Existe em nós um prazer maligno no ato de interferir na
linguagem coletiva e estabelecer, “do nada”, que de agora em diante algumas
coisas são proibidas e outras são obrigatórias.
Quando quem faz isto é o vizinho do lado, que se limita a
bradar seus impropérios, tudo bem; o pior é quando quem faz isso é uma massa
amorfa de gente ansiosa para aderir a uma moda qualquer e sentir-se
significativa.
Na minha infância, certas palavras eram consideradas de
mau gosto. Eram termos plebeus, grosseiros, que gente direita não usava. Algumas
tias minhas, quando em reuniões um pouco mais formais, com pessoas de fora da
família, nunca diziam: “Fulana está grávida”. Diziam: “Fulana está esperando”. Ou, melhor ainda: “Fulana está em estado
interessante”. Minha curiosidade sheldoniana era: Grávida é palavrão? Não, elas
me asseguravam. É que é mais educado dizer assim.
Me vinha à mente o exemplo (se não me engano) do Conselheiro
Acácio, de Eça de Queiroz, que não dizia “vomitar”, e sim “restituir”, e fazia
um gesto ilustrativo.
Há sempre um eufemismo que serve para mostrar o quanto
somos refinados, bem-falantes, o quanto sabemos o que é delicadeza e não
precisamos olhar no dicionário o significado de circunlóquio nem o de
cerca-lourenço.
Um eufemismo muito em voga atualmente é “gratidão” no
lugar de “muito obrigado”. Vários amigos e amigas com quem converso preferem
essa forma. E me explicam. “Muito obrigado” passa uma idéia de que você se
sente coagido, preso, se sente forçado a agradecer, está sendo obrigado a
agradecer mas por sua vontade não agradeceria. Ao passo que “gratidão”, este
mero substantivo, tem a clareza e a pureza de exprimir, sem subterfúgios, o que
você está sentindo diante do gesto alheio.
É sempre divertido xeretar as origens dos termos, e me
veio à idéia buscar as origens de “obrigado”, até porque me interessava saber
se havia alguma relação etimológica com o verbo “brigar”. Quantas vezes dizemos
“’Brigado!...”, “ ‘Brigadão!...” (Spoiler: não tem.)
Fui olhar no útil etymonline.com
a palavra “obligation”, e eis que ela advém do latim “ob-ligationem”, que
envolve a idéia de “ligar”, unir, prender através de um laço (concreto, ou
simbólico); a idéia de vínculo através de um compromisso, de uma promessa, de
uma dívida, de um pacto, e assim por diante.
Daí vem a interpretação corrente, de que você me fez um
favor ou uma gentileza, e por isto estou ligado a você por esse vínculo de
gratidão; é algo que nos une simbolicamente.
A crítica que se faz a “obrigado” talvez se origine de um
certo desconforto quanto à nuance de “estou te devendo um favor” “estou ligado a
você por uma dívida que serei coagido a pagar mais cedo ou mais tarde”.
Essa dívida é real? Para muita gente, sim. O favor é uma
moeda perigosa, sujeita ao câmbio flutuante das relações de poder. Às vezes o
sujeito me dá uma carona numa noite de chuva e meses depois pede meu carro
emprestado para ir a um show de rock.
A questão de “pagar de volta um favor” transforma a arte
de ajudar alguém uma espécie de agiotagem da bondade. Como dizia um sábio,
“cuidado com quem lhe dá alguma coisa que você não pediu, porque cedo ou tarde
vai lhe pedir alguma coisa que você não pretendia dar”.
(Theodore Sturgeon e Robert Heinlein)
O gesto de pagar de volta um favor qualquer é sempre um
gesto positivo. Mas igualmente positivo é o gesto de pagar para diante, “to pay
forward”, como dizem os norte-americanos. Dizem que Theodore Sturgeon, o grande
escritor de More Than Human, estava
uma vez numa pindaíba que dava dó. O igualmente grande Robert Heinlein, que estava
com um ou dois livros na lista de best-sellers, ficou sabendo e mandou-lhe pelo
correio um cheque que lhe zerava as dívidas. Sturgeon agradeceu e disse que
pagaria de volta, quando pudesse. Heinlein disse: “Não precisa me pagar. Quando
vir alguém que precisa, e puder ajudar, ajude. Pague para diante.”
Eu não me sinto manietado nem jungido quando mando meu
muito-obrigado a alguém. A carga de significado desse agradecimento está mais
na posição que ele ocupa no encadeamento do diálogo do que no sumo semântico de
seus termos. Esqueçam os termos em si. Como diz um amigo meu, quando a gente
chama um sujeito qualquer de filho-da-puta não está tentando ofender a mãe dele,
uma santa senhora que não merece o filho canalha que tem.
Na minha cabeça, a palavra “obrigatoriedade” evoca idéias
de autoritarismo, perda do livre arbítrio, cerceamento da liberdade.
Curiosamente, a expressão “muito
obrigado” não carrega (falo de minha leitura pessoal) nenhuma dessas
conotações. Por alguma tresleitura feita na infância, algum entendimento
enviesado do que os adultos estavam dizendo, sempre traduzi “muito obrigado”
por “muito agradecido”, e essa fórmula para mim encerrava a questão. Você me
faz um favor. Eu reconheço, registro, agradeço, e boa tarde.
Eu nada tenho contra quem usa “gratidão”, e na verdade
nem percebo mais. Digo “obrigado!” há décadas e espero continuar a fazê-lo por
muitas décadas mais. Embora atualmente me veja dando preferência ao popular
“Valeu!...”. Ele me parece uma versão mais informal desse termo, uma versão
mais calça-jeans-e-camiseta. “Obrigado” ainda é um pouco
camisa-social-de-mangas-compridas.