A relação entre a literatura e as artes visuais começou talvez com a pintura, avançou para a fotografia e por fim chegou ao cinema. (Este trajeto, é claro, pode ser ampliado indefinidamente: a TV, o computador, o celular, o videogame...) As artes visuais ensinam nosso olho a captar, interpretar e memorizar o mundo. E a literatura acaba refletindo ao seu modo o comportamento desse olho recém-educado, os seus modos de ver e de entender.
O ensaio de Alan Spiegel Fiction and the Camera Eye: Visual Consciousness in Film and the Modern Novel (1976) procura rastrear as técnicas de visualização da prosa literária moderna, mostrando as semelhanças e as diferenças entre o olho do cinema e o olho da literatura, bem como as contribuições peculiares a cada autor.
Spiegel cita a profissão de fé de Joseph Conrad em seu prefácio a O negro do Narcissus (1897): “O objetivo que pretendo alcançar é, pelo poder da palavra escrita, fazer você ouvir, fazer você sentir, e acima de tudo fazer você ver. É isto e mais nada, e isto é tudo”.
O objetivo de Conrad era de certa forma o mesmo de Flaubert, que a partir de Madame Bovary (1857) tornou-se o modelo para todos os escritores para quem a literatura é uma “forma concretizada”, um conjunto de personagens, ações e ambientes em que basta ao autor expor o que acontece. Ao visualizar cada cena, o leitor prescinde de explicações, porque a cena diz tudo, pela escolha cuidadosa do modo de apresentação. Com Flaubert, de certo modo, começou a tendência do “mostrar, ao invés de dizer”. Como diz Spiegel, “Flaubert permite que a ação narrativa exponha tudo que precisamos saber sobre os personagens; ele próprio se mantém em silêncio”.
(Gustave Flaubert)
A
literatura sempre teve o privilégio de saltar instantaneamente do mundo
exterior e visível para dentro da mente dos personagens, dizendo algo como: “Ao
ver aquele acidente, Fulano sentiu um misto de medo, repulsa e raiva, e lembrou
aquele dia, quando era criança, em que tal ou tal coisa lhe acontecera...”
O cinema, ao contrário, não pode nomear emoções, e só com certa precaução pode mostrar a visualização dos pensamentos do personagem. A literatura sempre teve uma amplitude de ação maior que o cinema; por que motivo abriria mão dela? Ora, quando um escritor resolve contar uma história abrindo mão dos comentários autorais e da liberdade de explicar ao leitor o que um personagem está pensando, ele perde um instrumento que foi utilíssimo à literatura durante séculos, mas por outro lado ele convoca o leitor a um envolvimento maior. É como se dissesse ao leitor, estalando os dedos: “Acorde! Não vou lhe dizer o que essas pessoas sentem. Abra os olhos, preste atenção. Está vendo? O que acha disto?”.
A literatura tradicional dava ao escritor a confortável ubiquidade e onipotência do contador de histórias, que sabe tudo da história que está contando e puxa o ouvinte/leitor para junto de si, prometendo revelar o máximo possível. O narrador moderno, ao contrário, dá um passo atrás, afasta-se da zona iluminada, e deixa o leitor sozinho diante daquela cena reconstruída em palavras, para que a interprete sozinho. O leitor era um ouvinte passivo; torna-se agora um colaborador.
Alan Spiegel analisa o estilo de visualização de autores pré-Flaubert. Balzac, por exemplo, “não vê uma cena com o olhar de um homem, mas com o olhar de um deus que se imagina ao mesmo tempo fisicamente presente numa cena e, ao mesmo tempo, fora dela e flutuando sobre ela”.
Já Charles Dickens “adere mais intimamente aos movimentos de um olho que está presente em cada cena, um olho totalmente coordenado aos movimentos dos objetos que descreve”.
De certa forma, esses autores pré-cinema criavam um cinema próprio com seus planos gerais, planos de detalhe, movimentos ao longo de um ambiente. A necessidade de “fazer ver” é sempre próxima da necessidade de narrar, e em autores do século XIX vemos inúmeros trechos que diríamos “cinematográficos” se eles não tivessem sido escritos décadas antes da Saída dos operários da Fábrica Lumière (1895), ou seja – muito do que chamamos “linguagem cinematográfica”precede a invenção do cinema, foi criado pela literatura.
Spiegel aponta duas linhas no desenvolvimento da ficção dos fins do século XIX e começo do XX.
Na primeira, a ênfase do romancista se afasta do objeto visto e se concentra no olho do observador, a ponto de virtualmente dissolver o objeto; ele analisa trechos de Émile Zola, D. H. Lawrence e Virginia Woolf para ilustrar essa tendência.
Na segunda, os autores mantêm um equilíbrio entre objeto e observador, produzindo uma narrativa mais próxima da experiência cinematográfica, e os exemplos neste caso são colhidos na obra de Henry James, Joseph Conrad e James Joyce.
(James Joyce)
Ele observa, com riqueza de exemplos, o quanto Joyce deixa claro ao longo de suas narrativas qual é a posição dos olhos do personagem e o que, exatamente, ele é capaz de avistar, dando a esse personagem uma função semelhante à da câmara. Essa condição assume um duplo papel que varia entre a identificação e o distanciamento, entre uma participação subjetiva do personagem, misturando-se mentalmente àquilo que está vendo, e um afastamento: “a característica frieza de visão de Joyce, uma espécie de separação espiritual que começa com um olhar passivo, não-afetado, e nunca permitirá ao observador uma relação completa com o que se encontra em seu campo visual. (...) Uma espécie de solidão ocular”.
O romance contemporâneo fez um grande esforço para criar através da prosa a frieza e a impessoalidade da câmara de cinema; um dos principais teóricos e praticantes desse estilo foi Alain Robbe-Grillet, que aliás acabou derivando para o cinema propriamente dito, como roteirista e diretor, sem abandonar a literatura. Seus romances, como os de vários autores do Nouveau Roman, são de uma visualidade exacerbada, que começa com a aparência de objetividade total. O autor nada diz do mundo interior dos personagens, apenas os mostra pelo lado de fora, como se fosse uma câmara. Mas essa aparente super-objetividade acaba servindo como um bloqueio, uma amarra à narração, porque o leitor não depende apenas de informações visuais para recompor uma narrativa em sua mente.
A literatura descritiva, cujo lado visual vai sendo hipertrofiado, busca “a inspeção microscópica dos momentos da existência”, uma fascinação quase alucinatória pelo detalhe visto com uma nitidez que chega a ser excessiva, e com uma predominância que empurra para segundo plano outros elementos da narração verbal.
(D. H. Lawrence)
D. H. Lawrence já ironizava esse tipo de literatura num texto de 1923:
O cinema, ao contrário, não pode nomear emoções, e só com certa precaução pode mostrar a visualização dos pensamentos do personagem. A literatura sempre teve uma amplitude de ação maior que o cinema; por que motivo abriria mão dela? Ora, quando um escritor resolve contar uma história abrindo mão dos comentários autorais e da liberdade de explicar ao leitor o que um personagem está pensando, ele perde um instrumento que foi utilíssimo à literatura durante séculos, mas por outro lado ele convoca o leitor a um envolvimento maior. É como se dissesse ao leitor, estalando os dedos: “Acorde! Não vou lhe dizer o que essas pessoas sentem. Abra os olhos, preste atenção. Está vendo? O que acha disto?”.
A literatura tradicional dava ao escritor a confortável ubiquidade e onipotência do contador de histórias, que sabe tudo da história que está contando e puxa o ouvinte/leitor para junto de si, prometendo revelar o máximo possível. O narrador moderno, ao contrário, dá um passo atrás, afasta-se da zona iluminada, e deixa o leitor sozinho diante daquela cena reconstruída em palavras, para que a interprete sozinho. O leitor era um ouvinte passivo; torna-se agora um colaborador.
Alan Spiegel analisa o estilo de visualização de autores pré-Flaubert. Balzac, por exemplo, “não vê uma cena com o olhar de um homem, mas com o olhar de um deus que se imagina ao mesmo tempo fisicamente presente numa cena e, ao mesmo tempo, fora dela e flutuando sobre ela”.
Já Charles Dickens “adere mais intimamente aos movimentos de um olho que está presente em cada cena, um olho totalmente coordenado aos movimentos dos objetos que descreve”.
De certa forma, esses autores pré-cinema criavam um cinema próprio com seus planos gerais, planos de detalhe, movimentos ao longo de um ambiente. A necessidade de “fazer ver” é sempre próxima da necessidade de narrar, e em autores do século XIX vemos inúmeros trechos que diríamos “cinematográficos” se eles não tivessem sido escritos décadas antes da Saída dos operários da Fábrica Lumière (1895), ou seja – muito do que chamamos “linguagem cinematográfica”precede a invenção do cinema, foi criado pela literatura.
Spiegel aponta duas linhas no desenvolvimento da ficção dos fins do século XIX e começo do XX.
Na primeira, a ênfase do romancista se afasta do objeto visto e se concentra no olho do observador, a ponto de virtualmente dissolver o objeto; ele analisa trechos de Émile Zola, D. H. Lawrence e Virginia Woolf para ilustrar essa tendência.
Na segunda, os autores mantêm um equilíbrio entre objeto e observador, produzindo uma narrativa mais próxima da experiência cinematográfica, e os exemplos neste caso são colhidos na obra de Henry James, Joseph Conrad e James Joyce.
(James Joyce)
Ele observa, com riqueza de exemplos, o quanto Joyce deixa claro ao longo de suas narrativas qual é a posição dos olhos do personagem e o que, exatamente, ele é capaz de avistar, dando a esse personagem uma função semelhante à da câmara. Essa condição assume um duplo papel que varia entre a identificação e o distanciamento, entre uma participação subjetiva do personagem, misturando-se mentalmente àquilo que está vendo, e um afastamento: “a característica frieza de visão de Joyce, uma espécie de separação espiritual que começa com um olhar passivo, não-afetado, e nunca permitirá ao observador uma relação completa com o que se encontra em seu campo visual. (...) Uma espécie de solidão ocular”.
O romance contemporâneo fez um grande esforço para criar através da prosa a frieza e a impessoalidade da câmara de cinema; um dos principais teóricos e praticantes desse estilo foi Alain Robbe-Grillet, que aliás acabou derivando para o cinema propriamente dito, como roteirista e diretor, sem abandonar a literatura. Seus romances, como os de vários autores do Nouveau Roman, são de uma visualidade exacerbada, que começa com a aparência de objetividade total. O autor nada diz do mundo interior dos personagens, apenas os mostra pelo lado de fora, como se fosse uma câmara. Mas essa aparente super-objetividade acaba servindo como um bloqueio, uma amarra à narração, porque o leitor não depende apenas de informações visuais para recompor uma narrativa em sua mente.
A literatura descritiva, cujo lado visual vai sendo hipertrofiado, busca “a inspeção microscópica dos momentos da existência”, uma fascinação quase alucinatória pelo detalhe visto com uma nitidez que chega a ser excessiva, e com uma predominância que empurra para segundo plano outros elementos da narração verbal.
(D. H. Lawrence)
D. H. Lawrence já ironizava esse tipo de literatura num texto de 1923:
“Oh, meu Deus, se eu gostasse de me observar bem de perto, se eu gostasse de analisar meus sentimentos nos menores detalhes, enquanto desabotoo minhas luvas, em vez de apenas dizer rudemente que as desabotoei, então eu poderia me alongar por um milhão de páginas em vez de apenas mil. Na verdade, quanto mais penso nisso, é muito rude, muito pouco civilizado dizer bruscamente: eu desabotoei minhas luvas. Afinal, que aventura absorvente é essa! Comecei por qual botão?...”
Lawrence vê nesse delírio de objetividade excessiva uma literatura narcisista, preocupada apenas com o Eu: “Eu sou isto, eu sou aquilo, eu sou outra coisa. Minha reações são esta, e essa, e aquela”.
Alan Spiegel fez esta avaliação em meados dos anos 1970, quando as vanguardas literárias, européias principalmente, levavam a extremos certas experiências dos modernistas do começo do século. Mas ele divide a ficção experimental daquela período em dois grupos: o de escritores “que tentam promover a credibilidade do seu conteúdo narrativo (personagens e ação), por mais fantásticos e inesperados que sejam”, esperando dos seus leitores a costumeira “suspensão voluntária da descrença”, e um segundo grupo que “procura destruir a credibilidade narrativa (dos personagens e da ação) e força o leitor, queira ou não, a um exercício da descrença”.
Essa adoção da câmara-olho, de um olhar “cinematográfico”, começou por enriquecer a literatura. Ela era dependente da voz narrativa onisciente e todo-poderosa do autor do século 18, dirigida explicitamente ao leitor, entrando com ele na mente consciente e até no inconsciente dos personagens, produzindo juízos de valor e comentários morais sobre as cenas que narrava, chegando a usar o romance como uma espécie de púlpito para pregações que eram só dele, autor, e de nenhum dos seres humanos virtuais cuja história estava sendo contada.
A literatura modernista, adotando a narração no estilo câmara-olho (além, é claro, de variados outros recursos), esvaziou esse papel centralizador e paternalista do autor, mas acabou por substituí-lo por um universo onde tudo é superfície visível, tudo é imagem exterior. O autor não apenas não interpreta, mas parece querer impedir que o leitor o faça. Essa literatura tende a entrar num parafuso metalinguístico de auto-reflexão e auto-desmascaramento: “ela nega personagens e ação ao nos forçar sistematicamente a analisar os meios que os produzem. Ela nos pede para nos privarmos da experiência do romance quando nos obriga a examinar os processos que produzem o romance”, diz Spiegel.
Curiosamente, alguns desses aspectos que a literatura tentou esvaziar acabaram se exilando no próprio cinema.
“Desde praticamente sua criação, e com incrível facilidade e rapidez, o filme tem assimilado todas as velhas formas narrativas e material dramático que já se supôs serem exclusivos do romance. O épico, a saga, o romantismo, a crônica, a história social, a biografia, a confissão, as velhas histórias de crime, paixão, aventura, sentimento e terror – tudo isto se tornou parte do repertório essencial do filme. Existe provavelmente uma apreciação de personagens e de ambiente mais rica e dedicada, maior desenvolvimento e amplitude, maior profundidade analítica e vastidão espacial – ou seja, aquilo que pertencia à antiga experiência literária – em filmes como Intolerância, Ouro e Maldição, A Grande Ilusão, Cidadão Kane, O Boulevard do Crime, Os Sete Samurais, A Trilogia de Apu, Uma Mulher para Dois, Fellini 8 ½, Dr. Fantástico e Os Emigrantes do que em qualquer obra literária recente de Robbe-Grillet, Michel Butor e J. M. G. Le Clézio”.
O impasse que Alan Spiegel analisa nesse livro se prolongou pelas décadas seguintes, com consequências talvez inesperadas. Escritores intelectualmente sofisticados do final do século, como Umberto Eco, Georges Perec, Thomas Pynchon, Don de Lillo, Osman Lins, etc. souberam evitar o impasse vanguardista produzindo obras que denotavam uma consciência semiótica e uma rica capacidade descritiva, sem com isto abrir mão do prazer literário de contar histórias tão capazes de envolver o leitor quanto qualquer romance de cem anos atrás.
Obras como O Nome da Rosa de Eco ou A Vida Modo de Usar de Perec têm um poder descritivo quase catalográfico, só que associado a um entusiasmo narrativo que recupera seu vínculo com a literatura narrativa tradicional, a que narra uma experiência humana complexa, multidimensional, capaz de ser reconhecida e assimilada pelo leitor.
(Uma versão ligeiramente diferente deste texto foi publicada na revista Língua Portuguesa (Editora Segmento, São Paulo), no número especial sobre cinema, novembro de 2011)