sexta-feira, 30 de setembro de 2022

4868) O Universo conspira a meu favor (30.9.2022)




É um truísmo muito antigo, e foi popularizado por Paulo Coelho em alguns dos seus livros místicos. O seu teor é mais ou menos este: “Quando você se envolve na busca de um objetivo, o Universo inteiro conspira a seu favor”.
 
É uma frase muito lembrada sempre que acontece uma coincidência favorável. Vou na barbearia, tem um cliente na minha frente, entro numa livraria para enrolar meia-hora e acho o livro raríssimo que procurava há anos, e está por dez reais. Alguém me encarrega de um trabalho e penso em recorrer a um cara cujo contato perdi há muito tempo; na volta para casa, encontro-o no metrô e o problema está resolvido.
 
Paulo Coelho popularizou essa expressão, mas nos últimos anos já a vejo sendo substituída por “o algoritmo de Deus”. “Rapaz, eu precisava saber urgentemente o autor de uma citação que vi na época da Faculdade, liguei para várias pessoas, aí resolvi relaxar, peguei um livro policial... e lá estava a informação, porque o algoritmo de Deus não perde tempo.”
 
Cabe aqui, portanto, a indagação séria: é possível que o Universo inteiro conspire a favor de uma pessoa, para que ela alcance os seus objetivos? Ou isso não passa apenas de mais uma cenoura de otimismo pendurada diante das ventas de burros-de-carga como eu, para que eu continue “buscando o meu objetivo”, “me esforçando para superar os obstáculos”, “acreditando no meu potencial”, “conquistando meu espaço no mercado de trabalho” e outras receitas da escravitude empreendedorista?
 
Acreditar nisso significaria acreditar que esse Universo Conspirador possui consciência, possui vontade, possui poder de ação localizado, e que ele se importa comigo. Com a minha insetóide presença nas suas entranhas.


Lembro disto porque numa festa de São Pedro em Campina, anos atrás, estávamos em turma tomando alguma coisa ao redor de uma fogueira. Um amigo meu (chamemo-lo Rogério) estava mergulhado na sua tese de doutorado, as dificuldades de pesquisa, as necessidades de consultas bibliográficas. A certa altura, falou que conhecera por acaso, numa parada para abastecer o carro, alguém que tinha um documento científico obscuro do qual ele precisava; e saiu-se, bem satisfeito, com essa bendita frase sobre o Universo.
 
Eu tinha tomado algumas doses de Matuta e resolvi cortar o trunfo dele. Acendi um cigarro e perguntei:
 
– Tu acredita mesmo que o Universo, um departamento tão ocupado, larga as suas tarefas mais urgentes só pra ajudar na tua pesquisa?
 
– Não é assim que funciona – replicou Rogério, que não é bobo. – O que estou dizendo é que nas ações humanas existe um sistema invisível de correspondências, uma espécie de convergência estatística. A nossa percepção individual aprende isso de forma empírica e não-verbalizada ao longo da vida.
 
– Converse mais que eu pago seu lanche – disse alguém.
 
– Vocês são uns fariseus do conhecimento – rebateu ele. – Só acreditam no que diz no Manual. Pois eu digo a vocês que o Universo percebe, sim, o que nós precisamos, e age de acordo.
 
– Ele manda botar um livro numa prateleira dum sebo só porque viu que você dobrou aquela esquina e vai passar na frente?
 
– Não é assim tão simples. Há linhas de convergência. Enquanto minha mente consciente se preocupa com a necessidade da informação, há camadas mais profundas avaliando: Onde pode haver esse dado? Que tipo de livro? Que tipo de local acessível? Como estimular a Mente Consciente dele, essa senhora tão pedante e egocêntrica, a procurar a informação no lugar mais provável?
 
– E se a informação estiver num açougue, numa sapataria ou numa lanchonete?
 
– Não está, é claro. O Universo não é caótico. Há linhas de convergência.
 
– Eu já passei semanas numa biblioteca atrás de um dado qualquer e não achei – disse alguém. – O Universo estava de mal comigo?
 
– Eu poderia dizer que é porque você não estava suficientemente focado no seu objetivo – disse Rogério, – mas prefiro ser diplomático e dizer: Nem tudo na vida dá certo sempre. Por que teria de ser assim? São processos instáveis, sujeitos à influência de muitas variáveis. Às vezes você até pegou o livro certo, onde estava o tal dado; mas se interessou pelo título de outro capítulo e foi noutra direção... coisas assim.



– Mas por que motivo o Universo simpatizaria com um ser humano? – questionei. – Muito paternalista esse seu Universo. Muito bonachão... um universo querendo ajudar os jovens... Isso é coisa de quem já estudou em Seminário.
 
Toquei no calcanhar-de-Aquiles dele, que abespinhou-se.
 
– Existe uma energia subjacente, que permeia tudo – afirmou. – Nós somos sensíveis a ela, e ela a nós.
 
– Por que essa energia não salvou Saulinho? – disse alguém. Saulinho era um amigo nosso que tinha sido atropelado na véspera e estava no hospital, enclausurado em gesso.
 
– Excelente exemplo – tornou Rogério. – As sociedades humanas se organizam de um modo muito semelhante à dinâmica dos fluxos da energia natural. O trânsito precisa fluir, certo? Fluxos convergentes precisam parar de vez em quando para dar vez ao outro, e depois retomar seu curso. Saulinho é um abestado, vinha pensando na namorada e entrou no fluxo errado.
 
– E aí o Universo conspirou contra ele.
 
– Não “conspirou”, criatura. Isso é terminologia de filme de James Bond. As energias do universo circulam de acordo com lei do menor esforço, lei da economia energética... Quando estiver num avião, olhe a trajetória de um rio. O que é aquilo? Água solta, sendo atraída para o “centro virtual da Terra”, e procurando caminho ao longo de um terreno acidentado. A energia invisível é a mesma coisa. A gente larga uma balsa no rio e o rio vai levando, sem precisar de vela, de remos, de nada. Isso seria um exemplo do “conspirar a favor”, mas na verdade o que ocorre? A gente entende como aquela água está se comportando, e usa a nosso favor. Apenas isso.
 
– São as leis na Natureza – disse alguém que finalmente achou um meio de entrar na conversa.
 
– Chamar isso de leis é o mesmo que chamar de conspiração. Não são “leis”. São constantes, padrões de regularidade da matéria. A matéria se comporta de modo coerente. Temperatura, pressão, movimento, aceleração, ciclos biológicos, tudo isso se comporta de maneira constante, e a gente estuda isso há 10 mil anos.
 
– Mais – disse eu.
 
Ele fez um gesto de olímpico desdém, e prosseguiu:
 
– São detalhes. O homem usou o ímã, o magnetismo metálico, durante milênios, sem saber por que acontecia aquilo, mas entendendo como, e pronto. O conhecimento vai galgando degraus, de um em um.



Eu voltei à carga:
 
– Certo. Mas esse fato que você contou. O carro da UFCG parou para abastecer no Riachão. Vocês aproveitaram para tomar um café. Ficaram conversando, aproximou-se um cara que reconheceu você de uma palestra anos atrás. Puxou um assunto, depois outro, você descobriu que ele tinha a cópia de uma pesquisa de um professor dele, de “xis” anos atrás...
 
– Sim. Desculpe ter falado em conspiração-a-favor. Na verdade, foi uma convergência. Se eu faço uma palestra sobre um tema científico para 200 pessoas do ramo, estou lançando 200 anzóis com isca, sabendo da possibilidade de que mais cedo ou mais tarde algum dos 200 pegue num documento precioso e pense: “Ih rapaz, professor Rogério da UFCG mexe com isso... será que ele se interessa?...”  Convergências.
 
– E quem fez o carro parar para abastecer justamente ali, naquela hora?
 
– O Acaso. Um lance de dados jamais abolirá o Acaso.
 
– Então basta só esperar pelo Acaso.
 
– O Acaso funciona muito pouco com quem está esperando. Estar parado é fechar janelas de possibilidade. Estar em atividade constante é abrir, multiplicar janelas. Se eu não tivesse encontrado o cara lá no Riachão, talvez batesse com ele uma semana depois, um mês...
 
– Ou talvez depois de ter publicado a tese com um buraco no meio.
 
– E daí? Toda tese tem mais buracos do que a defesa da Seleção Brasileira. E a gente precisa ajudar o Acaso. Precisa ser como aquele atacante que estava de costas para o gol, numa confusão dentro da área, a bola bateu na trave, bateu nas costas dele e entrou. Se ele não estivesse ali, o gol não acontecia.
 
– Coitado de Saulinho! – disse alguém. E bebemos à saúde dele.