Este poema simples, movimentado, cordelesco, é um dos
mais conhecidos de Alguma Poesia
(1930), livro com que Carlos Drummond de Andrade estreou na poesia aos 28
anos.
O Modernismo impôs em nossa literatura a importância e a
complexidade do verso branco (sem rima obrigatória) e livre (sem métrica
obrigatória, sem formas fixas de estrofe). Ao mesmo tempo, ele não eliminou a
importância ou a beleza do verso rimado e metrificado.
Muitos modernistas de primeira hora (e até de hoje em
dia) correm para o verso livre por ver nele uma zona de conforto, onde podem
escrever qualquer coisa sem se importar com nenhuma regra. Estão enganados. O
verso livre tem regras, exige (como muitos poetas Modernistas atestam) uma
sensibilidade até mais complexa, um domínio verbal maior.
Enquanto isto, poetas como Drummond, Manuel Bandeira,
Mário de Andrade e outros se mostraram sempre à vontade tanto num tipo de verso
quanto no outro. Drummond rima e metrifica impecavelmente, quando se propõe a
isto. Quando não, maneja o verso sem rima e sem métrica com sutilezas de
sonoridade que nos ensinam muito mais do que aprenderíamos com a rima e a
métrica convencionais.
Note-se que embora a cadência básica seja do verso de 7
sílabas, Drummond geralmente o utiliza com o mesmo senso de não-obrigação de
João Cabral, cujas estrofes frequentemente flutuam do começo ao fim do poema
entre 6, 7, 8 e até 9 sílabas. Uma liberdade que escandaliza os nossos
cordelistas, para quem a obediência rigorosa à métrica é uma espécie de
décimo-primeiro Mandamento.
Esta balada de Drummond se destaca em sua obra pelo uso
do termo “balada”, palavra que tipicamente indica os poemas narrativos em
língua inglesa, e que em português substituímos por “romance” (não o romance da
prosa de ficção; o romance popular em verso, herdado do Romanceiro Ibérico).
O poema conta cinco histórias diferentes – ou conta a
mesma história cinco vezes, a depender do olho de quem lê. Um rapaz e uma moça
se amam; o mundo conspira contra eles. Existe algum tema mais antigo do que
este? Qualquer manual de roteiro de cinema resume o roteiro ideal na fórmula
“Boy meets girl, boy loses girl, boy gets girl” (“Rapaz encontra moça, rapaz
perde moça, rapaz consegue moça”).
São cinco momentos da história, que o poeta nos ajuda a
visualizar com uma surpreendente versatilidade. A Grécia antiga, do tempo da Ilíada. O império romano e seus espetáculos
brutais, do tempo de Quo Vadis. Os
piratas do Mediterrâneo. Os nobres da monarquia francesa pré-revolução. O mundo
moderno do cinema e dos esportes.
A permanência dessa história de amor irrealizada, em
mundos diferentes, lembra filmes como A
Morte Cansada (“Der Müde Tod”, 1921; na França, “Les Trois Lumières”) de
Fritz Lang, um filme que Drummond pode muito bem ter visto e tomado como
inspiração. Nele, três histórias de amor são mostradas: no Oriente árabe, na
Veneza renascentista e no império chinês.
Essas ambientações exóticas não precisam de muita fidelidade
histórica, de muito rigor documental. Estão aí apenas como alegorias, quase
como alegorias carnavalescas, para indicar que os dramas do amor se assemelham,
mesmo tem países e séculos diferentes. É um tipo de “passado ornamental”,
baseado em figurinos e cenários, algo que o cinema mudou herdou da ópera do
século 19.
A influência cinematográfica fica bem explicitada na
estrofe final, quando o narrador se compara a um “herói da Paramount”,
contemporâneo dos finais felizes. Um dos aspectos psicológicos do nosso
Modernismo literário foi o esvaziamento do melodrama sentimental. Os afetos
tornaram-se mais leves, mais descontraídos. A Bossa Nova faria o mesmo com as
letras da canção popular, quarenta anos depois.
No seu primeiro livro Drummond já revela uma leveza
narrativa surpreendente, comprimindo em cada uma dessas estrofezinhas um enredo
bem capaz de alimentar todo um filme do cinema mudo – era uma época de muitos
filmes com 20 ou 30 minutos. Juntando todo o poema, poderia resultar num filme
em episódios com uma hora e meia.
Curiosamente, vi o poema certa vez numa Antologia da Poesia Espírita, que
encontrei num sebo. E se percebe que o texto pode claramente ser interpretado
como uma narrativa de um casal em reencarnações sucessivas; quase que um
precursor da tendência recente de fazer regressão psicológica e “recordar vidas
passadas”.
*****************
Balada do amor através das idades
Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão.
Matei, brigamos, morremos.
Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.
Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria de meu bergantim.
Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal-da-cruz
e rasgou o peito a punhal...
Me suicidei também.
Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão de Versailles,
espirituoso e devasso.
Você cismou de ser freita...
Pulei muro de convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.
Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de muitas peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos.