Desde que eu me entendo por gente existe uma busca
constante pelo famoso Monstro do Loch Ness, uma espécie de criatura aquática
pré-histórica que se diz existir nesse lago da Escócia. Dezenas de pessoas
dizem que já o viram, mas isto não prova a existência de nada. Algumas pessoas
o fotografaram, mas isto nunca foi prova, mesmo no tempo dos filmes de
celulóide e de negativos que podiam ser periciados. Depois da invenção do
Photoshop, e, agora, com a famigerada Inteligência Artificial, fotos do monstro
vão pipocar por todos os lados. O que também não serve de prova para coisa
alguma.
A foto mais famosa do monstro (a do início deste texto) foi
tirada em abril de 1934 pelo médico londrino Robert K. Wilson. É tão famosa
quando a foto do Pé Grande (ou “Sasquatch”) – na verdade um fotograma de um
curto trecho de filme captado em 1967 no norte da Califórnia por Roger Patterson
e Robert Gimlin. As acusações de fraude são muitas, é claro. Vendo um monstro,
quem resistiria a fotografá-lo? Não o vendo, quem resistiria a forjar uma foto?
Vendo a foto, quem resistiria a questioná-la? E la nave va.
(O sasquatch)
Neste ano de 2023 foi desencadeada uma nova busca ao
monstro do Loch Ness, ou “Nessie”, desta vez usando barcos com hidrófonos (que
captam o som num meio líquido) e drones térmicos, que fotografam a água de cima
para baixo, registrando imagens dos objetos com diferença de temperatura. “Nessie”
deve ser o mais famoso dos criptídeos (animal cuja existência é suposta, mas
não comprovada). Buscas deste tipo criam uma situação ambígua. Descobrir o
monstro (vivo ou morto) não seria uma maneira de extinguir a curiosidade, a
atração, as polêmicas?
Uma característica interessante do Loch Ness é a sua
extensão. Ele é uma faixa de água estreita e comprida, num comprimento de cerca
de 56 quilômetros por 2 ou 3 km de largura, e com uma profundidade máxima de
220 metros. A água é pouco transparente, devido às características do solo em
volta. Ou seja – há uma série de circunstâncias físicas tornando a busca mais
fácil ou mais difícil, conforme o ponto de vista.
Há uma verdadeira indústria local em torno dos avistamentos
do monstro, e isso nos remete a uma coisa curiosa. As aparições da Virgem Maria
em localidades como Lourdes (1858), Fátima (1917), La Vang (1798), Zeitoun
(1968) são fatos que desencadeiam reações muito parecidas. Alguém vê (ou
imagina ter visto) algo extraordinário. A notícia se espalha, multidões
acorrem, a imprensa aproveita, os céticos ridicularizam, os crentes se
encolerizam e acreditam cada vez mais...
E enquanto isto há um saudável aquecimento da indústria
hoteleira local, dos restaurantes, dos postos de gasolina, das lojas de
souvenires, dos postos de venda de produtos relacionados ao fenômeno – quadros,
imagens, bonecos, panfletos, fotos, bonés, camisetas e por aí vai.
Fatos deste tipo lembram um conceito proposto por Kurt
Vonnegut Jr. em seu livro Cama de Gato (“Cat’s
Cradle”, 1963). É o conceito de “wampeter” – que, ao que eu saiba, nada tem a
ver com o trêfego jogador Vampeta, ex-Corinthians e Seleção Brasileira.
Em seu livro, Vonnegut descreve uma religião bizarra, o
“bokononismo”, organizada em torno de conceitos bem curiosos. Bem ao estilo do
autor de Matadouro Cinco, são
conceitos cheios de crítica corrosiva ao funcionamento do nosso mundo.
O wampeter precisa
ser entendido em função de outro conceito, o karass, que ele explica logo nos capítulos iniciais do livro (Cama de Gato, Ed. Aleph, trad. Livia
Koeppl):
Nós, bokononistas, acreditamos que a humanidade é organizada em
equipes, equipes que realizam a Vontade de Deus, sem nunca descobrir o que
estão fazendo. Bokonon chamou equipes como essas de karass (...). “O homem criou o tabuleiro de xadrez: Deus
criou o karass”. Com isto ele quer dizer que um karass ignora
fronteiras nacionais, institucionais, profissionais, familiares e de classe
social. Tem a forma tão livre como a de uma ameba. (pág. 12)
No capítulo 24, ele explica:
Isto me leva ao conceito bokononista de wampeter.
Um wampeter é a base de um karass. Não existe karass sem wampeter,
Bokonon diz, assim como não existe uma roda sem eixo.
Um wampeter pode ser qualquer coisa: uma árvore, uma pedra, um
animal, uma idéia, um livro, uma melodia, o Santo Graal. Seja o que for, os
membros do karass giram em torno do seu wampeter no caos
majestoso de uma nebulosa espiral. É evidente que as órbitas dos membros do karass
que estão em volta do wampeter em comum são órbitas espirituais. São as
almas que giram, não os corpos. (pág. 58)
O monstro do Loch Ness é um wampeter, uma hipótese que atrai para si a vida e os esforços de
dezenas de milhares de pessoas, talvez mais, mobilizadas para demonstrar sua
existência ou sua não-existência. Nesse grupo heterogêneo cabe todo tipo de
gente, desde os fanáticos que fazem disto uma religião até
cientistas de bom senso tentando estabelecer a verdade dos fatos, e gente com
dinheiro sobrando, tempo livre, e disposição para embarcar em alguma aventura
divertida.
É possível (longinquamente possível, arrisco-me a supor)
que haja algum ser pré-histórico no Loch Ness, ou se não pré-histórico pelo
menos algum tipo raro de criatura volumosa e assustadiça. A busca por ela é
algo mais justificável, por exemplo, do que a demanda dos defensores da Terra
Plana. Ainda não podemos afirmar com certeza que “Nessie” não existe, então faz
sentido investigar se ela é real ou não. Por outro lado, a redondeza da Terra
foi comprovada de muitas maneiras. Que wampeter
meio absurdo é este, que mobiliza tanta gente?
(O Lago Ness)
As pessoas precisam girar em torno de uma idéia, um
projeto, um objetivo (=um wampeter),
entre outros motivos pelo fato de que nossa sociedade se interessa por pessoas
que agem assim. Vendo no streaming
alguns documentários sobre terraplanistas, observei mais uma vez um padrão
recorrente. Um número considerável deles são pessoas com certa segurança material
(dinheiro herdado, ou profissões confortáveis) mas sem um objetivo mobilizador
de suas energias, e muitas vezes com uma certa angústia de invisibilidade
social, aquele pavor de “não ser ninguém”.
No momento em que se tornam parte de um karass e dedicam-se a um wampeter (um wampeter extraordinário, polêmico, fora do comum) essas pessoas
saltam para outro patamar social. Ficam famosas. São convidadas para participar
de convenções, seminários, mesas redondas; recebem bilhetes aéreos e vouchers de hospedagem; dão entrevistas
para jornais e emissoras de TV; envolvem-se em polêmicas que do dia para a
noite fazem a Web pegar fogo com acusações, questionamentos, desmentidos, solidariedades,
traições...
Em suma: por causa do wampeter
que cultivam, esses John Does, esses Zé Ninguéms tornam-se pessoas importantes,
e os mais espertos chegam mesmo a faturar uma boa grana.
O monstro existe? A Terra é plana? No fim das contas,
isso é irrelevante. Existe a busca pelo monstro, existe a “demonstração” da
idéia terraplanista, e é isto que faz mover a engrenagem de discussões,
artigos, programas, debates, teses, documentários, notícias. O fenômeno de um karass em torno de um wampeter tem a forma de uma rosquinha,
um “donut”, um toróide. O centro é vazio, sim, mas tudo que gira em torno dele
é real.