Um tema recorrente na ficção científica é o tema da fuga
para outros planetas, antes ou durante um cataclismo qualquer. Como a Terra
está em vias de destruição, preparam-se algumas “arcas de Noé” que decolarão
rumo a um planeta habitável, onde a humanidade terá um novo recomeço.
Um clássico do cinema nessa veia é O Fim do Mundo (“When Worlds Collide”, Rudolph Maté, 1951). A
questão principal é: quem vai nessa Arca?
Quem serão os felizardos? No filme, o milionário que financia a
construção da espaçonave exige o direito, bastante compreensível, de escolher
os convidados. Briga-se muito, e a escolha acaba sendo feita por um sorteio de
loteria, que dá origem a vários desdobramentos melodramáticos.
No recente e premiado conto de N. K. Jemisin, Emergency Skin (2019; no Brasil, na
antologia Forward, Ed. Intrínseca, 2021),
a Terra está em pleno colapso e os bilionários constroem uma frota de
espaçonaves para a fuga. Depois que eles vão embora, os que ficaram para trás
conseguem reverter a situação, uma vez que os causadores da situação migraram
em massa.
Numa catástrofe, salvam-se os que podem.
Se um cientista inventar um dia uma máquina de
imortalidade, ou de imortalização, quem serão os primeiros beneficiados?
Provavelmente as pessoas a quem ele tem acesso, as pessoas que são importantes
para ele.
É mais ou menos o que acontece com o Morel imaginado por
Adolfo Bioy Casares no seu clássico La
Invención de Morel (1940). No Brasil, o livro saiu pela Expressão e Cultura
como A Máquina Fantástica (1974,
trad. Vera Neves Pedroso), republicada em 1986 pela Rocco como A Invenção de Morel.
Fiz mais acima uma distinção entre imortalidade e
imortalização, e esta é essencial na concepção da história. Morel (não farei
aqui um resumo do enredo do romance) inventou uma espécie de cinema em 3D ou
4D, que registra e conserva, de forma perfeita, a presença e as ações de
pessoas num ambiente. Uma espécie de cinema total, onde as imagens são
tridimensionais, e têm uma materialidade concreta que falta, por exemplo, aos
hologramas.
E durante uma semana ele traz seus amigos para a ilha
onde tem uma mansão (com jardim, piscina, etc.) e todos se divertem, bebem,
riem, cantam, dançam, praticam esportes, namoram, desfrutam daquele lazer um
pouco tenso e um pouco ruidoso dos ricos que, não precisando ganhar a vida,
precisam, o tempo inteiro, inventar pretextos para preencher seus dias imensos,
longuíssimos, dias e noites que não acabam mais.
O que Morel descobre não é a imortalidade, que seria o
prolongamento indefinido da vida daquelas pessoas. As pessoas morrerão, sim.
(Como dizia Millôr Fernandes, “injustiça social mesmo era se uns morressem, e outros não”.)
O livro de Bioy Casares mostra a criação de uma máquina
capaz de captar e reproduzir trechos da realidade, de forma tridimensional (ou
quadri-dimensional, pois se dá ao longo do tempo), e material. É
cientificamente improvável? Talvez – tanto quanto máquinas do tempo ou
espaçonaves mais velozes do que a luz.
Como disse Jorge Luís Borges, no famoso prefácio que
escreveu para este livro:
“Adolfo Bioy Casares, nestas páginas, resolve com felicidade um problema talvez mais difícil. Desdobra uma odisséia de prodígios que não parecem admitir outra chave senão a alucinação ou o símbolo; e a decifra satisfatoriamente mediante um único postulado fantástico, mas não sobrenatural.”