No dia 4 de setembro passado foram entregues os Prêmios
Hugo de Ficção Científica e Fantasia, numa cerimônia-e-festa realizada em
Chicago.
Aqui, um link a respeito:
https://locusmag.com/2022/09/2022-hugo-astounding-and-lodestar-awards-winners/
De vez em quando, após uma premiação desse tipo, eu
vasculho a web em busca de algum dos textos premiados, principalmente as
noveletas e os contos curtos. Conto premiado é conto que já foi publicado, já
rendeu uma graninha. Após uma premiação assim, muitos autores liberam a versão
online do texto, para aumentar sua popularidade. Isso aumenta também a
possibilidade de que ele seja incluído em alguma antologia (ou revista em outro
país), trazendo mais alguns caraminguás para a conta do autor ou da autora.
Fui conferir o prêmio de “Best Short Story”, concedido ao
conto “Where Oaken Hearts Do Gather” (Uncanny
Magazine, online, #39), de uma autora que eu desconhecia, Sarah Pinsker.
Aqui o texto completo (em inglês):
https://www.uncannymagazine.com/article/where-oaken-hearts-do-gather/
O conto é excelente, por várias razões. Duas são
principais. Primeiro: trata-se do exame minucioso e interpretativo de uma
antiga balada inglesa. Segundo: isto acontece numa espécie de forum online,
onde diferentes pessoas dão suas opiniões e aos poucos vão sugerindo e
revelando um mistério meio tenebroso por trás daquilo tudo.
Os participantes do forum se identificam, claro, por
“nicks” como Dynamum, BonnieLass67, BarrowBoy, HolyGreil, etc.
Ou seja – não sabemos o gênero, a idade ou a origem social de nenhum deles. Parte
da habilidade da autora está em fazer surgir a personalidade de cada um através
de suas intervenções, questionamentos, críticas. E das ocasionais provocações
mútuas entre um e outro.
Há um diálogo real nesses comentários que se sucedem, se
superpõem. Isto tem sido um lado muito explorado na literatura atual:
reproduzir na página impressa a dinâmica visual e temporal da página
eletrônica.
Dois contos desse tipo de que gostei especialmente, nos
últimos tempos, foram o conto de Jennifer Egan "Great Rock and Roll Pauses
by Alison Blake" (no livro A Visit
From The Goon Squad, 2010), em forma de apresentação de PowerPoint, e o de
A. M. Homes “The National Cage Bird Show” (no livro Days of Awe, 2018), um
forum de pessoas bem diferentes entre si que começam a trocar confidências.
Ou seja – se eu
já vi esses todos, já deve haver milhares circulando por aí.
No conto de Sarah Pinsker, essa “balada inglesa tradicional” é estudada num forum onde algumas
pessoas, ao longo de meses, vão postando suas perguntas e respostas, comparando
diferentes versões da letra, etc.
A letra conta a história de um casal de jovens, Ellen e William.
Eles marcam um encontro à noite, embaixo da ponte, no meio do bosque. E ali – a
linguagem dessas baladas é meio elíptica, cheia de lacunas e de subentendidos –
ela arranca o coração de William, oculta-o no oco de um carvalho, e põe dentro
do peito dele uma “bolota” (semente) de carvalho. Depois, William se ergue e
volta para o povoado, aparentemente semi-vivo. E ali as pessoas do vilarejo o
enforcam, vão até o bosque e cortam todos os carvalhos. Daí surge uma tradição
local de cortar árvores.
O Professor Mark Rydell, um estudioso das baladas tradicionais,
viajou para a Inglaterra para pesquisar as possíveis origens históricas,
factuais, dessa lenda poética. E ali desapareceu, ninguém mais teve informação
dele. Um dos participantes do forum, HenryMartyn,
decide fazer um documentário a respeito. Viaja, também. Desaparece, também.
Isto dá ao conto um clima parecido com o de A Bruxa de Blair (1999) – a história de
jovens estudantes entusiasmados com uma lenda folclórica arrepiante, que
decidem investigar por conta própria.
Acho interessante o fato de que este conto (muito bem
trançado e resolvido, mesmo não tendo grandes surpresas) tenha ganho os prêmios
Nebula e Hugo, que são prêmios destinados à ficção científica e à fantasia.
(Não digo isto por mim, que estou-me nas tintas para essas classificações de
gênero; estou pensando nos puristas a subir pelas paredes.) Não há nada de FC e
só um pouco de Fantasia no conto. Ele poderia perfeitamente concorrer ao Prêmio
Edgar (de histórias policiais e de crime) e ao Stoker (de histórias de terror).
Basicamente, trata-se de uma história do que chamam de folk horror – narrativas fantásticas
aterrorizantes baseadas em tradições orais, geralmente da área rural e de
lugares remotos. Além da Bruxa de Blair,
o conto me evocou o filme The Wicker Man (1973),
com Christopher Lee, em que um policial viaja para uma ilha remota para
investigar crimes relacionados a um ritual antigo de fertilidade agrária.
Para mim, que sou leitor e admirador das antigas baladas
de língua inglesa, o ponto mais interessante é a permanência desses rituais
antigos (que muitas vezes envolvem sacrifícios humanos) em culturas milenares,
e os seus ecos em baladas anônimas.
Sarah Pinsker cita um texto de Wendy Lesser, na ótima
antologia The Rose and the Briar (New
York: Norton, 2005), de Sean Wilentz e Greil Marcus:
Quando uma balada tradicional mostra lacunas em sua narrativa, é porque
se presume que o público já conhece a história, e pode se encarregar de
preencher os claros por conta própria. (trad. BT)
É exatamente o que se dá, entre nós, com o chamado
Romanceiro Ibérico. Em muitos aspectos (métrica, rimas, formato de estrofe) os
romances portugueses e espanhóis trazidos para o Brasil (e preservados
oralmente) são diferentíssimos das baladas inglesas. Mas em ambos vemos fatos
históricos ou semi-históricos sendo condensados em 30 ou 40 linhas, com
descrições resumidíssimas, diálogos sem indicação de quem os profere, repetição
encantatória de sonoridades, alusão a lugares ou pessoas pouco identificáveis,
lirismo exagerado, violência brutal. Além do fato de que cada versão documentada
é diferente de todas as outras numa miríade de detalhes.
Duas antologias clássicas desse romanceiro são o Romanceiro Geral Português (1906; várias
reedições) de Teófilo Braga, e Presença
do Romanceiro (Civilização Brasileira, 1967) de Antonio Lopes. Sempre é bom
lembrar que aqui no Brasil esse “romanceiro” não é a mesma coisa que a chamada “literatura
de cordel” – são universos poéticos vizinhos, mas diferentes.
Sarah Pinsker faz uma série de alusões divertidas à
permanência das baladas na cultura popular de língua inglesa. “Where Oaken
Hearts Do Gather”, segundo ela, foi gravada por um grande número de artistas,
desde os clássicos Kingston Trio e Joan Baez até a banda contemporânea The
Decemberists (acho que é a primeira pessoa que eu vejo citar essa banda, que
acho excelente).
Tudo ficção. A única versão gravada, claro, é a da
própria autora (disfarçada sob o pseudônimo de “Moby K. Dick”):
A balada é bonita, o enredo é interessante, mas para mim
a principal virtude do conto é o modo como ele superpõe a cultura oral de 500
anos atrás e a cultura digital da web contemporânea, e mostra como são parecidas.
Perda de autoria individual, numa cachoeira incessante de produção anônima. Condensação
factual a um ponto de distorção. Diálogos sem interlocutores claros. Repetição,
paródia, pastiche, apropriação constante de formas alheias. Criação de um
jargão próprio, quase indecifrável para quem é de fora. Citação abundante de
lugares e pessoas reais e fictícios. Sentimentalismo exacerbado, misturado a uma
chocante violência verbal.
Nada se parece tanto com a cultura oral de 500 anos atrás
como a cultura digital de hoje em dia.
Há muitas coletâneas dessas baladas inglesas. Algumas
delas já são baladas norte-americanas, porque os EUA fizeram com a cultura
britânica o mesmo que fizemos nós com a lusitana. Alimentaram-se, e produziram
uma síntese nova.
Dois dos melhores álbuns de Bob Dylan são inteiramente
compostos de versões acústicas dessas baladas tradicionais: Good As I Been To You (1992) e World Gone Wrong (1993).