(João Cabral, em Recife/Sevilha, de Bebeto Abrantes)
No último dia 9 de fevereiro, aniversário de João Cabral
de Melo Neto, participei de um evento numa sala do Estação NET Botafogo (Rio de
Janeiro), em homenagem ao poeta. Houve recital e canto a palo seco de Numa Ciro, a exibição de documentários de Bebeto
Abrantes (principalmente o longa Recife/Sevilha,
que está completando vinte anos), e depois um bate-papo em que eu e o crítico
Carlos Alberto Mattos comentamos o depoimento de Inez Cabral, filha do autor de
O Cão Sem Plumas.
Falamos de vida, de cinema, de poesia, e depois saímos
para tomar um chope comemorativo (foi minha primeira saída de casa “a trabalho”
desde junho do ano passado).
Alguns assuntos ficaram pendentes na minha memória e
quero comentar aqui, porque é sempre bom falar dos poetas que a gente gosta.
(Carlos Alberto
Mattos, Inez Cabral e BT / foto: Emilia Veras)
João Cerebral
Essa era uma piada dos tempos de meus 25 anos em Campina
Grande, quando eu só andava com A
Educação pela Pedra embaixo do braço, e meus amigos nerudistas e vinicianos
diziam: “Você só gosta de João Cerebral
de Melo Neto, o Poeta Que Não Gosta de Emoção”.
Tudo era na base da brincadeira (eles também liam, e
também gostavam), mas isso nunca me saiu da cabeça. Sim, da cabeça. Tudo que nos
produz emoções acontece em nosso cérebro. É com o cérebro que a gente se
emociona, é com o cérebro que a gente se apaixona por uma mulher, por um time
de futebol ou por um país, é com o cérebro que a gente aprecia uma obra de arte
ou um pôr-do-sol.
O cérebro é a sede da beleza e da verdade, é a sede do
bem e do mal, é a sede do amor e do ódio, e é a sede de todas as nossas
emoções.
“E o coração?!” bradam os adoradores desta víscera (o
termo é de Cabral). Bem, o coração é o músculo propulsor da nossa corrente
sanguínea, e é um personagem importantíssimo. Tão importante que quando ele
pára a gente morre. E ele é o melhor sismógrafo das emoções que acontecem no
cérebro, porque quando estamos emocionados o nosso “sistema nervoso simpático”
injeta um menu variado no organismo (adrenalina, etc.), e a pulsação acelerada
do coração acusa a presença dessas alterações químicas.
O coração não se emociona. Ele é apenas um despertador
que toca quando nosso cérebro sente uma emoção mais forte.
O resfolêgo da
sanfona
Farei agora uma comparação pouco cabralina, mas que pode
ser útil.
Às vezes estamos inundados de emoção. Estamos vibrando de
entusiasmo ou de deslumbramento, estamos maravilhados com uma descoberta
filosófica, com uma reflexão espantosa sobre o mundo e a vida. Estamos alegres,
estamos tristes; e às vezes estamos poetas.
Quem não escreve, deixa-se impregnar dessa emoção, sem
obrigação alguma de passá-la adiante. (Poetas também têm esse direito;
lembremos o poeminha de Drummond:
Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.
(em Alguma Poesia, 1930)
Todos nós ficamos meio inundados de poesia quando estamos
inundados de emoção. Quem escreve, contudo, dispõe de técnica. A emoção é um
bicho brabo, e a técnica é seu domador.
E venho eu com a minha comparação com a sanfona. A
sanfona é um fole que, ao ser aberto e fechado, aspira e expira uma grande
quantidade de ar. O fole produz um fuuuuu...
silencioso quando o ar comprimido escapa por aquela abertura que toda sanfona
tem, perto das teclas, quando a gente precisa abri-la ou fechá-la sem produzir
som.
Esse ar não é música. Ele só se torna música coisas
quando é filtrado através das palhetas metálicas comandadas pelos teclados.
Existe uma técnica para manejar esse teclados e tocar desde Asa Branca até o Bolero de Ravel. É só quando passa através das palhetas,
controladas pelo teclado, que o ar vira arte, vira música. Do mesmo modo, a emoção
do poeta precisa ser filtrada, controlada, vibrada pelo uso das palavras e das
frases, para se tornar poesia.
As palavras e as estruturas verbais são as palhetas
metálicas e o teclado do poeta. Só é poesia a emoção que passa através desse
processo.
(estátua de João Cabral, à margem do Capibaribe)
A máquina de
emocionar
O filme de Bebeto Abrantes leva João Cabral a comentar a
expressão do arquiteto Le Corbusier que ele usou como epígrafe em um de seus
livros: “machine à emouvoir”, máquina de
emocionar. O poema é uma máquina de comover, de produzir emoções.
Esse conceito pode ser rastreado até 1846, quando Edgar
Allan Poe publicou seu famoso ensaio “A Filosofia da Composição”, onde
explicava o processo de criação do poema “O Corvo”. Um planejamento geral da
extensão do poema, número de estrofes, número de linhas, alternância de linhas
longas e curtas, posição das rimas, presença de um estribilho final que depois
de muitas idas e vindas fixou-se na palavra “nevermore”.
Tudo foi estabelecido de antemão; e depois o poeta sentou-se e escreveu o
poema.
Esse processo de extrema racionalidade não impediu que o
poema, com seu melodrama romântico e sua atmosfera gótica, se transformasse num
clássico. Só em português há mais de 50 traduções. E quanto Cabral intitulou um
livro de 1946-47 “Psicologia da Composição”, demonstrava conhecimento deste
método, e identificação com ele. Cabral não quer a forma poética que seja
“encontrada / como uma concha” na praia. Não quer a forma como fruto de um
lance do acaso, um “tiro nas lebres de vidro / do invisível”. Quer a forma
“atingida / como a ponta do novelo / que a atenção, lenta, / desenrola”.
Poe foi traduzido ao francês (e melhorado, segundo
alguns) por Charles Baudelaire, dando início a mais um dos numerosos processos
em que um artista norte-americano tido como menor na América é revelado como
gênio em Paris. Sua obra traduzida influenciou inúmeros franceses posteriores,
de poetas como Stéphane Mallarmé até músicos como Claude Debussy.
Paul Valéry afirmou, numa conferência de 1924, “Situação
de Baudelaire”:
Até Edgar Poe, o problema da literatura nunca havia sido examinado em
suas premissas, reduzido a um problema de psicologia, abordado através de uma
análise em que a lógica e a mecânica dos efeitos fossem deliberadamente
empregadas. (...) Essa análise – e esta circunstância garante-nos seu valor –
aplica-se e verifica-se nitidamente também em todos os campos da produção
literária. As mesmas reflexões, as mesmas distinções, as mesmas observações
quantitativas, as mesmas idéias diretrizes adaptam-se igualmente às obras
destinadas a agir forte e brutalmente sobre a sensibilidade, a conquistar o
público amante de emoções fortes ou de aventuras estranhas, da mesma forma como
regem os gêneros mais refinados e a organização delicada das criações do poeta.
(Em "Travessias", Ed. Iluminuras, trad. Maiza Martins de Siqueira)
Este era o método de Poe, que via Baudelaire influenciou
duas gerações de poetas franceses, talvez mais até do que aos poetas
norte-americanos. E é um dos principais lampejos do que seria a arte industrial
do século 20: não a revelação das emoções íntimas do artista, mas a tentativa
consciente e planejada de produzir emoções no público. Edgar Allan Poe
influenciou desde Alfred Hitchcock a João Cabral de Melo Neto.
(João Cabral e Joan Miró)
A mente
geometrizante
Cabral é talvez o poeta brasileiro mais influenciado pela
pintura e pela arquitetura. (Murilo Mendes, amigo seu, era dessa mesma tribo.) Sua
poesia é uma poesia de visualidade intensa, não apenas nas imagens literárias
sugeridas pelas suas palavras, mas na sua fanática dedicação à forma do poema
na página impressa. Os quadradinhos das estrofes, as faixas verticais dos
romances, a alternância dos parágrafos indentados sucedendo-se quase como se o
poeta tivesse primeiro rabiscado a lápis o layout do poema para depois
preenchê-lo com versos.
Propuseram ao cientista Carl Sagan, quando estudante, um
teste que consistia em imaginar um aposento e o que existiria dentro dele.
Sagan começou dizendo: “Bem, é um aposento grande, medindo 15 x 20 x 30
metros...” Nenhum dos outros estudantes
tinha se dado o trabalho de visualizar o espaço; apenas fizeram listas do que
deveria haver lá dentro.
Cabral diz que o engenheiro “sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água”. O mundo é um espaço para ser preenchido
com formas geométricas, e dentro dessas formas surgem os indícios da vida
humana.
Um teste conhecido das oficinas de roteiro ou de escrita
criativa, quando se trata de imaginar personagens, pede que o roteirista
imagine o que o personagem masculino traz nos bolsos (chaves? remédio? moedas?
pente? revólver?), e o que a personagem feminina traz na bolsa (batom? espelho?
carregador de celular? caneta?). Esses objetos são o repertório de referências
culturais que definem o personagem.
O espaço poético de João Cabral é uma rosácea de formas
geométricas claras, e dentro delas é possível encontrar frutas, pedras,
caranguejos, galos, cemitérios, balas, toureiros, cachorros, barcos,
bailarinas, canaviais...