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Eu nunca vi Pelé pessoalmente, nem mesmo no gramado. Me
arrependo de não ter dado uma fugida da farra, do trabalho ou do passeio para
ir ao estádio numa das vezes em que ele jogou pelo Nordeste, ou visitou o Maior
São João do Mundo. Nunca vi Pelé. Vi (no estádio) alguns de seus companheiros
de geração jogarem: Garrincha, Djalma Santos, Rivelino... Pelé, nunca.
Muitos anos atrás li um artigo, de algum cineasta talvez,
explicando que na nossa memória formam-se dois aposentos contíguos de
lembranças: a) o das experiências vividas diretamente, em primeira mão, em
carne e osso, presencialmente; e b) o das experiências a que temos acesso de
forma indireta, por imagens, fotos, filmes, gravações, textos, relatos de
outras pessoas...
É interessante tentar avaliar qual desses aposentos é
maior, qual deles está mais entulhado de referências. A verdade é que nossa
“memória de carne e osso” funciona a todo vapor, 24 horas por dia, registrando
coisas, mas apenas nos ambientes aonde nosso corpo nos conduz. E a “memória de
imagem, ou de palavras” nos dá acesso ao planeta inteiro, ao mundo virtual ou
ficcional inteiro, aos milênios de História, às galáxias. É uma memória
construída, ficcionalizada, maior (talvez) do que a outra.
Philip K. Dick, nas suas impagáveis divagações, dizia que
muitas partes do mundo na verdade não existem – são construídas às pressas
quando vamos fisicamente para lá. Como no Show
de Truman, ou como num videogame, em que a paisagem se recompõe (ou se
cria) magicamente no horizonte, enquanto avançamos.
Eu e Pelé jamais existimos no mesmo universo físico,
jamais estivemos no mesmo lugar ao mesmo tempo.
2
Falei acima que Pelé já jogou na Paraíba. Meus amigos de
outros Estados talvez não saibam que um dos orgulhos ficcionais dos paraibanos
é o fato de que Pelé marcou seu gol número 1.000 em João Pessoa, num amistoso
noturno com o Botafogo-PB, cobrando um pênalti. O famoso gol marcado no
Maracanã, contra o Vasco, é a “versão chapa-branca” do fato, a lenda que se
publica quando a realidade é menos cativante. Para a imprensa brasileira, era
muito mais cativante que esse gol fosse feito no Maior Estádio do Mundo, diante
do Vasco (time de coração do Rei), num goleiro argentino que fez o possível
para alcançar aquela bola.... A lenda, sem dúvida, dá mais Ibope.
No jogo com o Botafogo, a imprensa afirmava que Pelé
tinha naquele momento 998 gols. Toda vez que Pelé dava um passe em profundidade
para um atacante do Santos os jogadores do “Belo” se afastavam da bola, na
esperança de que ela fosse direto para o gol. Nunca ia. Cometeram um pênalti,
em desespero de causa. Longas confabulações. Pelé bateu, fez o gol, e foi
substituído. Era (de acordo com a imprensa) o gol 999. No domingo seguinte,
jogou contra o Bahia na Fonte Nova, e um zagueiro do tricolor salvou uma bola
em cima da linha. No meio da outra semana, veio o gol no Maracanã.
Refizeram as contas depois, havia um gol antigo que não
tinha sido computado... Mas quem vai reescrever a História só para dar uma
glória dúbia ao Botafogo de João Pessoa? Eu, pelo menos, acho desnecessário.
3
Um episódio sem nada a ver com futebol é o encontro
improvável entre Pelé e John Lennon. Os dois estavam morando em Nova York nessa
época – Pelé recém-contratado pelo Cosmos, e Lennon em sua politizadíssima fase pós-Some Time in New York City. Encontraram-se
casualmente nos corredores de uma escola de idiomas. Pelé estava aprendendo
inglês. Lennon estava fazendo aulas de japonês, algo que certamente teve vontade
desde que começou a viver com Yoko Ono.
Consta que os dois se cumprimentaram cordialmente, aquele
papo de “sou muito fã seu”, normal entre gente que vive sob os holofotes da
fama (e gente que percebe, no outro, a genialidade que os fãs do outro às vezes
nem entendem direito). E Lennon confidenciou que, quando a Copa do Mundo de
1966 foi realizada na Inglaterra, os Beatles, então se preparando para lançar Revolver, tiveram a idéia de fazer uma
visita à Seleção Brasileira, então bicampeã mundial – mas a burocracia da CBD os
desaconselhou.
E eu fico imaginando um universo paralelo onde exista uma
daquelas fotos com dois grupos misturados, intercalados: os Beatles e a seleção
com Pelé, Garrincha, Gilmar, Bellini, Gérson...
Uma pequena digressão: é interessante que nenhum dos
quatro Beatles, todos eles liverpudlianos, tenha sido um torcedor fervoroso de
futebol. O único futebolista na capa do Sgt.
Pepper’s é Albert Stubbins (1919-2002) – do Liverpool, claro. Ao que se
diz, alguém sugeriu colocar um jogador de futebol, e Lennon o escolheu porque
quando garoto achava o nome dele engraçado. Stubbins é, na famosa capa do
disco, o sujeito de rosto rubicundo logo abaixo de Karl Marx e um pouco acima
de Marlene Dietrich.
4
Outro encontro improvável de Pelé, que sempre me fez
divagar, foi o que ocorreu em Araraquara, numa tarde de domingo de 1960. Numa
praça central da cidade, cruzaram-se dois grupos que se entreolharam à
distância. Um deles acompanhava Pelé e o time do Santos, que se encaminhava
para um jogo com a famosa Ferroviária de Araraquara. O outro acompanhava os
escritores Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que se dirigiam, por sua vez,
para uma palestra na Faculdade de Filosofia local.
Já escrevi com maiores detalhes a respeito desse encontro
inusitado:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2008/03/0045-um-encontro-em-araraquara-1452003.html
5
A violência no futebol é como a violência em qualquer
esporte de contato, de disputas corporais acirradas. Varia de acordo com o
estilo dos jogadores e dos técnicos, com o ambiente, com o peso das ambições
transformando um simples jogo numa batalha de vida ou morte. Há grandes jogos
em que a violência campeia de parte a parte, e grandes jogos em que se vê
futebol-arte do começo ao fim, sem nenhuma falta mais ríspida. Tudo isto faz
parte da vida.
Tenho duas imagens de Pelé que se não são “um exemplo
para as gerações futuras” ilustram bem o lado “testosterona pura” do futebol.
A primeira é a caçada que Pelé sofreu no histórico jogo
Brasil 1x3 Portugal, que tirou o Brasil da Copa de 1966 ainda na fase de
grupos. Portugal mereceu a vitória, porque a Seleção daquele tempo era aquilo
que os coleguinhas da crônica esportiva gostam de chamar “um amontoado de
jogadores”. Mas o que Pelé apanhou não está no gibi, e em grande parte não são
as faltas comuns, na disputa brusca pela bola, na imposição de uma força sobre
outra força. São faltas planejadas, onde o jogador pensa “vou pegar no joelho”,
e o faz. Naquele tempo o futebol não permitia substituições. Pelé ficou mancando
em campo, só para fazer figuração, até o fim.
Na Copa seguinte, em 1970, há outro episódio (que tal
como o outro pode ser encontrado no YouTube) no jogo Brasil 3x1 Uruguai. Pelé
sofre uma falta, rola no chão. Enquanto está caído, um uruguaio passa por ele,
assim como quem não quer nada, e pisa no seu joelho. Pelé marca o cara, e logo depois,
quando os dois perseguem uma bola longa lá na ponta esquerda, espera que ele se
aproxime, e mete o cotovelo na sua testa, com toda força, antes de rolarem os
dois pelo chão. O juiz não viu nada. Deu falta a favor do Brasil.
Isso é feio? Sim, a vida é feia. Todos nós sonhamos com a
possibilidade de um mundo futuro onde não existam a violência, os terremotos e
as baratas. Viver não é apenas perigoso, viver é cruel.
6
O melhor livro sobre Pelé (não que eu tenha lido muitos)
talvez seja Viagem ao Redor de Pelé,
de Mário Filho, que li adolescente. Foi numa época em que meu pai comprava
todos os livros sobre futebol que apareciam na Livraria Pedrosa. Mário Filho
escrevia brilhantemente a última página, enorme, da Manchete Esportiva. Eu lia e relia todas. Juntamente com seu irmão Nelson Rodrigues e
com João Saldanha, ele encarna a simplicidade e a riqueza imagística de quem sabe
escrever sobre o futebol brasileiro. Destes três, para mim, derivaram todos os
que contam histórias futebolísticas e interpretam o mundo fantasioso do
futebol, cada qual com sua paleta própria, e a todos li com prazer: Sandro
Moreira, Armando Nogueira, Eduardo Galeano, Fernando Calazans, Juca Kfouri, etc.
7
Tem um provérbio segundo o qual “Dinheiro pouco é
problema muito, e dinheiro muito é problema muito também”. Pelé ganhou rios de
dinheiro, tal como os Beatles. E, tal como os Beatles, poderia ter ganho o
dobro ou o triplo se desde o começo a sua fortuna crescente fosse administrada
por alguém que tivesse essa rara combinação de qualidades: honestidade, lealdade
pessoal e competência.
Tem um personagem, hoje obscuro, na história de Pelé, que
era conhecido como “Pepe Gordo”. Foi empresário ou contabilista das empresas de
Pelé durante anos, e deixou um rombo gigantesco. A imprensa da época dizia que Pelé
tinha abandonado o futebol mas teve que voltar, e assinar com o Cosmos, para
tapar o buraco deixado por Pepe Gordo.
Virou uma expressão de gíria entre alguns amigos meus. Às
vezes algum conhecido nosso ficava rico, arranjava um empresário, e alguém
comentava: “Ih... o cara tem um jeitão de Pepe Gordo...” Alguns anos atrás, o bardo Leonard Cohen, com
70 anos de idade, tinha deixado a administração de seus negócios na mão de uma
empresária de confiança, Kelley Lynch, a qual raspou o fundo do tacho e sumiu
com a grana. E quando eu li a notícia pensei: “Pepe Gordo ataca novamente”.
8Muita gente criticava Pelé pelo seu hábito de se referir a si próprio na terceira pessoa: “Ah, o Pelé acha isso, o Pelé acha aquilo...” Para muita gente, é sinal de vaidade, de auto-engrandecimento. Muita gente famosa adquire esse cacoete, que desperta antipatia nas pessoas.
Eu acho meio chato também, mas entendo que isto nasce da consciência de que o personagem admirado pelas multidões é uma coisa, e o “eu”, “a minha pessoa”, é uma coisa diferente. É sempre assim. Pelé fazia com frequência a distinção entre “o Pelé” e “o Edson”. Ele sabia que o público precisa do personagem para fantasiar seus próprios desejos, suas expectativas, seus sonhos, seus medos, seus preconceitos a-favor ou contra... E sabia que a pessoa é sempre um mero portador do personagem.
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Uma das expressões mais vívidas sobre a época de ouro do Santos foi uma declaração do próprio Pelé. O Santos, nos anos 1960, era um assombro futebolístico comparável ao que foram em épocas recentes o Barcelona (na era entre Romário e Messi), ou o Real Madrid “galáctico”. Clubes pelos quais a gente não torcia, mas fazia questão de acompanhar os jogos porque sabia que coisas memoráveis iam acontecer naquela tarde, naquela noite.
Era o Santos que tinha a famosa linha atacante com Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Não somente esses. Havia o atacante Pagão, que era o preferido de Chico Buarque. Havia Toninho, um artilheiro nato, matador, no estilo de Pedro (Flamengo) ou Germán Cano (Fluminense). O Santos era um assombro.
O jornalista perguntou a Pelé, já idoso, quais as coisas de que ele sentia saudade da época do futebol. E Pelé respondeu: “Eu tenho saudade da sensação que a gente tinha no início de todos os jogos, quando as equipes tomavam posição, a gente botava a bola no centro, se preparava para dar a saída, e então eu levantava a cabeça e olhava o time adversário. E via o medo nos olhos deles. O medo que eles tinham do Santos.”