Já escrevi aqui neste Mundo Fantasmo alguns artigos
tentando explicar minha concepção do que é rock. Não me refiro apenas ao
rock-and-roll ingênuo e cinquentão (=dos anos 50) de Bill Haley e Seus Cometas,
mas a tudo que aconteceu depois dele, e de Elvis Presley, Beatles, Rolling
Stones, Bob Dylan, The Who, Led Zeppelin, Sex Pistols, The Clash... Et coetera.
O rock, para mim, é primeiro que tudo uma junção de um
elemento branco (a tecnologia eletro-eletrônica) com um elemento negro (a
pulsação rítmica). Depois, vêm muito mais coisas; mas eu acho que a base é isso
aí.
Ou, como já escrevi algures:
O rock norte-americano é a eletrificação das formas de música rural
brotadas nos próprios EUA: primeiro, o blues dos negros do Mississipi; depois,
as canções “country” dos vaqueiros do Oeste, a música “bluegrass” de raiz (com
seus vertiginosos solos de banjo e de rabeca), a tradição de música “gospel”
das igrejas batistas da população negra urbana.
Do ponto de vista técnico, as palavras-chave são eletrificação e reprodução-ampliada, porque uma coisa é você tocar um ritmo bem
sacudido de forma acústica, alcançando uma platéia de algumas centenas de
pessoas, e outra coisa é você tocar o mesmo ritmo sacudido de forma
eletrificada, alcançando centenas de milhares – em Woodstock, na Praia de
Copacabana, num desses mega-festivais que rolam por aí.
Aqui no Brasil, um dos grandes saltos musicais que minha
geração presenciou foi o crescimento de uma música eletrificada, feita no
Nordeste, tendo por base os ritmos populares como o maracatu, o baião, o cavalo
marinho, o coco e por aí vai. É o nosso rock. É a nossa eletrificação do
ancestral.
Chamamos de “rock brasileiro” a música feita pelas jovens
bandas brasileiras como resposta ao rock estrangeiro: dos Mutantes aos
Paralamas do Sucesso, de Renato e Seus Blue Caps à Blitz, da Bolha à Legião
Urbana, todos pegaram o som estrangeiro e fizeram com ele o que cabia no seu
balanço. Esse Rock-BR (no qual incluo a chamada Jovem Guarda) é uma resposta nossa à síntese norte-americana, injetando
nela elementos próprios.
Poderíamos também chamar de “rock brasileiro”, com certa
propriedade, essa eletrificação dos ritmos populares. É a nossa síntese. Não somente
o maracatu e o coco, mas o samba também. Só que se alguém vai falar de rock
brasileiro não vai pensar em samba-rock, não vai pensar em Jorge Ben em
primeiro lugar.
Anos atrás, em 2003, fui procurado pela produção do
Maracatu Várzea do Capibaribe, do Recife, pedindo uma música para o disco novo.
Mandei esta canção, que foi gravada pelo cantor Abissal, acompanhado pelo Maracatu
e pela rabeca de outro parceiro, Siba. O CD é Abissal e os Caboclos Envenenados, e dele participam outros talentos
como Elias Paulino, Silvério Pessoa, Mestre Barachinha, etc.
O maracatu eletrificado é uma das maneiras que
encontramos para inventar nosso próprio rock. Quando Chico Science e a Nação
Zumbi começaram a tocar no Brasil inteiro, Ariano Suassuna era Secretário de
Cultura, e isso gerou uma infinidade de discussões sobre as afinidades e as
desafinidades entre o Movimento Armorial e o Mangue Beat. Ariano, que admirava a
pessoa e o talento de Chico, dizia: “Ele mistura o rock com o maracatu, e acha
que com isso está valorizando o maracatu, mas está valorizando é o rock, que é
muito inferior”.
Não há muito o que discutir, pois acho normal alguém não
gostar de rock, ou não gostar de maracatu, e quem diz isso sou eu, que gosto
dos dois.
O maracatu não tem raízes em Campina Grande. Meu DNA de
infância traz a sanfona do forró, a viola dos repentistas, os ganzás dos emboladores;
traz o bolero de Nelson Gonçalves e Altemar Dutra; traz o samba carioca de Miltinho
e Roberto Silva e o samba paulista de Adoniran Barbosa e dos Demônios da Garoa,
e traz até o rock – porque a minha infância foi carimbada pelo que tocava em
rádio, naqueles tempos pré-música-na-televisão.
O maracatu me chegou mais tarde, uma referência distante que
vinha se aproximando como um exército de tambores em marcha. Através dos meus
parceiros recifenses, como Zeh Rocha, Lenine, Lula Queiroga e outros, aprendi a
duras penas a reproduzir a quebrada do bombo – e acabei compondo alguns
maracatus, dos quais este aqui foi gravado, e vale como amostra.
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https://www.youtube.com/watch?v=OxByri35iBQ&ab_channel=ThiagoQueiroz
CHEGADA (Letra e
música: BT)
Gravação: Abissal
& Várzea do Capibaribe
São tambores de
chamada
motores da força e
luz
jogando eletricidade
nos terreiros.
Guitarras de
feiticeiros
vibrando embaixo do
som
da avenida que
surgiu de madrugada.
São cabeças
coroadas
de fumaça de vulcão
e uns olhos de lua
cheia na lagoa.
É um milhão de
pessoas
no mesmo raio de
sol
e o baque dos pés
no chão da noite inteira.
Chegou na tela do
mundo
chegou na letra da
mão
chegou no colo da
fera
chegou no X da
paixão;
chegou no brilho da
faca
chegou no lixo da
feira
chegou no arranco
do grito
chegou no chão da
ladeira;
chegou um rosto e
um nome
nascendo dentro de
mim
e continuando assim
a vida inteira.
(Maracatu Real
Várzea do Capibaribe)