domingo, 15 de outubro de 2023

4992) Lupin e a pérola negra (15.10.2023)




A série francesa Lupin voltou agora pelo Netflix, em sua terceira temporada. Houve um certo receio de que não voltasse, porque as duas primeiras temporadas mostraram o começo, meio e fim da aventura de Assane Diop (o “Arsène Lupin” moderno) para destruir a família do milionário Pellegrini, algoz de seu pai. 
 
A terceira temporada inicia uma aventura nova, “A Pérola Negra”, com o mesmo ótimo elenco, roteiros espertos e direção agradável. É um folhetim, e estas aventuras têm momentos dramáticos mas não buscam a tragédia, têm momentos engraçados mas não se pretendem propriamente cômicas. 
 
Vi algumas críticas às temporadas anteriores: “Ah, mas assim é muito fácil, alguém deixou uma porta destrancada, sem perceber, e ele fugiu...” Facilidades deste tipo fazem parte da dramaturgia do folhetim, que não tem que ser 100% plausível. Uma dramaturgia séria como a de Breaking Bad não poderia usar de forma tão relaxada a coincidência, ou o fato de que o herói possui justamente o recurso necessário (instrumento, informação, contato, amizade) que lhe permite sair de uma sinuca. 
 
O folhetim não é uma narrativa realista, é uma prestidigitação com acontecimentos. Uma série de truques, como os da magia de palco, onde sabemos muito bem que aquilo é impossível (a mulher não foi serrada ao meio, a água não virou confetes), mas aplaudimos a fluência com que a falsa magia é apresentada. 
 
Lupin emprega reiteradamente alguns efeitos narrativos que aumentam em muito o interesse do espectador, principalmente o espectador que leu os romances originais de Maurice Leblanc e a cada episódio lembra-se de um truque, uma situação, um golpe, um suspense que estavam nos livros e são agora recuperados em contextos diferentes, atuais. 
 
Os livros de Maurice Leblanc sobre Arsène Lupin foram sucesso absoluto entre 1905 e 1935. Há exatamente 100 anos ele estava publicando As Oito Pancadas do Relógio, um dos seus melhores livros, com oito contos em que Lupin (nessa época mais para detetive amador do que para simples ladrão elegante) decifra uma série de crimes. Incluí um conto desse livro, “A Morte na Praia” (“Thérèse et Germaine”) na minha antologia Crimes Impossíveis (Bandeirola, 2021). 




É típico do aventureiro Arsène Lupin estar numa das pontas de um triângulo complementado pela “polícia” e pelos “vilões”. Lupin não é o vilão. É apenas um desapropriador contumaz de fortunas mal ganhas. Quando ocorre um assalto ou um crime de grande repercussão, a polícia naturalmente o atribui ao “usual suspeito”, ou seja, ele. Lupin arregaça as mangas, mergulha por conta própria na investigação, decifra o mistério, ridiculariza a força policial, entrega-lhe manietado o criminoso, e foge com algum tipo de riqueza ou jóia com que se deparou no transcurso da aventura (ou pelo menos uma mulher bonita). 
 
Um dos charmes desta série de TV é que o herói original, um  bonitão elegante com porte de Omar Sharif, é apenas a inspiração literária para Assane Diop (o ótimo Omar Sy), um negro enorme, simpático, atlético, de papo convincente, e com um talento para o disfarce que consegue atenuar (usando inclusive a “invisibilidade social” do negro) a extrema visibilidade de sua estatura.




Um detalhe importante da série é a presença do policial Guédira, que tal como Diop é um fã dos romances de Maurice Leblanc, e os conhece a fundo. Isto é pretexto para um jogo de pistas e alusões em que Guédira percebe as intenções de Diop, mas não consegue explicar aos demais membros da polícia a importância das alusões literárias.
 
Dessa maneira, existe um diálogo à distância entre o ladrão e o policial, uma “fanzice” compartilhada, com uma aproximação gradual que vem se estreitando ao longo da temporada. E que de certa forma “atualiza” a simpatia meio paternal que o Lupin original tinha pelo sofredor Inspetor Ganimard.



(Omar Sy, como Assane Diop, e Soufiane Guerrab, como o policial Guédira) 
 
Dois recursos narrativos do roteiro da série (criada por George Kay e François Uzan) ajudam a dar dinamismo à situações mostradas – que, como é habitual no gênero dos “heist movies” ou “filmes de assalto”, precisam ter um pouco frouxas as rédeas da verossimilhança.
 
O primeiro é o fato de que a narrativa conta em paralelo a vida adulta e a infância de Assane Diop (e nesta parte encontramos várias das pessoas que virão a ser importantes na sua vida de adulto). E muitas vezes, quando o Assane adulto está num beco sem saída qualquer, surge um flashback de sua infância mostrando que quando adolescente ele passou por uma situação parecida, deu-se bem ou deu-se mal, mas aprendeu uma lição. Lição que agora põe em prática.



(Mamadou Haidara, como o jovem Assane)
 
O segundo recurso é uma espécie de “rewind” da narrativa. No momento crucial do perigo, surge uma interferência salvadora aparentemente “do nada” para resolver a situação. Nesse instante, a narrativa se interrompe, surge um letreiro tipo “Três dias antes...”, e só então entendemos como Diop tinha antevisto o perigo e preparado sua salvação.
 
Lupin é uma série que teve a sabedoria de, ao invés de fazer uma série de época, de cem anos atrás, dando vida ao personagem, preferiu mostrar um Lupin atual, um leitor-fã com inteligência suficiente para se meter em aventuras semelhantes ao de seu personagem favorito. E de fazê-lo numa Paris de hoje, uma Paris multirracial, cheia de novas tensões sociais e de novas tecnologias.
 
É interessante notar que este último aspecto já havia sido adotado pela série inglesa Sherlock  (com Benedict Cumberbatch e Martin Freeman). Ali, os personagens originais foram “transplantados” para o presente. Holmes continua detetive – mas Watson é blogueiro. E se faz uma exploração intensa de celulares, computadores, GPS, internet, etc., ou seja, é necessária uma mudança estrutural em alguns enredos que se baseavam numa sociedade onde o telégrafo, o telefone e a fotografia eram o máximo de recursos high-tech à disposição.