Passou pelas minhas mãos o livro póstumo de Roberto Bolaño El Gaucho Insufrible, uma coletânea de contos e ensaios curtos, já com tradução e edição brasileira à vista. (Li na edição omnibus da Anagrama, Barcelona, 2010, onde o livro vem em conjunto com Llamadas telefónicas e Putas asesinas).
Bolaño tem uma prosa líquida, fluente, aparentemente espontânea, um estilo de escrever que muitas vezes parece sair pronto do teclado, sem maior esforço que o de digitar. Não que lhe seja estranha a prosa mais elaborada, mais tensa, cheia de imagens imprevistas, de reviravoltas inesperadas no modo de pensar e de expor. Na maioria dos casos, no entanto, ele dá a impressão de que escrevia e mandava direto para a gráfica. O que é sempre ilusório. Parecer espontâneo dá muito trabalho.
Outro traço típico dele é o modo como ele parece evitar de propósito os finais espetaculares, dramáticos, catárticos. Apesar de se dizer um fã de Edgar Allan Poe, neste aspecto ele vai na contramão do mestre. Seus contos estão mais para o efeito de Tchecov: a descrição de uma série de eventos que, ao invés de conduzir a um evento final retumbante, vai se diluindo em eventos menores e menos expressivos, como uma fumaça que se dissipa no ar.
Em El Gaucho Insufrible temos contos nos dois modelos. E temos um exemplo de conto fantástico ou alegórico, não típico do autor, que é “El policía de las ratas”, uma fábula zoológica que ele deriva explicitamente de “Josefina, a cantora, ou o povo dos ratos”, de Franz Kafka. O rato narrador é um policial a quem cabe investigar uma série de crimes misteriosos que estão ocorrendo nos esgotos onde a rataria vive.
Bolaño era um leitor atento e inteligente de poesia, de prosa, de ficção científica e romance policial. O livro se conclui com dois textos que na verdade são agregados de fragmentos curtos de apreciação literária: “Literatura + enfermedad = enfermedad” e “Los mitos de Cthulhu”. Este aqui não tem nenhuma menção a Lovecraft. O título é apenas uma isca, um clickbait, para que o leitor-de-gênero o leia antes de todos os demais.
Os dois melhores contos são duas histórias longas com enredo bem ao gosto de Bolaño: um protagonista que vai entrando aos poucos num trajeto de acontecimentos onde cada evento novo conduz a uma situação que o precipita noutro evento imprevisível, e assim por diante. O protagonista parece não saber muito bem o que pretende, e quando o sabe parece não estar ansioso para alcançar seu objetivo. Deixa-se levar meio passivamente, como um daqueles personagens para-existencialistas dos romances policiais noir. “Deixa a vida me levar, vida leva eu.”
O primeiro conto é o que dá o nome ao livro. “El gaucho insufrible” transcorre na Argentina e conta as peripécias da vida de Héctor Pereda, advogado bem sucedido, viúvo, com um casal de filhos adultos. As crises políticas e econômicas do país o levam a abominar a cidade tumultuada e refugiar-se no campo, numa propriedade remota a que nunca dera muita atenção. Ali, como tantos urbanóides, ele tenta se adaptar a uma vida mais pura, mais simples, no meio de vaqueiros e camponeses rudes, que o tratam com respeito mas veem com estranheza seus rompantes gastadores, seu paternalismo jovial.
A vida de Pereda vai se tornando uma sucessão de empreitadas bem ou mal sucedidas, enquanto ele se recusa a tornar a Buenos Aires. Os filhos, e alguns amigos, empreendem a longa viagem até sua estância para tentar trazê-lo de volta ao mundo civilizado. Ele tenta restaurar casarões, caça coelhos (uma verdadeira praga do lugar), espanta-se com a vastidão aterradora do pampa.
A mulher e as crianças puseram-se a caminhar por uma rodovia e embora se afastassem e suas figuras fossem se tornando diminutas passaram-se mais de três quartos de hora, calculou o advogado, até que desaparecessem no horizonte. É redonda a Terra?, pensou Pereda. É claro que é redonda, respondeu a si mesmo.
(trad. BT)
No final, depois de anos de pesadelo campesino, ele volta a uma Buenos Aires que não reconhece mais, caminha a esmo pelas ruas, pára diante das vidraças de um café de escritores que frequentara no passado, e sente-se ali como uma espécie de extraterrestre, ou, como diria Fernando Pessoa, “um estrangeiro aqui como em toda parte”.
O outro conto tem um perfil de quest, de demanda, e também de investigação, lembrando os obsessivos “detetives selvagens” do romance do mesmo título, à caça de uma pessoa que parece nunca ter existido. “El viaje de Álvaro Rousselot” parte de um início enigmático. Rousselot, escritor argentino, publica um romance intitulado Soledad que acaba sendo traduzido ao francês. Pouco depois, aparece na França um filme, Las voces perdidas, dirigido por Guy Morini, que parece um plágio descarado do romance.
Rousselot se inquieta, mas deixa passar. Publica um romance policial, torna-se medianamente famoso, e em seguida um romance humorístico, Vida de recién casado, que é bem recebido pelo público. Logo em seguida, contudo, surge nas telas um novo filme, de Guy Morini: Contornos del día, que é uma versão fiel mas melhorada do livro mais recente de Rousselot.
Começa então o périplo do escritor, que reúne suas economias e, a pretexto de comparecer a um evento literário na Europa, escapa rumo à França e entra numa investigação (desajeitada, incompetente, cheia de surpresas agradáveis e outras nem tanto) em busca do elusivo Guy Morini. Não se sabe bem para quê; para tomar satisfações? Processá-lo? Beber com ele? Crivá-lo de balas? Rousselot viaja, inquire, telefona, pega ônibus e trens, e ele mesmo não tem uma idéia do que fará quando se deparar com seu plagiador.
Muitos contos de Bolaño têm esse enredo que nos dá a impressão de que, tal como seu personagem, o escritor não sabe muito bem para onde está se dirigindo e todo dia, ao sentar-se para escrever, vai tecendo episódios menores que conduzem a episódios mais longos, que não dão em nada mas lhe permitem dobrar uma esquina do enredo e conduzir a investigação (a invenção da estória) num rumo imprevisto.
É uma leitura desconcertante para os leitores formatados pelos manuais de roteiro televisivo e pela estética do romance onde tudo conduz a alguma coisa, tudo se amarra, tudo tem função, tudo tem uma resposta mais adiante.
Bolaño, quando envereda por este tipo de narrativa, nos leva de árvore em árvore sem muita intenção de revelar (ainda que a si mesmo) o formato da floresta. Seus contos se parecem ao que os matemáticos denominam “um segmento de reta”. Uma linha reta (conceitualmente) não tem começo e não tem fim, de modo que é preciso atribuir-lhe (para efeito de uma demonstração qualquer) o começo A e o final B. Os contos do chileno são pura travessia, e se esvaem ou se interrompem bruscamente sem que suas principais perguntas tenham obtido resposta. Como a vida. A do próprio Bolaño, por exemplo.