Parece que coube a Cacá Diegues esta frase emblemáticas e
definitiva: “Para nós, a palavra Cinema
é abreviatura de Cinema Americano”. E
não lembro agora quem afirmou (com igual precisão) que “os americanos
descobriram o segredo do ritmo cinematográfico”.
Eu corrigiria apenas observando que eles não “descobriram
o”, mas “inventaram um”. E as forças conjugadas do dólar, da política, do
comércio e (não convém desprezar) do poder simbólico das mitologias
norte-americanas impuseram esse ritmo como sendo o que todo brasileiro espera
quando compra seu ingresso na bilheteria. Cinema virou sinônimo daquele cinema.
Jean-Luc Godard e outros diretores da nouvelle vague eram igualmente
fascinados pelo cinema norte-americano. Só que a França, comparada ao Brasil, é
outro patamar. Eles podem encarar os gringos de frente, no mesmo nível, olho no
olho. Ou pensam que podem, o que em termos de Arte vem a dar na mesma coisa. Os
nouvellevaguistas eram antropofágicos, ao seu modo. Digeriram da cultura dos
EUA um monte de coisas que os próprios norte-americanos já tinham esquecido ou
que menosprezavam: Samuel Fuller, Jerry Lewis, David Goodis, Nicholas Ray, Buster
Keaton, o filme “noir”, a pulp fiction.
Dessa turma francesa, Godard era talvez o menos
preocupado em “fazer sucesso”. Seu cinema é, na maior parte do tempo, um
anti-cinema, no sentido de que é um anti-cinema-americano, não porque ele
deteste o cinema dos EUA, mas porque quer espicaçá-lo, provocá-lo, canibalizá-lo,
desconstruí-lo. No que faz muito bem.
A tríade em que repousa o cinema convencional é: Identificação,
Empatia e Catarse. O público se identifica com alguns aspectos dos personagens
– que tanto podem ser Carlitos quanto Hannibal Lecter – e se transporta
mentalmente para a tela. Cria uma empatia e se projeta em seus dramas, suas
ações, seus perigos, seus afetos. E através disso obtém a catarse, vivendo
vicariamente (indiretamente, parasitariamente) o que o personagem vive:
experimenta o amor, o ódio, o perigo, a excitação, a brutalidade, o riso.
Godard não quer nada disso, ele quer o distanciamento
crítico, e neste aspecto é o mais brechtiano dos diretores do cinema. Godard
parece dizer o tempo todo: “Pára, é um filme, não está acontecendo, é só uma
encenação para que você se pergunte: Quem? O quê? Por quê?”.
Em La Chinoise,
há uma cena (00:47:31) em que o
personagem mostra um quadro negro cheio de nomes escritos, sob o letreiro “A
História da Arte nos Últimos 100 Anos”. Ele vai eliminando de um em um. No
final, “Brecht” é o único que sobra.
O filme convencional é um discurso de mão única (da tela
para a sala) que visa emocionar o público. O filme de Godard é uma triangulação
entre a tela, a sala, e uma presença invisível (o Diretor) que se interpõe o
tempo inteiro entre as duas, interrompendo a catarse. Por isso Godard é tão
odiado. Interromper a catarse de um espectador de cinema é ainda mais grave do
que interromper um espirro ou um orgasmo.
Veja-se o caso de Bande
à Part, um filme despretensioso e simpático, o único de Godard incluído na
lista dos “100 Melhores Filmes” da revista Time.
Acompanhamos dois rapazes e uma moça que planejam um assalto (“planejam” é
exagero: eles ficam com vontade de fazer um assalto e acabam fazendo mesmo) e o
tempo inteiro uma voz vem por trás da câmera, por trás do nosso ombro,
segredando alguma coisa ao nosso ouvido. É o diabo do diretor.
Por volta dos 8 minutos de filme, essa voz anuncia,
baixinho: “Para o espectador que chegou
atrasado, vamos fornecer umas poucas palavras escolhidas aleatoriamente: Três
semanas antes. Um monte de dinheiro. Uma aula de inglês. Uma casa na beira do
rio. Uma garota romântica.”
Como a história é simples e os personagens têm um certo
carisma (carisma e catarse têm o mesmo DNA), a gente aceita. E por que não? Um
dos rapazes escreve mais adiante, num quadro negro: “Eliot: Tudo que é novo é automaticamente tradicional”.
Bande à Part é
o filme com a famosa cena da “dancinha”, multiplicada em memes e em citações
pelo mundo afora. Os dois rapazes e a moça (com chapéu de homem) dançam uma
coreografiazinha meio ensaiada, meio lembrada na hora.
É uma cena hipnótica. O leve desencontro nos movimentos deles
exige de nós uma atenção quase inconsciente, mas constante. Nosso cérebro fica
“corrigindo” mentalmente a coreografia, e assim não mergulha no
piloto-automático do mero deleite, do mero consumo. Uma dança com excesso de
perfeição (os filmes de Busby Berkeley, os dançarinos de Bali) elimina esses
solavancos – e produz um adormecimento, uma atenção apenas passiva.
E como se não bastasse, o diabo do diretor volta a
cochichar. Ele interrompe três vezes o áudio (os jovens continuam dançando, sem
som) para dizer que este é o momento de uma digressão sobre os sentimentos dos
personagens. A música está tocando e de repente um corte do áudio. Voz: “Arthur segue olhando os pés; mas sua mente
está na boca de Odile e seus beijos românticos.” Volta música. Corte de novo. Voz: “Odile se pergunta se os garotos percebem
seus seios movendo-se por baixo do suéter.”
Volta a música, terceiro corte, voz: “Franz
pensa em tudo e em nada. Ele se pergunta se o mundo está virando um sonho ou se
o sonho está virando o mundo.”
Passa? Parece que passa, porque o corte não é tão intruso
assim, e de certa forma contribui para a nossa identificação e a empatia. Depois,
Godard usaria o mesmo artifício para fazer comentários marxistas-leninistas.
De certo modo essa cena equivale às entrevistas que ele
faz com os atores de A Chinesa
(1967), jovens maoístas trancados no enorme umbigo do apartamento dos pais de
um deles (uma situação retomada anos depois, em outros termos, pelo filme Os Sonhadores, 2003, de Bernardo
Bertolucci). A câmera enquadra em close o ator-personagem, que responde
perguntas vindas lá de trás, quase inaudíveis (o que me lembrou o saudoso programa
musical Ensaio, de Fernando Faro na
TV-Cultura, um programa godardiano em mais de um aspecto).
Essas cenas reproduzem de certa forma as entrevistas de
um diretor que escolhe atores. Godard está, por cima de nosso ombro, “entrevistando
os personagens”, para checar se o ator/atriz já o incorporou devidamente. (Ele
chega a mostrar Raoul Coutard e sua câmera.) Mas eu já vi diretor de teatro
fazer isso e, diabolicamente, misturar perguntas pessoais, especificamente
dirigidas ao ator/atriz. Como interrogatório de espião nas mãos da CIA, do
Mossad, da KGB. Quem é você? Gosta do quê? Vive como? Veio de onde? O que anda
fazendo?
E nessa triangulação (tela/sala/diretor) o filme, que
teoricamente é de ficção, ganha uma leveza e uma soltura de documentário, de
coisa não decorada, não encenada, de coisa espontânea, ou ficticiamente
espontânea. E mesmo quando o texto da resposta é do personagem, sentimos por
baixo dele uma dosezinha da atriz; e vice-versa.
Falo aqui de vez em quando que a música no cinema e na TV
é um “indutor emocional”, um efeito subliminar nos explicando (e nos impondo) o
que devemos sentir. São os violinos açucarados que mesmo um cara talentoso como
Steven Spielberg empurra em toda cena de amor. São os rumores tectônicos,
ultra-graves, que mexem com nossos intestinos nos filmes de horror em cinema
com som Dolby. São as novelas da Globo, onde nas cenas cômicas é preciso botar
no áudio um cavaquinho moleque, como quem diz: “Riam! Essa cena foi engraçada!”.
(Made in Usa, 1966)
Godard é um subversivo do som, mais do que da política. Ruídos
súbitos explodem, estridentes, sem propósito, a qualquer instante, fazendo a
gente pôr as mãos nos ouvidos. Música dissonante, trechos de peças de vanguarda
concretista, falas em desacordo com os movimentos labiais do elenco, barulhos
irritantes e contínuos, silêncios inexplicáveis...
Godard sabe que o som é mais visceral e mais animal do
que a imagem, e assalta o tempo inteiro esse flanco desprotegido.
E quando precisa, ele sabe usar o som de outra forma. Em A Chinesa¸ Jean-Pierre Léaud e Anne
Wiazemsky discutem a relação quanto estudam sentados à mesa, com uma vitrola ao
lado. O rapaz se queixa de que na luta revolucionária é impossível batalhar em
duas frentes. Ela põe um disco, e faz uma pseudo-confissão de que não o ama
mais, para mostrar-lhe que ele é capaz, sim, de assimilar música e linguagem
simultaneamente.
O que ouvimos comenta o que vemos. Em Bande à Part, Anna Karina e Claude
Brasseur viajam de metrô e comentam ficticiamente os sentimentos das pessoas
que veem: “Olha para aquele... por que
aquela expressão? É qualquer coisa que imagines. Sua aparência mudará
dependendo da sua estória. Digamos que ele está levando um ursinho de pelúcia
para sua filha doente. E ele parecerá bem.
Mas ele parecerá cruel se você imaginar que ele está levando dinamite para
explodir o país.”
Godard ganhou muitas antipatias por fazer um cinema
destinado à inteligência, e não à emoção. É uma forma de fazer cinema – entre muitas.
Eu não quereria viver num mundo onde todo mundo filmasse igual a Godard. Ou a
Buñuel. Ou a Walt Disney. E quando quero me emocionar, vou assistir Truffaut ou
Fellini ou Billy Wilder, que me emocionam sempre.
Vistos em retrospecto, já devidamente domesticados, alguns
filmes seus me emocionam hoje, principalmente os seus retratos da mulher dos
anos 1960 na França: os casamentos complicados (Uma Mulher Casada), a ilusão pop (Duas ou Três Coisas que eu sei Dela, Masculino Feminino), a prostituição (Duas ou Três Coisas que eu sei Dela, Viver a Vida), a violência doméstica e social (Week End)... Os anos 1960 não foram nenhum paraíso.
Entre 1959 e 1967, Godard dirigiu quinze longas-metragens,
todos eles muito bons, pelo meu gosto. Filmes em geral feitos com pouco
dinheiro, feitos meio às pressas, misturando roteiro e improvisação, captando
fatos do momento (os inevitáveis rádios ligados, TVs ligadas, jornais lidos em
voz alta), captando o espírito do tempo – e pulando nos anos seguintes para um
tipo de cinema completamente diferente.
Por trás dos óculos-escuros indevassáveis e do cigarro
desdenhoso, era um rapaz pilhado, insone, desgastado por pensar o tempo
inteiro, capaz de transformar uma atriz em musa de uma geração, casar com ela e
tratá-la como se fosse uma criada. Tinha as qualidades e os defeitos dos
intelectuais do seu tempo. Ele e sua obra são uma Pedra de Roseta para entender
o mundo em que ele viveu (em que eu vivi), um mundo incompreensível para os
olhos de hoje.