E, aquilo, ele chorava, sem parar, e de um sentir que fazia pena... Não adiantava a gente querer engambelar nem entreter... Eu pelejei, pelejei, todo-o-mundo inventava coisa para poder agradar o desgraçadinho, mas nada d’ele parar de chorar... (...) ...O pretinho vinha comigo na garupa, dando soluços grandes, e molhando minhas costas de tanta lágrima... Então eu falei: — “Olha os bois também com saudade dos pastos lá da fazenda”... — Para que foi que eu fui dizer isso! Ele abriu ainda mais no bué, e começou a gemer: — “Ai, seu mocinho bom! Ai, seu mocinho bom! Me deixa eu ir-s’embora para trás! Me deixa eu ir-s’embora para trás!”...Quando ele viu que não adiantava nada pedir, garrou só a exclamar: — “Ai, seu mocinho ruim! Ai, seu mocinho ruim!... Eu só queria poder sentar agora, um tiquinho, naquela canastra de couro, que tem lá no rancho de minha mãe... Queria só ver, de longe, a minha mãezinha, que deve de estar batendo feijão, lá no fundo do quintal!”...
Os vaqueiros ficam naquela sinuca, porque todo mundo está comovido com o choro do garoto mas não fazia sentido voltarem atrás com boiada e tudo. E lá vão eles. Montam acampámento para passar aquela primeira noite.
E foi aí, bem na hora em que o sol estava sumindo lá pelos campos e matos, que o pretinho começou a cantar... ...Ah, se vocês ouvissem! Que cantiga mais triste, e que voz mais triste de bonita!... Não sei de onde aquele menino foi tirar tanta tristeza, para repartir com a gente... Inda era pior do que o choro de em-antes...
A voz do menino chega a lembrar (ou será que estarei me sugestionando?) a voz de um Milton Nascimento infantil mas já capaz das nuances futuras de um Milton Nascimento – que já era nascido quando Rosa publicou seu livro:
Era assim uma cantiga sorumbática, desfeliz que nem saudade em coração de gente ruim... Mas, linda, linda como uma alegria chorando, uma alegria judiada, que ficou triste de repente:
...“Ninguém de mimninguém de mimtem compaixão...”
Mas o mais grave de tudo é que quando acaba a reza – quando ele finalmente acaba a sua reza – ele ergue a voz e começa a cantar. Bem, o senhor sabe que a voz dele, quando fala, é doce como o mel; sabe como seria capaz de persuadir aquele cão de ferro do portão a descer os degraus e vir lamber-lhe a mão. Creia na minha palavra, isso não é nada diante da cantiga! Ah, ele se limita a entoar aqueles versos , numa voz tão doce e tão suave, ali no escuro, que faz a gente pensar que está no céu. (...) E ele canta: “Assim como eu sou – um coitado, um cego, um desvalido...” (...) E ele faz um homem se sentir o bruto mais ingrato e mais canalha que já existiu. E quando ele canta sobre a casa em que viveu, e sua mãe, e sua infância, e as lembranças de antigamente, e os amigos que morreram e se foram para sempre, isso traz para a mente daqueles homens tudo que eles amaram e perderam em sua vida...
(trad. BT)
Jo seguiu Ron por um corredor, passaram por uma escotilha, desceram uma pequena escada.– Os Lll estão aqui – disse Ron, diante de uma porta circular. Ainda estava segurando o braço do violão. Empurrou a porta, e alguma coisa agarrou o estômago de Comet Jo e o virou pelo avesso. Lágrimas cresceram nos olhos dele, e sua boca se abriu. Respirou com dificuldade.– É uma porrada, hein? – disse Ron em voz baixa. – Vamos entrar.Jo estava amedrontado, e quando penetrou naquela penumbra sentia-se afundar dez metros a cada passo. Piscou os olhos para clarear a vista, mas as lágrimas voltaram.– Esses são os Lll – disse Ron.Jo viu lágrimas no rosto queimado de sol de Ron. Olhou para diante.Eles estavam acorrentados ao piso pelos pulsos e tornozelos; Jo contou sete deles. Seus enormes olhos verdes piscavam na luz azulada do compartimento de carga. Seus torsos eram encurvados, as cabeças hirsutas. Seus corpos pareciam imensamente fortes.– O que é que eu estou... – Jo tentou dizer, mas tinha alguma coisa presa na garganta. – O que é que eu estou sentindo? – sussurrou ele, pois era o mais alto que conseguia falar.– Tristeza – disse Ron.E assim que recebeu um nome aquela emoção se tornou reconhecível – uma tristeza vasta, avassaladora, que sugava todos os movimentos de seus músculos, toda a alegria dos seus olhos.– Eles me deixam... triste? – perguntou Jo. – Por que?– São escravos – disse Ron. – Eles constroem; constroem de uma maneira muito bela, maravilhosa. São extremamente valiosos. Construíram metade do Império. E o Império os protege desta maneira.– Protege? – perguntou Jo.– Ninguém pode se aproximar deles sem se sentir assim.– Nesse caso, quem iria comprá-los?– Não muitas pessoas. Mas existem em número bastante para que eles sejam escravos incrivelmente valiosos.– Por que não soltam eles?! – perguntou Jo, e a frase soou no final quase como um grito.– Economia – disse Ron.– Como é que alguém pode pensar em economia sentindo-se deste jeito?– Não é muita gente que consegue – disse Ron. – Essa é a proteção dos Lll.Jo esfregou os olhos.– Vamos sair daqui.– Vamos ficar mais um pouco – retrucou Ron. – Vamos tocar para eles agora. – Ele sentou num caixote, empunhou o violão e fez um arpejo num acorde modal. – Toque. Eu lhe acompanho.(Empire Star, trad. BT)
À maneira típica de Delany, vários conceitos estão expostos de forma entrelaçada nesse trecho: o esboço rápido das relações econômicas do Império interplanetário, a dominação de uma raça por outra, o conceito aparentemente contraditório de que um escravo é protegido pela tristeza que desperta nos outros (o que os trancafia na esfera do “não quero pensar nisso”); e o uso da música como fator de equilíbrio ou tentativa de comunicação. Sem falar no nome da raça escravizada – os “Lll”, um nome impronunciável, um conceito que (do ponto de vista do leitor, que neste momento é o mais “alienígena” de todos) pode ser lido mas não pode ser compartilhado em voz alta.