O Prêmio Nobel é bom quando celebra um autor que a gente
gosta. Me lembro de que comemorei os nomes de José Saramago, William Golding,
Mario Vargas Llosa.
Também é útil quando nos revela nomes que a gente
desconhecia. Quando a francesa Annie Ernaux ganhou o prêmio semanas atrás,
houve muita troca de comentários nas redes sociais, e em função disso acabei
tendo acesso a livros dela, cuja obra eu nunca tinha lido.
O que me chamou a atenção foram os comentários de que ela
escreve parecido com Georges Perec, uma ficção meio autobiográfica mas narrada
com distanciamento, sem nostalgia ou sentimentalismo. Perec tem alguns livros
assim, e o seu W, ou a Memória da
Infância é uma complexa experiência em que se misturam ficção especulativa e
memória.
Peguei para ler La
Honte (1997), já traduzido no Brasil (A
Vergonha, Fósforo Editora, trad. Marília Garcia). É um relato curto onde
ela aborda um fato crucial de sua juventude: o dia em que seu pai tentou matar
sua mãe, em 15 de junho de 1952. (Annie Ernaux nasceu em 1940.)
Depois de um almoço do domingo, o casal discute sem
parar. O marido está alterado, tremendo convulsivamente, e começa a bater na
mulher. A filha sobe correndo para seu quarto, apavorada. A mãe grita por
socorro, a menina desce e vê os dois ainda brigando, na adega, enquanto o pai
ergue uma foice.
“Foi tudo muito rápido”, como se diz, e Annie lembra
apenas que depois estão os três distanciados, ela chorando, o pai sentado à
janela, a mãe perto do fogão. Trocam frases ásperas, mas parece que tudo se
dilui, como em tantas brigas domésticas; e os três saem para passear de
bicicleta, como fazem todos os domingos. Diz ela: “E nunca mais se tocou naquele assunto”.
Como é de esperar, esse episódio (até moderado, se a
gente pensar no que acontece por aí) fica incrustado na memória da menina e
logo nas primeiras páginas a autora, agora adulta, confessa que está escrevendo
sobre aquilo pela primeira vez.
A prosa de Annie Ernaux, neste livro pelo menos, é uma
prosa cristalina; tem do cristal tanto a clareza quanto a rigidez, tanto a
luminosidade quanto a crispação íntima. Não se desmancha em queixas nem em
melodrama. Os franceses, tão emotivos! – conseguiram desenvolver um tipo de
prosa distanciada para analisar os próprios sentimentos, traumas, emoções
turbulentas. Será o resultado de quatro séculos de cartesianismo e cem anos de
psicanálise?
La Honte se
anuncia como o relato de um evento traumático, “vergonhoso”. Uma briga de casal
como milhões de outras, uma violência da parte mais forte sobre a mais fraca.
Annie Ernaux descreve com objetividade cinematográfica o ambiente, o local, o
momento, os detalhes que a memória conseguiu salvar. Uma cena, apenas – e desta
cena o livro inteiro se desdobra, como um pop-up.
Porque a partir daí ela recua, vai se afastando desse
nódulo problemático, deixa-o meio que para trás. Vai mostrando a pessoa que era
o pai, a pessoa que era a mãe. Comenta fotografias de infância – que na
literatura são sempre um excelente pretexto para a produção de fantasias
afetivas. Descreve o lar, uma típica combinação de vida privada e trabalho
público, pois a família administra um pequeno café-mercearia, e mora no
restante da casa; ali, misturam-se o espaço de atendimento aos fregueses e a
residência privada.
Descreve a cidadezinha de “Y”, seu espaço físico, seu
espaço social – ali moram os ricos, aqui os remediados, ali os pobres. Comenta
a mentalidade local, as fofocas, a vigilância recíproca, as maledicências a
meia voz, o medo de “cair na boca do povo”. Impossível não ver o que há de
profundamente nordestino (brasileiro?) nesse vilarejo da Normandia, que surge
no livro como se eu já o conhecesse. Junto com a mãe, a menina Annie lê
romances de M. Delly e de Max du Veuzit, os mesmos que eu, adolescente, via às dezenas
nos sebos de Campina Grande e do Recife.
Começa uma longa descrição da vida escolar da garota, que
parece ao leitor, num primeiro momento, uma mudança de assunto, uma virada de
página, deixando para trás o episódio violento. À medida que ela avança no
relato, no entanto, começa a revelar um contexto social que remete o tempo
inteiro à infelicidade do pai e da mãe.
Annie foi matriculada (sabe-se lá a que custo) numa
escola particular de freiras católicas, e não na modesta escola pública que
caberia à filha de um pequeno comerciante, ex-camponês, ex-operário. É a única
da família que teve a chance desse upgrade
social, sem dúvida por esforço de sua mãe, que tem devaneios de ascensão (o pai
é rústico e ressentido).
Nessa escola católica e emproada a menina tem acesso às
incontáveis pequenas humilhações de quem percebe o tempo inteiro o quanto é mal
vestida, inadequada. E brota nela um sentido mais amplo de vergonha, que não é
apenas a vergonha do que o pai tentou fazer à mãe, mas a vergonha de serem
todos três aquilo que inevitavelmente são.
O ponto alto desse pesadelo gelado é a excursão de ônibus
ao santuário de Lourdes, quando ela e o pai são repetidamente humilhados pela
desatenção dos garçons, o esnobismo dos companheiros de viagem, e a constatação
de que são “pobres”, não pertencem àquele mundo.
(No destaque, o País de Caux)
Logo nas primeiras páginas vi que a autora chamava apenas
de “Y.” a cidadezinha onde morava com os pais. Achei normal, e segui adiante.
De repente, ela diz:
Em junho de 52, eu nunca havia saído daquele território a que se dá o
nome, de maneira bem vaga, mas compreendida por todos “aqui entre a gente”,
como o país de Caux, à margem direita do Sena, entre Le Havre e Rouen. (trad.
BT)
Caiu uma ficha do tamanho do Louvre. “Y” era então
Yvetôt!... Porque essa região que ela descreve é a região de Arsène Lupin, na
costa da Normandia: Rouen, Dieppe, Le Havre, Étretat... É ali que se passam
algumas das aventuras mais célebres do “ladrão de casaca”: A Agulha Oca... A Condessa de Cagliostro... O Mistério do Rio do
Ouro...
É o território que Lupin conhece como a palma da mão, onde travou
suas maiores batalhas contra inimigos poderosos, onde decifrou enigmas
seculares da história da França, onde esconde os seus tesouros.
E assim, por uma dessas magias da literatura, toda a
pequena e dolorosa aventura de Annie Ernaux tornou-se mais real para mim. Mais
real ainda do que me havia sido revelado pelo bisturi de sua prosa. Eu conheço
(de minha infância também, de meus doze anos também) aquelas cidades antigas
encarapitadas entre morros e vales, aquelas igrejas em ruínas, aqueles
camponeses surrados pelo tempo, de cenho franzido, de queixo duro. Aqueles rochedos
místicos e sangrentos. Aquela Normandia sisuda, arraigada em si mesma, suspeitosa
do mundo lá de fora. Um povo de segredos enterrados. Um povo que presenciou
crimes e que poderia contá-los, mas só à força de bisturi.
(As falésias de Étretat; o país de Lupin)