Pelejei para lembrar, hoje, quando foi que ouvi Gal pela
primeira vez. Minha geração tem uma relação diferente com a obra dela e dos
cantores de sua geração. Somos os ouvintes de primeira hora, os que
presenciaram o surgimento, os que correram felizes à loja de discos quando
alguém telefonou avisando: “Saiu o disco de Fulano de Tal!...” O primeiro de
tantos. Vamos correr, vamos comprar,
vamos ouvir.
Isso me aconteceu com Chico Buarque, com Caetano, os
Mutantes... Mas, Gal? Não me lembro. Hoje, nas redes sociais, vi muita gente
saudosa dizendo que a ouviu pela primeira vez cantando “Gabriela”, ou “Vaca
Profana”, ou outros de seus sucessos – que para mim são recentes. E outras pessoas
dizem: “É como se a voz dela estivesse ali desde sempre.”
Na falta de um marco melhor, tenho que carimbar aqui o
clássico álbum Tropicália, ou Panis et
Circensis, o disco-manifesto do movimento tropicalista, uma porrada
conceitual a começar pela capa (o grupo inteiro, fantasiado) e a contracapa (um
pseudo-roteiro de cinema com cenas meio surrealistas). Gal era a moça de
vestido estampado, cabelo ainda um tanto curto, sentada bem comportadinha.
Menos comportadinhas eram as músicas que ela cantava no
disco.
“Baby” era aquele hino godardiano do encantamento pela
sociedade de consumo, não pelo consumo, mas pela novidade, pelo abrir de portas
para o lado mercador do Moderno. A fatalidade inelutável de ser jovem e de herdar
todo um mundo.
“Mamãe Coragem” era a resposta brasileira ao “She’s
Leaving Home” dos Beatles, o hino dos drop-outs, dos que fogem de casa, dos que
decolam de mochila às costas rumo ao lado esmagador da modernidade. A cidade
grande.
Ao lançar o primeiro disco, Gal já era uma pessoa de-casa.
Uma daquelas garotas onde rebeldia e timidez se alimentam e se atenuam uma à
outra. Doidona e discreta. Cortando caminho pelo meio da floresta da MPB,
rebentando as cercas que separavam Jorge Ben, Jackson do Pandeiro, Roberto
& Erasmo... Já cantava em inglês (suprema heresia para a época – era sinal
de “entreguismo”).
Gal é uma dessas cantoras que se definem por voz e
repertório, acima de tudo. Não que não tivesse grandes gestos de exuberância cênica
ou de “atitude” fora do palco, mas foram voz e repertório que no oscilar dos
momentos a mantiveram sempre naquilo que o pessoal chama de “a Série A” da
música brasileira. Sem a obsessão dos recordes de vendagem e dos prêmios.
O talento da cantora (do cantor) é sua capacidade de dar
uma dimensão física, sonora, a uma canção, que tecnicamente é apenas um
conjunto de instruções escritas em algumas folhas de partitura e em uma página
de versos datilografados.
A canção está ali? Sim, de certa forma. Ali estão as
instruções para que a canção seja recriada mediante vozes e instrumentos. O que
está no papel são as coordenadas genéticas, por assim dizer; o DNA daquela
canção. Mas ela só existe quando está sendo cantada.
“Minha voz... minha vida...” Quantas são as canções de
Gal, escritas por diferentes compositores, que reiteram essa importância da
voz, do ato de cantar, do bom que é cantar, da importância de cantar e se fazer
ouvir... E nisto tanto faz estar cantando para uma cidade inteira ou para uma
só pessoa.
Cantar é existir com força. E com beleza – não a beleza
formal e padronizada das formas estabelecidas, mas a beleza que assusta, que
faz cambalear, a beleza que desconcerta de tão diferente, que desorienta e
reorienta nossa maneira de sentir.
Tem uma verdade mitopoética nisso. Voz é sopro, hálito
que dá vida ao barro humano. Sempre achei bonita essa imagem religiosa de um
Deus que faz um boneco de barro mas precisa soprar nele para dar-lhe vida. Esse
sopro (para mim) nunca é um bafo silencioso, e sim a emanação de hálito que
acompanha a fala. Deus disse algo; talvez tenha cantarolado alguma coisa.
Quando Michelangelo terminou sua estátua de Moisés,
achou-a tão perfeita que bateu-lhe com o martelo, ordenando que falasse. É a
mesma ação: a voz do criador é que dá vida à criatura, e pede, em resposta, que
ela fale, para comprovar que está viva.
Deve ser essa, então, a força estranha que leva a cantora
a cantar. E nós que escrevemos canções somos meros mercúrios, meros
transportadores de sons escritos, meros facilitadores e abridores-de-caminho
para que o vento da voz possa passar e o barro da vida possa ouvir.
Eita, Gal... A voz ficou, e nós todos passaremos por ela,
sabe-se lá até onde. Sendo assim, vamos viver. Vamos chorar, vamos lembrar,
vamos cantar, vamos sorrir.