No Rio de Janeiro, quando se quer falar em grande
quantidade de algo se diz que tem coisa pra caramba, pra dedéu, a dar com um
pau...
Pronto, eis aí uma que eu acho muito boa. Haver alguma
coisa “a dar com um pau” é uma boa
maneira de exprimir visualmente a idéia de alguém rodeado de... de que? De
sapos, de coelhos, de grilos, de torcedores de um time adversário – uma
proliferação de criaturas incômodas, das quais o cidadão só pode se livrar
empunhando um pedaço de pau e distribuindo bordoadas a torto e a direito.
O linguajar nordestinense também é cheio de opções para se
referir a grandes quantidades de alguma coisa.
Quando queremos dizer que tinha muita gente dizemos com
frequência que tinha ali “um horror” de gente. A palavra horror exprime bem o sentimento de espanto e de uma
certa repulsa diante da situação descrita. “Tenho um horror de provas pra
corrigir.” “Depois que ganhei na
Mega-Sena tem um horror de pretensos amigos-de-infância me mandando mensagens
de “lembra de mim”?...” Um horror é uma
expressão que se usa nesse tom.
Pode-se dizer, por outro lado, que tem alguma coisa “dando no meio da perna”. Outra imagem
visualmente forte e evidente por si mesma. “Rapaz, fui na tal Festa de Cerveja,
e a cerveja dava no meio da perna.” Ou seja, um verdadeiro alagamento. Até
mesmo quando se refere a coisas não-líquidas, porque pode-se dizer também que “no
carnaval de Olinda estava dando mulher no meio da perna”.
Algumas dessas expressões são bem-humoradas, mas outras trazem consigo
(como o “horror” citado acima) uma conotação misteriosamente aflitiva. É o que
acontece quando se diz: “um castigo”. "Detesto ir num Banco no dia 1º do mês,
é aquele castigo de gente, cada fila enorme." "Pensei em ir na praia ontem, mas quando
vi o castigo de gente passando nos ônibus acabei desistindo." "Passei dois meses viajando, quando
cheguei em casa tinha um castigo de contas pra pagar."
Quando vejo essas frases tenho sempre uma vaga
curiosidade em saber como surgiram. Não propriamente quem as inventou – que
diferença faz, caso se descubra que quem primeiro usou “um castigo” foi um tal
de Espiridião Curió, em Palmeira dos Índios, em 1835? Diferença nenhuma. Mas eu gostaria de
entender o raciocínio que subjaz ao famoso “em
banda de lata”. "Rapaz, eu fui na festa de Fulana ontem, tinha gente
em banda de lata." "No dia em
que fizerem uma devassa no ECAD, vão prender gente em banda de lata."
Coletivos de pessoas são muitos, só esses encheriam um
pequeno glossário. “Magote” é um dos
meus preferidos, embora há anos não o use, para não gerar balloons interrogativos sobre a cabeça dos meus interlocutores
cariocas. Em todo caso, é geralmente usado em tom levemente depreciativo, mesmo
com bom humor, como se vê nesta citação do meu saudoso amigo Pedro Nunes Filho:
Certa vez, Martins Preto chegou à Fazenda Bonfim,
onde seu filho, Pedro Martins, era o vaqueiro de maior confiança, procurou o
proprietário, Antônio Nunes, e disse:
-- Seu Antônio, eu estou muito aperreado porque
Joaquim Aragão quer tomar minha terrinha e eu não sei o que vou fazer para
sustentar o magote de moleque que eu tenho.
(Pedro Nunes Filho, Guerreiro Togado)
“Ruma” cumpre
um papel bem semelhante, e palpita-me que esse substantivo tenha alguma relação
com o verbo “arrumar”, que talvez signifique, por certo ponto de vista,
“enfileirar as várias rumas de coisas”... algo assim. Poeta popular gosta muito
de usar esse termo:
Galinha põe todo dia
invez de ovos, é capão,
o trigo invez de semente
bota cachadas de pão,
manteiga lá, cai das nuvens
fazendo ruma no chão.
(Manoel Camilo dos Santos, Viagem a São Saruê)
Quando o chão está molhado
aparecem coisas boas:
se levantam cogumelos
que as capas parecem broas;
os sapos chocam de ruma,
bordam com cachos de espuma
os cenários das lagoas.
(Sebastião Dias, cit. em De Repente, Cantoria, de Geraldo Amâncio
e Vanderley Pereira)
Como toda linguagem oral, essas expressões nordestinenses
dependem muitas vezes de um complemento visual ou sonoro. Nisso os nordestinos
se aproximam dos italianos, que quando conversam parecem estar fazendo tradução
simultânea em Libras, o tempo inteiro. Nordestino também gesticula muito, como
por exemplo ao dizer “está assim de
gente”.
A expressão é complementada pelo gesto de unir as pontas dos dedos em círculo
e fazer pequenos movimentos de abre-e-fecha.
"Rapaz, eu fui no comício ontem à noite. Disseram que ia ser fraco,
mas a praça estava ‘assim’ de gente!"
O gesto, pela convergência das pontas dos dedos, indica quantidade e
aglomeração; mas no Rio existe um gesto semelhante que os motoristas fazem uns
aos outros, durante o dia, para alertar que o outro está com os faróis acesos,
por distração. Nesse caso, o gesto
significa os raios de luz, e o piscar do farol.
Durante muito tempo, toda vez que eu via esse gesto nas avenidas ou nas
estradas, pensava que queria dizer "trânsito congestionado no trecho onde
passei ".
Para se falar em multidões compactas, conheço poucos
termos mais adequados do que “duro de
gente”. “Fui assistir o show de
Elba no Parque do Povo, mas nem cheguei perto do palco, estava duro de gente, só
consegui ficar a uns cinquenta metros”. É a multidão cerrada, no aperto,
impenetrável.
Há um comparativo de quantidade que a gente diz muito
usando o termo “o mesmo tanto” ou “outro tanto”. Significa a mesma
quantidade, ou mesma proporção, que acaba de ser mencionada. “Fulano disse que vai pagar dois mil, e o pai
dele outro tanto, para ajudar na sua operação.”
Quanto mais eles andavam
menos saíam do canto
porque o chão dessa ponte
avançava o mesmo tanto,
e eles não prosseguiam
pela força desse encanto.
(Braulio Tavares, A Pedra do Meio Dia, ou Artur e Isadora)
E gosto muito de uma que já ouvi de meus amigos
cearenses, quando queriam se referir a uma quantidade respeitável de algo: “coisa que dá uma guerra”. “Rapaz, fui ver o tal Museu de Arte
Popular, tem coisa que dá uma guerra.”
“Meu pai me chamou para ajudar a limpar a garagem da casa dele, mas
desanimei quando vi... Tem coisa que dá uma guerra!”.
O que são essas expressões? Regionalismos? Gírias? Ecoletos?
Só sei que para meus ouvidos são expressões pertencentes à língua, mesmo
que não sejam conhecidas por todos os utentes da língua. E por este ponto de
vista, são tão legítimas quanto “em abundância”, “à cunha”, “à farta”, “à
beça”, “em penca”, “uma pá de coisa”...