sexta-feira, 18 de agosto de 2023

4973) Otacílio Batista, cantador (18.8.2023)

 
 
O próximo mês de setembro trará as comemorações do centenário de nascimento de Otacílio Batista, um dos grandes cantadores de viola de sua geração. Um amigo-e-mestre com quem tive a sorte de conviver durante alguns anos, principalmente entre 1975 e 1980, quando eu morava no Nordeste (Campina Grande, Salvador) e convivia mais de perto com o Olimpo da cantoria.
 
Digo “Olimpo” na brincadeira, mas a cantoria é meio assim – uma montanha fabulosa habitada por deuses capazes de façanhas que nos parecem sobrenaturais, mas basta subir a ladeira e vê-los de perto para constatar que são “humanos, demasiado humanos”, com as mesmas paixões nossas, os mesmos sentimentos, as mesmas qualidades e defeitos... Ou seja: são duas vezes mais interessantes.
 
Otacílio Batista (28-9-1926 / 5-8-2003) era um dos três irmãos violeiros que muito fizeram para transformar São José do Egito (PE) numa das capitais simbólicas da cantoria. Junto com Lourival (1915-1992) e Dimas (1921-1986) ele representou a geração de meados do século 20, que viveu e impulsionou um dos vários ciclos de expansão e modernização da arte do repente.
 
E está pronta para ir às livrarias a biografia Otacílio Batista, uma história do repente brasileiro (São Paulo: Hedra & Acorde!, 2023), escrita pelo seu neto Sandino Patriota, pesquisador da Universidade Federal do ABC (UFABC). Não é o primeiro livro  abordar a pessoa e os versos de Otacílio, mas neste caso o autor, sendo da família, teve acesso a uma grande quantidade de material, inclusive narrativas orais que enriquecem o retrato.
 
Otacílio Batista Patriota já tem o nome na métrica perfeita do decassílabo em martelo agalopado, com acento nas sílabas 3, 6 e 10. Era um cantador de verso rápido, mas com uma dicção calma e cadenciada, a cabeça trabalhando como um chip Intel enquanto a voz escandia as sílabas sem vexame (=pressa), como se estivesse ditando o verso para alunos aplicados.
 
Fui um deles, aquele tipo de aluno de mesa de bar a quem ele sempre dava explicações pacientes, orgulhoso ao ver como os universitários cabeludos e intelectualóides estavam começando, em meados dos anos 1970, a querer saber quem inventou o galope beira-mar, quem foi Fabião das Queimadas, e a diferença entre sextilha e gemedeira.
 
 O livro de Sandino traz uma comparação detalhada e pitoresca entre os três irmãos Batista, traçando o perfil único de cada um.
 
Lourival: o mais velho, boêmio, farrista, humor sarcástico, lirismo delicado, trocadilhista emérito, vida profissional caótica.
 
Dimas (que não conheci pessoalmente) mais reservado, leitor voraz, lírico e erudito ao mesmo tempo, acabou deixando a viola de lado para ser professor e diretor de colégio.
 
Otacílio, grande observador, de verso elegante e resposta rápida, autor de inúmeros livros, capaz de belas poesias líricas e de versos fesceninos de fazer inveja a Bocage.
 
Como observa Sandino Patriota:
 
Apesar de ser apenas oito anos mais velho do que Otacílio e seis do que Dimas, a distância real entre esses cantadores era de uma geração inteira. Lourival pertenceu à geração dos Vates antigos: cantava, se portava e pensava como os cantadores que fizeram fama no fim do século XIX. (pág. 24)
 
Começando a carreira de cantador profissional em 1940, Otacílio foi um dos protagonistas do “boom” do repente após a II Guerra Mundial.
 
Em 1946, Ariano Suassuna quebrou um honorável tabu da cultura elitista ao levar cantadores (os Batista entre eles) para o palco do Teatro Santa Isabel, no Recife.
 
Em 1947, Rogaciano Leite organizou o primeiro congresso (=festival) de cantadores do Nordeste, no Teatro José de Alencar, em Fortaleza, onde a dupla vencedora foi Cego Aderaldo e Otacílio Batista.
 
Em 1948 Rogaciano “fechou o firo” ao levar para o Teatro Santa Isabel o segundo congresso de cantadores.
 
Em 1949, um grupo de políticos e jornalistas, admiradores do repente, produziram e organizaram uma viagem, ao Rio e São Paulo, de um grupo de violeiros que incluía os três Batistas, o veterano Severino Pinto (o “Pinto do Monteiro”) e Agostinho Lopes dos Santos. A revista O Cruzeiro (25-6-1949) dedicou várias páginas à caravana de poetas, que cantaram para ministros e autoridades, e foram celebrados por Carlos Drummond de Andrade e Joaquim Cardozo.
 

(Otacíio, Lourival,  Pinto e Dimas)


É bom destacar, sempre, que isto se deu num momento em que o baião de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira varria o Brasil radiofônico de ponta a ponta, e Gonzagão nunca deixou de lembrar o quanto sua música devia à batida da viola e às toadas dos cantadores. Foi um grande momento de evidência da cultura do Nordeste na indústria cultural (rádios, jornais, revistas) sudestina.
 
Sandino aborda também a questão do mito de Zé Limeira, “o Poeta do Absurdo” celebrado por Orlando Tejo. Como se sabe, muitos dos versos atribuídos por Tejo a Zé Limeira foram escritos por Otacílio. Hoje, destrinchar quem fez o quê é um pouco como pegar uma xícara de café com leite e separar os dois.
 
Otacílio era alto, corpulento, branco de olhos claros, sempre bem vestido, passo vagaroso, porte altivo. Sempre cortês e atencioso, mas avermelhava num segundo quando alguma coisa o irritava. Bem humorado na hora da anedota ou da piada ferina sobre algum incauto, tinha pavio curto quando se ofendia, erguia os ombros, ficava que era ver um touro. Mas não era homem de briga; se vingava no verso, porque Deus é grande.
 
Lourival Batista já foi objeto de alguns livros (de Ivo Mascena Veras, Alberto da Cunha Melo), e de filmes de curta-metragem, inclusive o Bom Dia, Poeta (2015) de Alexandre Alencar, onde colaborei no roteiro. Otacílio tem agora esta atenta e útil biografia. Fica faltando a de Dimas Batista, o homem que disse: “tudo passa na vida, tudo passa, mas nem tudo que passa a gente esquece”.