Poesia se faz com palavras, ou com idéias? Para alguns, a idéia vem primeiro. O poeta tem uma noção mais ou menos clara do que quer dizer, e procura as palavras mais adequadas para reproduzir o que está pensando. Para outros, o poema pode até começar com uma idéia, mas ela produz um processo de palavra-puxa-palavra, e o sentido vai se formando meio de improviso, à medida que as palavras se ajustam umas às outras. Poetas usam esses dois sistemas desde que o mundo é mundo. Um teste que muitas vezes funciona é ver se o poema resultante é fácil ou difícil de traduzir. Os poemas criados a partir de idéias são, em geral, mais fáceis (ou menos difíceis!) de traduzir do que os que são feitos a partir das palavras.
Qualquer
idéia pode ser recriada através das palavras?
Alguns filósofos dizem que só pensamos de fato aquilo que conseguimos
exprimir, mesmo que seja inventando palavras que não existiam antes. E até mesmo a incapacidade de dizer pode ser
dita, a incapacidade de criar poesia pode ser recriada poeticamente.
Manuel
Bandeira, ao fazer uma dedicatória para uma leitora chamada Sacha, escreveu:
Sacha muchacha
nariz de bolacha!
(Meu estro não acha
outra rima em acha.
Por isso se agacha,
se cobre de graxa,
se arranha, se racha,
se desatarracha
e pede em voz baixa
desculpas a Sacha).
É um
poemazinho de circunstância (do livro Mafuá do Malungo), sem maior
pretensão literária, mas mostra de maneira claríssima a mais importante das
lições poéticas: mesmo quando achamos impossível dizer o que queremos, sempre
existe uma maneira de dizê-lo. O poeta
confessa (ou finge confessar) sua impossibilidade de achar rimas para o nome da
pessoa a quem dedica o poema, mas no momento mesmo de admitir essa derrota as
rimas parecem cair do céu, e o poema está feito.
Num
tom diferente, quase trágico, Augusto dos Anjos produziu um soneto em que
reflete sobre o processo de criação da poesia, “A Idéia” (1909):
De onde ela vem?! De que matéria bruta
vem essa luz que sobre as nebulosas
cai de incógnitas criptas misteriosas
como as estalactites duma gruta?!
Vem da psicogenética e alta luta
do feixe de moléculas nervosas,
que, em desintegrações maravilhosas,
delibera, e depois, quer e executa!
Vem do encéfalo absconso que a constringe,
chega em seguida às cordas do laringe,
tísica, tênue, mínima, raquítica ...
Quebra a força centrípeta que a amarra,
mas, de repente, e quase morta, esbarra
no mulambo da língua paralítica.
A
descrição é poeticamente correta: a idéia brota no cérebro, mas quando queremos
transformá-la em palavras ficamos mudos.
Em outro soneto (“O martírio do artista”) ele compara o poeta ao
paralítico (ou, em nossa linguagem de hoje, à pessoa que sofreu um AVC) e não
consegue falar: “É como o paralítico
que, à míngua / da própria voz e na que ardente o lavra / febre de em vão
falar, com os dedos brutos / para falar, puxa e repuxa a língua, / e não lhe
vem à boca uma palavra!"
Há um
elemento dolorosamente biográfico na concepção destes poemas. Sabe-se que o pai
de Augusto, o Dr. Alexandre, sofreu um derrame e ficou “paralítico e afásico”,
impossibilitado de se comunicar.
As
imagens de Augusto são poeticamente fortes, são impressionantes, mas para
sermos honestos temos que admitir que a culpa não é da língua. Não é ela que forma as palavras, é o cérebro,
o mesmo que forma as idéias. E que
compõe versos como estes, dizendo, de maneira brilhante, o quanto é difícil
dizer.
Voltando
mais atrás no tempo, temos um soneto de Olavo Bilac, “Inania Verba” (em Alma
inquieta, 1902), no qual o de Augusto parece ter se espelhado.
Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,
o que a boca não diz, o que a mão não escreve?
— Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,
olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava...
O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava;
a Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...
E a Palavra pesada abafa a Idéia leve,
que, perfume e clarão, refulgia e voava.
Quem o molde achará para a expressão de tudo?
Ai! quem há de dizer as ânsias infinitas
do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta?
E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?
E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?
É
um soneto sem a complexidade dos termos empregados por Augusto, com uma
linguagem de clareza cristalina, onde os contrastes de idéia se dão por semelhança
de forma (escrava / escreve) e por imagens visuais de apelo instantâneo
(turbilhão de lava / sepulcro de neve).
Aqui, o poeta se queixa de outras coisas, que talvez não tenha
conseguido exprimir, e que sugere nos dois tercetos finais. Mas ao queixar-se o faz mostrando domínio
completo da forma, do vocabulário, do ritmo (a repetição de “mudo”). O seu final, ao falar naquilo que “morre
na garganta” pode até ter sugerido a Augusto a imagem das “cordas da
laringe”.
Cada
poeta tem seu espírito, seu temperamento, e isto fica visível quando eles
escolhem suas idéias, e, quando escolhem a mesma idéia, nas suas escolhas de
palavras. Cada um de nós tem sua maneira
própria de dizer as coisas, e também de dizer que não consegue dizê-las. Há momentos em que a poesia é apenas um
sentimento que nos toma de assalto, nos invade, nos deixa cheios de emoções – e
vazios de palavras. Talvez a gente não
consiga dizer o que sente; mas precisa dizer que não o conseguiu. Carlos Drummond de Andrade, distante da
linguagem expressionista e científica de Augusto dos Anjos, e do formalismo
rígido e impecável de Bilac, encontra na simplicidade da dicção modernista
recursos para falar dos seus próprios momentos “sem palavras”, quando diz em
“Poesia” (Alguma poesia, 1930) :
Gastei uma hora pensando num verso
que a pena não quis escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.
Grande poeta não é o que sente
grandes emoções. Qualquer pessoa é capaz
de emoções intensas. O grande poeta é
aquele que fotografa essas emoções, ou, mesmo quando não as fotografa a tempo,
consegue captar sua sombra, sua pegada ou qualquer sinal de sua presença. Como ele diz, no final do seu “Canto
esponjoso”:
Vontade de cantar. Mas tão absoluta
que me calo, repleto.
(Uma
versão deste artigo foi publicado no número de outubro de 2008 da revista
“Língua Portuguesa”, da Ed. Segmento (São Paulo)