Existem dois tipos de questões existenciais. As que se referem ao Ser Humano, e as que se referem ao Universo.
O Ser Humano nos inspira o famoso grupo de perguntas:
“Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou? O que estou fazendo aqui?”. São as perguntas que os filósofos fazem a si
próprios, até porque se um soldado de polícia os abordar de noite na rua eles
precisarão ter essas respostas na ponta da língua.
As questões relativas ao Universo são na área conceitual
de: “O que é o Universo? Quem o criou? Como o criou? Para que o criou? O que acontecerá com o Universo no
futuro? Existem outros Universos além
deste?”. E por aí vai.
As religiões dão respostas variadas a estas
perguntas. As ciências também. E o mesmo
acontece com a literatura.
Com dez anos de idade eu me deparei com um conto de
Clifford D. Simak intitulado “As Respostas”. Está incluído na excelente
coletânea Maravilhas da Ficção Científica
(Ed. Cultrix, 1958, organização de Fernando Correia da Silva, seleção de
Wilma Pupo Nogueira Brito).
(Clifford D. Simak)
É a última história do livro, e vem depois de uma série
de contos peso-pesados que, lidos naquela idade, me deixaram de queixo caído e
com alguns nomes de autores gravados a fogo na minha memória: Alfred Bester, A.
E. Van Vogt, Fredric Brown, Ray Bradbury, Isaac Asimov...
O conto de Simak fala de uma expedição espacial numa nave
tripulada por quatro criaturas: o Cão, o Humano, a Aranha e o Globo. Cada um
deles representa uma raça diferente, e percorrem a Galáxia fazendo pesquisas.
Chegam a um planeta habitado por humanos, e o Humano decide ficar ali, ao
constatar que os habitantes levam uma vida pacata, modesta, de baixa
tecnologia.
Ele é recebido pelos locais, interage com eles,
aproxima-se aos poucos de uma família, um casal idoso (Jed e Mary) e sua filha
Alice. Quando se tornam mais amigos, o astronauta pergunta por que levam uma
vida tão simples e tranquila, sem máquinas, sem aparelhagens complicadas. E
Mary lhe responde: “Encontramos a Verdade”.
No dia seguinte, Jed o leva até um edifício empoeirado,
no centro de uma aldeia deserta. Ali, há uma máquina que responde perguntas. Na
verdade, a máquina responde duas perguntas, apenas. E o homem faz a primeira
pergunta.
Qual é a razão de ser do Universo?
E vem a resposta, através de uma fita impressa:
O Universo não tem razão de ser. O Universo apenas aconteceu.
Ele nem sequer tem tempo de formular a segunda pergunta, que
é um tanto óbvia. A resposta sai antes mesmo disto; uma outra fita impressa,
onde está escrito:
A vida não tem significado. A Vida é uma casualidade.
Por que motivo algumas coisas nos parecem plausíveis, na
infância, e outras não? Bem, há milhões de livros respondendo essa questão, de
modo que vou passar adiante.
Depois das aventuras espetaculares dos outros contos do
livro, o conto de Simak encerrava a antologia quase que num anti-clímax. Não
havia hiper-universos, divindades alienígenas, nenhum dos prodígios cósmicos
que naquela época eu lia na pulp fiction
de F. Richard-Bessière, Jimmy Guieu ou Stefan Wul.
Depois de tantas histórias em “Cinemascope Barroco”, era
até reconfortante escutar uma explicação tão simples, tão repousante, tão
óbvia.
Por isso não me angustiei nem um pouco quando, já aos 20
anos, li A Náusea de Jean-Paul Sartre, o livro
em que o impacto da pura existência é visto como a pior bad trip possível – a existência sem essência prévia, sem uma
Divindade que lhe dê forma e função, sem um Imperativo Cósmico que, uma vez
descoberto, me ensine o que vim fazer no Universo.
Não vim fazer nada. Eu simplesmente aconteci. O que vou
fazer agora, vai depender “de mim e de minha circunstância”. Posso – como o Antoine Roquentin
de A Náusea – largar meus planos de
fama intelectual ou de ascensão social e ir escutar uma negra cantando um blues numa vitrola de ficha, perto do
cais do porto.
Posso ir viver a vida como ela é. “A vida, apenas, sem
mistificação” (Drummond). “It’s
alright, Ma – it’s life, and life only” (Bob Dylan).
A maioria dos críticos considera o livro de Sartre como o
aterrorizante testemunho do absurdo da existência. Eu o considero um dos livros mais otimistas,
mais zen, mais serenos da literatura
universal. É a história de um homem que percebe, sem máquina interplanetária
alguma, que o Universo não tem razão de ser e que a Vida não tem significado.
Quer maior liberdade do que isto? Quer maior
responsabilidade do que isto?
O conto de Clifford D. Simak foi publicado pela primeira
vez na revista Future Science Fiction
(março de 1953) sob o título “...And the truth shall make you free” (algumas
republicações trazem o título usado na tradução brasileira, “The Answers”). É
uma citação do Evangelho Segundo S. João, cap. 8, versículo 32.
Clifford D. Simak (1904-1988) não era um existencialista da Rive
Gauche, experimentador de mescalina e flertador com o comunismo. Era um homem
conservador e pacato do Meio Oeste (passou a vida quase toda em Wisconsin),
autor de uma obra que vê a simplicidade da vida rural, junto à natureza e aos
animais, como uma espécie de ideal. Sua ficção científica tem um fundo
humanista, místico, quase ecológico “avant la lettre” em sua valorização e
respeito por todas as formas de vida, terrestres ou alienígenas.
A vida será o que fizermos dela. O universo será o que
fizermos dele.
Sorte a minha de estar a ler ficção científica desde tão
cedo (e de ter um pai que me comprou aquele livro, imaginando que me traria
algum proveito), para que aos vinte anos pudesse ler sem descrença ou assombro,
mas com uma sensação de estar-voltando-para-casa, estes versos de Fernando
“Alberto Caeiro” Pessoa:
XLVII
Num dia
excessivamente nítido,
dia em que
dava a vontade de ter trabalhado muito
para nele não
trabalhar nada,
entrevi, como
uma estrada por entre as árvores,
o que talvez
seja o Grande Segredo,
aquele Grande
Mistério de que os poetas falsos falam.
Vi que não há
Natureza,
que Natureza
não existe,
que há montes,
vales, planícies,
que há
árvores, flores, ervas,
que há rios e
pedras,
mas que não há
um todo a que isso pertença,
que um
conjunto real e verdadeiro
é uma doença
das nossas ideias.
A Natureza é
partes sem um todo.
Isto é talvez
o tal mistério de que falam.
Foi isto o que
sem pensar nem parar,
acertei que
devia ser a verdade
que todos
andam a achar e que não acham,
e que só eu,
porque a não fui achar, achei.
(Fernando Pessoa)