quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

4895) Leituras 2022 -- 3 (21.12.2022)



Não costumo fazer listas de “dez melhores”, mas sempre gosto de dar um balanço, no fim do ano, de alguns livros que li e que por variadas razões não comentei aqui no blog. Quisera eu ser daqueles sujeitos organizados que “ficham” cada livro que leem, redigindo pelo menos meia página de observações. Não é o meu caso. Estas anotações, porém, podem servir como dicas de leitura, ou para que o leitor compare com suas próprias impressões.

 

CLÁSSICOS
“Wise Blood” (1952), de Flannery O’Connor
Flannery O’Connor é uma contista de estilo e cenas tão imprevisíveis quanto Clarice Lispector. Suas histórias curtas sobre aquele mundo de pernas para o ar que é o Sul dos Estados Unidos estão em todas as antologias. Procurei este romance depois de ver e rever a excelente (e fiel) adaptação de John Huston, com Brad Dourif no papel de Hazel Motes, o rapaz que volta da guerra transtornado. Ele se perde da família, fica vagando sem rumo certo, se apaixona pela filha de um pastor charlatão que finge ser cego, e embarca num delírio psico-religioso que o leva a algumas catástrofes pessoais. No meio de tudo isto ainda cabem o roubo da múmia de um anão, um automóvel jogado num lago, um homem que queima os próprios olhos, uma fila de garotos para apertar a mão de um gorila, e por aí vai. 
 
A literatura de Flannery O’Connor me parece existir num terreno fora dos EUA (sem com isto deixar de ser intensamente norte-americana), mas uma terra-de-ninguém onde se situam também vários romances do “realismo mágico” latino-americano, vários romances nordestinos com um pé no insólito e no bizarro... Em suma, histórias que constroem delírios em torno da visão mágica do universo, a qual não é muito distante da visão religiosa, principalmente a visão dos fanáticos religiosos ou dos “messias artesanais” – os profetas por conta própria, como é o caso de Hazel Motes.
 
Dentro da literatura norte-americana este livro pode evocar algo daquelas histórias de dark fantasy como em Ray Bradbury (Something Wicked This Way Comes), Jonathan Carroll, Charles G. Finney (The Circus of Dr. Lao). Mas a visão de Flannery não tem aquelas interfaces confortáveis com a fantasia-de-gênero. Parece uma obra brotada de uma enorme solidão, onde a autora vê o mundo, vê Deus, não duvida da existência de nenhum dos dois, mas duvida que qualquer um deles tenha razão de existir.
 



AUTOR NACIONAL
“Onde as verdades nascem” (Patuá, 2022) de Julio César Bernardes
Primeiro livro de contos do autor paulista. Histórias que roçam pelo fantástico e pelo insólito, numa prosa trabalhada. São ambientadas geralmente em cidades do interior onde acontecem fatos bizarros. As histórias são contadas num tom vagaroso e impassível, deixando os elementos insólitos aparecerem como parte integrante daquele ambiente que se desvenda; em geral não há surpresa a não ser a dos personagens envolvidos. Esse tom se mantém mesmo quando a narrativa é na primeira pessoa e por mais estranhos que sejam os fatos relatados: cabeças cortadas que começam a aparecer nas ruas de um bairro, um menino sonha uma vida completa com outra família num país desconhecido, um vagabundo de rua parece deter o segredo de um acidente que se abaterá sobre a cidade, a cidadezinha de litoral que não sabe o que fazer com a carcaça de uma baleia gigantesca onde um homem sem-teto resolve fazer morada. 
 
 

EXPERIMENTAL
“The Conversions” (1962), de Harry Matthews
É um típico romance do pessoal da OuLiPo, a Oficina de Literatura Potencial formada por um grupo parisiense. Aqui, um milionário deixa uma fortuna em testamento para quem for capaz de responder algumas perguntas absurdas e misteriosas, e o narrador mergulha numa série de eventos bizarros, encontrando gente estranha que se comporta de modo inexplicável. Tudo está contido numa série de “chaves” verbais, como o enunciado de uma charada, que em si mesmo não faz sentido, mas é narrado ao pé da letra, como se fizesse. Não é para todos os gostos. Eu gosto. 




MEMÓRIA
“Tarcísio Pereira: Todos os Livros do Mundo” (Recife, CEPE, 2022), de Homero Fonseca
A vida cultural do Recife nunca teria sido a mesma sem a influência de um dos seus maiores livreiros. Tarcísio (falecido em 2021, vítima da Covid) foi o homem que criou nos anos 1970 a “Livro 7”, mistura de livraria, bar, centro cultural e reduto de resistência política. Homero Fonseca pesquisou com carinho e reconstruiu o ambiente que possibilitou a existência da “maior livraria do Brasil”. Amigos do biógrafo e do biografado contribuíram com artigos, fotos, depoimentos, documentos de época; eu forneci um poema, “A Caverna Luminosa”, porque sou em grande parte um produto daquele aqui-e-agora.



POLICIAL
“Hotel Iris” (1996), de Yoko Ogawa
Uma garota adolescente, cuja mãe administra um hotel, se deixa fascinar por um homem mais velho que costuma se hospedar ali com prostitutas. Ela passa a segui-lo, até ser levada para a casa dele, onde os dois se entregam a rituais previsivelmente bizarros. O livro é contado do ponto de vista dela, com uma espécie de fascinação robotizada. Lembra a teoria da “vitimologia” de Julio Cortázar, para quem algumas histórias de crime são desencadeadas em igual medida pelo criminoso e pela vítima, a qual encara o perigo com o mesmo destemor anestesiado com que um viciado encara a droga que o está destruindo.
 



AUTOR NACIONAL
“O que a casa criou” (Record, 2021), de Diogo Monteiro
Este livro, vencedor do Prêmio Sesc de contos, tem uma prosa burilada minuciosamente, cada frase é inteira em si própria, sem servir de mero veículo para o fluxo da narração. Seria chamada de prosa poética, se isso não fosse hoje um termo meio maldito, principalmente no Brasil; mas mesmo assim é a narração que predomina. Mesmo elíptica e onírica em muitos pontos, é sempre uma história que está sendo contada, em ambientações rurais ou interioranas: o circo mambembe que viaja guardado numa caminhonete (“Várzea”), o lago que devolve as pedras jogadas dentro dele (“Repique”), o menino cujas partes do corpo desaparecem de uma em uma sem que isso cause alarme à sua mãe (“Campainha”). Todo um estilo, caprichado e imaginativo, se desdobrando.



FICÇÃO CIENTÍFICA
“The Other Nineteenth Century” (2001), de Avram Davidson
Avram Davidson era um judeu novaiorquino, baixinho, barbudo e irascível. Morou algum tempo no México e depois nas Honduras Britânicas (América Central), antes de se estabelecer na Caifórnia. Foi um desses indivíduos com leituras vastas e ecléticas, um vasculhador incansável de alfarrábios, arquivos, bibliotecas empoeiradas, hemerotecas de um tempo em que este termo ainda estava em uso.
 
The Other 19th Century é uma coletânea póstuma das principais histórias que ele ambientou nesse século, com o qual se identificava. Muitas de suas histórias de FC têm lugar no passado, com episódios bizarros relativos à descoberta e exploração da eletricidade, rádio, etc.  Bastaria esta coletânea para que Davidson pudesse ser considerado um precursor do gênero steampunk, porque ele mostra, além da fascinação pela tecnologia vintage, o exotismo de uma época delirantemente imperial, e a mestiçagem cultural resultante do refluxo, para dentro das capitais dos impérios, de tudo que existe de improvável e ininteligível na cultura das colônias.
 
Davidson (1923-1993) sempre foi uma espécie de “estranho no ninho” na FC norte-americana – ainda assim, ganhou prêmios como o Hugo, o World Fantasy Award e o Edgar (de literatura policial). Ursula LeGuin disse certa vez, referindo-se a Philip K. Dick, que este seria “o Borges do nosso país”. Acho que Avram Davidson é quem mereceria essa qualificação, por mais de um motivo.
 
O título completo deste livro é: O Outro Século Dezenove: Uma Coletânea de Histórias de Avram Davidson, Contendo Extraordinárias Revelações sobre as Vidas de Pessoas da Literatura; bem como Relatos Fidedignos sobre Fósseis Vivos, a Câmera de Montavarde, a Máquina de Irradiodifusão, e o Vilvoy das Ilhas; com Crimes Nefandos, Nobres Damas em Adversidade, Brilhantes Deduções, Eunucos Imperiais, Maquinações Políticas, etc etc



CLÁSSICOS
“Orlando” (1928), de Virginia Woolf
Li este livro em tradução brasileira, quando tinha trinta e poucos anos, e tive a sensação de que estava lendo um livro de alguém tão hábil com as palavras e com os pensamentos quanto Machado de Assis. (Li na edição do Círculo do Livro, e até hoje não consegui descobrir quem traduziu esta versão.) Reli agora no original inglês, e achei o livro muito melhor, mas muito mesmo. O impulso de reler veio por ter assistido a ótima adaptação feita por Sally Potter em 1992, com Tilda Swinton no papel-título.
 
Virginia Woolf tem o dom, que nem todos os escritores (mesmo os que são geniais) têm, de puxar o leitor pelo fio das palavras da maneira como uma criança puxa pelo fio de uma linha a sua pipa (arraia, coruja, pandorga, etc.).  Basta um fio de palavras, e como o fio tem solidez e tensão suficientes, ele arrasta o leitor para o século tal, para Londres, para Istambul, para o oceano, para o passado e o futuro... Virginia Woolf escreve o tempo todo como quem começa a contar uma história para os frequentadores de um café egípcio, e poucos parágrafos mais à frente tudo acontece como se estivesse acontecendo de verdade, ou seja, num filme de verdade, com atores e tudo, navios e tudo, explosões e tudo; e mal se dissipa o fumo das explosões lá vem o fio das frases nos arrebatando e nos levando de novo na direção que a autora bem entende, e até em direções que ela confessa não entender por completo, mas afinal, como é ela que está levando, ela leva mesmo, lá vai ela e lá vamos nós. 
 
Este livro é uma beleza, li traduzido em edição de papel, li agora em inglês (em PDF no celular), e pretendo comprar outra versão em papel para me deleitar sublinhando. 
 

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Outras indicações: 

https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/12/4892-leituras-2022-1-12122022.htm

https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/12/4893-leituras-2022-2-15122022.html