “Broadway”? E de “cachorro”? E de “coisa”? E de “um”?
 
Um golpe, no meu dicionário afetivo, seria apenas um góipizim de cachaça que a gente vira, pra esquentar as brasas do juízo e colorir o rosto da Natureza.