Numa noite de fevereiro de 2012, na cidade de Queimadas
(PB), um grupo de homens armados e mascarados invadiu uma casa onde rolava uma
festa de aniversário com rapazes e moças, alguns deles de famílias consideradas
importantes na cidade. A luz foi apagada, as pessoas foram amarradas e
distribuídas pelos vários quartos. Seguiu-se uma série de estupros,
espancamentos, ameaças. A certa altura, duas das mulheres foram arrastadas para
uma camionete, que partiu em seguida. Na mesma noite, as duas foram
encontradas, mortas a tiros. Eram Izabella Pajuçara, “Ju”, e Michelle Domingos.
O caso ficou conhecido como “a Barbárie de Queimadas”, e
assim continua a ser chamado pela imprensa. Em princípio, é um caso de
violência e feminicídio semelhante a muitos outros que acontecem no Brasil. O escritor e jornalista Bruno Ribeiro
acompanha o episódio há mais de dez anos, e entrevistou mais de cem pessoas
para escrever o livro Era Apenas Um
Presente Para o Meu Irmão (Todavia, 2023).
No dia seguinte ao crime, o mistério começou a ser
esclarecido. O mentor do assalto foi Eduardo dos Santos Pereira, o dono da casa
onde acontecia a festa. Ele convidou várias moças da cidade, de famílias
amigas, que conviviam no dia a dia com ele e com seu irmão, o aniversariante
Luciano. O objetivo era fingir um assalto (recrutando alguns amigos) e permitir
que todos pudessem estuprar as moças.
O livro de Bruno Ribeiro destaca esses pontos que
diferenciam este crime da maior parte dos gang
rapes que se vê por aí. O primeiro ponto é o fato de que criminosos e vítimas
se conheciam, conviviam no ambiente de uma cidade pequena. Ou seja, mesmo com o
uso de máscaras e balaclavas cobrindo os rostos, era provável que algum deles
acabasse sendo reconhecido, mesmo com a casa sob blecaute; e foi o que
aconteceu.
Outro ponto é que no grupo de dez estupradores havia pelo
menos três menores de idade, e alguns indivíduos (descritos pelas testemunhas
como “bobões”) que poderiam servir de bodes expiatórios. Alguns declararam que
só tomaram parte no assalto porque a intenção (de acordo com o mandante,
Eduardo) era de “fazer uma brincadeira”, “dar um susto nelas”. A explicação
final do cabeça do crime é justamente a que deu o título ao livro de Bruno
Ribeiro. Ou seja, o aniversariante iria receber de presente a chance de “comer
na marra” algumas moças bonitas da cidade.
Apenas duas mulheres da festa não foram tocadas: as
esposas de Eduardo e Luciano, que foram trancadas juntas num quarto e poupadas
pelo grupo.
Tudo desandou quando Izabella reconheceu Eduardo e
começou a gritar seu nome. Outros homens foram reconhecidos, pela voz, ou por
adereços pessoais. No dia seguinte, as primeiras prisões ocorreram durante o
velório das duas moças, à medida que os assaltantes entregavam uns aos outros.
Bruno Ribeiro é autor de romances como Febre de Enxofre (Penalux, 2016), Glitter (Moinhos, 2019) e Porco de Raça (Darkside, 2021). O livro
sobre a Barbárie de Queimadas ganhou o Prêmio Todavia de Não Ficção e faz um
poderoso contraponto à sua ficção áspera, de prosa crispada e tensa, sobre a violência
que perpassa o espírito do nosso tempo.
Um aspecto interessante é que por volta da metade de Era Apenas Um Presente... já foi
descrito o crime, já lemos os depoimentos dos envolvidos, já aconteceram as
prisões e os julgamentos, as sentenças já foram proferidas. Temos a impressão
de que o livro termina ali. O que resta para contar?
Daí em diante começa a investigação do que rodeou o crime;
do que o favoreceu; do que conduziu àquele estado de coisas; do que veio
depois. Eduardo, o líder, foi condenado a 106 anos de prisão. Em novembro de
2020, ele fugiu andando, pela porta, do presídio de segurança máxima PB1, em
João Pessoa. O escândalo dessa fuga fez estremecer novamente todos os fios que
convergem para o crime de 2012. Lealdades de família, troca de favores,
influência política, proteção, pesados subornos, tudo é discutido no ambiente
dos advogados, dos jornalistas, dos policiais, dos defensores dos direitos
humanos.
O livro mostra essa rede tensa de relações sociais
baseadas no dinheiro, na violência, na influência política, no machismo e na certeza
da impunidade. Algumas pessoas, na época, chamaram os estupradores de Queimadas
de “imbecis” por terem acreditado que um crime tão mal executado poderia passar
impune. Na verdade, não houve tanta preocupação em esconder a identidade dos
assaltantes. Os que estavam à frente tinham certeza da impunidade, e sabiam
que, mesmo presos, dariam um jeito de escapar.
Bruno Ribeiro deixou o romancista de lado e ligou o
aplicativo-jornalista para fazer o levantamento minucioso das histórias,
versões e interpretações de dezenas de pessoas. Na última parte do livro, ele
traz a narrativa para o presente e descreve, numa tensa narrativa em tempo
real, a visita que fez à Rocinha, no Rio de Janeiro, e as cervejas que tomou no
bar do pai de Eduardo – o bar onde muita gente, inclusive a polícia, acha que
Eduardo está escondido até hoje. Nesse momento, depois de tantas páginas de
compilação e recapitulação de momentos passados, o romancista emerge com a
habilidade de mostrar o momento presente: um galeto servido na mesa, a troca
“casual” de frases com os parentes do criminoso, a presença de homens que bebem
numa mesa afastada, uma ida ao banheiro, uma música que toca...
É em ambientes assim que os crimes são gestados? Talvez,
porque a possibilidade do crime permeia tudo, como uma umidade relativa do ar
que está sempre presente e invisível, e a qualquer momento, em qualquer lugar,
pode se concentrar em tempestade.
Como diz o autor:
“Quando se estuda crimes no Brasil, pode-se dizer que aquele que suja
as mãos é pego, mas quem o mandou sujar as mãos, não. Há sempre uma parte que
nunca é agarrada, algo movediço, alheio aos nossos esforços. No caso da
Barbárie, o julgamento foi uma resolução clara do caso, resolvido até com certa
destreza. Mas as raízes do crime, tudo que existiu para fazê-lo acontecer e,
não só ele, mas tantos outros casos de feminicídio que foram praticados e ainda
acontecem em Queimadas, parece ficar na escuridão, abafado. A resolução de
grandes crimes é sempre uma metonímia: uma narrativa que nos entrega mais um
pedaço que o todo.” (pág. 188)