Estou assistindo a série de TV Sandman, no Netflix. Comentarei agora os episódios de 1 a 6 desta primeira temporada, que correspondem mais ou menos ao primeiro volume dos quadrinhos, Prelúdios e Noturnos. Comentarei os episódios 7 a 10 (e tem um extra, o 11) depois que reler o volume correspondente, Casa de Bonecas.
A série é extremamente bem realizada como obra autônoma e como adaptação de uma obra já existente, no sentido de que amplia e enriquece muitos elementos da obra original, permanecendo fiel ao seu espírito. Claro que diferentes leitores terão diferentes expectativas. Eu sou apenas um leitor casual. Não li nem a metade dos dez volumes da graphic novel. Leio porque gosto, não porque sou fã.
Acho bom lembrar que quem faz uma série assim não está se dirigindo apenas aos especialistas que conhecem cada detalhe e aos fãs que já leram 50 vezes cada história. Está se dirigindo a gente como eu, que conhece de longe a obra do autor, gosta, quer conhecer melhor, mas vê com olhos de espectador, não de crítico.
De todos os “Perpétuos”, os seres sobrenaturais que administram as vidas humanas, Morpheus (o Sonho, o “Homem da Areia”) é o mais interessante. É uma figura trágica, não porque um final terrível o aguarde, mas porque está preso a um papel, como a maioria dos “heróis” ou semideuses. Heróis não são livres: eles têm uma função a desempenhar e às vezes invejam nos humanos a nossa desorientação, nossa ignorância, nossa disponibilidade, nossa bagunça, nossa ausência de um roteiro cósmico a cumprir.
Morpheus, na tela, exibe o fatalismo de um gótico e a impassibilidade de um vulcano. Ele é menos humano do que o corvo que o acompanha, o previsível sidekick atrapalhado, tagarela, útil, presente em tantos desenhos animados para servir de efeito de contraste a um herói insondável e lacônico.
Assistindo a série não consegui deixar de ver por toda parte a paleta de Dave McKean, o capista que fez muito para “dar o tom” da série escrita. Ele pode não ter feito parte da equipe, mas serviu de parâmetro, de referência de implantes visuais. Cenas do sobrenatural em ação, sonhos, paisagens bizarras e de universo-fora-dos-gonzos estão cobertas por aquelas cores de um fogo enferrujado, borrifos espalhando-se sobre lâminas flexíveis, vultos e rostos deformados através dos quais se avista um bosque, uma carta de arcano ou um músculo dissecado. Xeroxes coloridas raspadas com lixa de madeira, colagens enxertadas sobre guaches pegajosas, tudo em movimento digital, como num fundo-do-mar por onde os personagens se deslocam.
Não faço restrições ao casting, à escolha dos atores. Personagens são máscaras. Já vi Macbeth interpretado por Denzel Washington e por Orson Welles, mas na minha memória afetiva seu rosto será sempre o do Jon Finch do filme de Polanski. Há uma enorme latitude de interpretação, mas também de risco, ao se mexer com personagens que o público acha que já conhece (e tem razões para isso). A questão principal é se o público entende o que o personagem significa, ou se apenas se acostumou com um tipo de ator. De minha parte, acho que só não poderia mesmo aceitar um Sherlock Holmes gordo ou um Nero Wolfe magro.
A série é um enriquecimento da obra
original, e penso assim porque alguns dos meus episódios preferidos nos livros (Caim
e Abel, John Dee pegando carona ao fugir do hospício, as pessoas presas na
lanchonete, o duelo no Inferno, a conversa entre Morpheus e a Morte) estão mais
densos, menos extravagantes, mais carregados de uma maturidade onde dá para ver
o Neil Gaiman de 60 anos conversando com o Neil Gaiman de 30.
Tenho observado que uma boa parte do cinema/TV que se baseiam em temas de FC/fantástico precisam, por causa do assunto e da ambientação, recorrer a cenários impressionantes, extravagantes, rebuscados, surrealistas... Há a necessidade de propor um universo que o público nunca imaginou, e propô-lo visualmente, já que o meio é visual.
Muitas vezes o peso visual do ambiente toma conta da imagem e pressiona a ação. O exotismo do cenário, seja ele de paisagens sobrenaturais ou de arquitetura futurista, acaba virando um retentor da ação dramática, como se de repente a história inteira se visse enclausurada numa sucessão de aquários luminosos.
E então essas narrativas perdem a leveza que é a vantagem da câmera cinematográfica (esse Mercúrio com asinhas nos pés). E perdem o espaçotempo picotado pela montagem (=”edição”) e tornam-se, inesperadamente, uma espécie de teatro filmado. Uma sucessão de cenas estáticas, dialogadas, com um mínimo de movimentação e de marcações para os atores, o que se justificaria um pouco mais se os diálogos fossem (como no teatro filmado) de nível bem alto. Se a narrativa é assim, paradona, cheia de tablôs e de retórica, melhor assistir Shakespeare filmado por Kenneth Branagh.
Foi essa a armadilha em que caiu, por exemplo, a recente adaptação da série Fundação, de Isaac Asimov, que teve um bom primeiro episódio, inclusive com ousadias de enredo, propondo cenas (a explosão do elevador espacial) ausentes no original; mas depois desandou numa sucessão de reuniões políticas, com diálogos aliás bem pedestres, em cenários cuja escala monumental drenava toda a dramaticidade da ação, ao invés de conferir-lhe força.
Sandman tem escapado à maioria dessas arapucas, talvez pelo ritmo HQ da história de origem – em cada prancha/página uma ou duas reviravoltas na ação. É uma narrativa onde cenas de ação rápida e violência brutal ficam engastadas num arco de avanço mais lento, um tanto inexorável (a busca de Morpheus pelos três objetos roubados) que puxa a história para um “andar de cima” onde vigora o tempo dos Perpétuos.
Um tempo que em relação ao nosso é como o nosso (do mundo real) em relação ao tempo de um filme, onde tudo ocorre às pressas, em blocos sucessivos de ação retalhada por elipses. Personagens têm direito apenas a essas poucas horas de som e fúria sobre um palco, essas fatiazinhas de vida, entrecortadas, efêmeras. Quando saímos da sala de projeção, estamos de volta ao nosso tempo esférico, imutável, que não acelera nem retarda. Pobres personagens de filme: nós somos os Perpétuos deles.