Béla Tarr é um diretor húngaro famoso por seus filmes
lentos, de planos longos e complexos. O último deles, O Cavalo de Turim (2011, em parceria com Agnes Hranitzky, sua
esposa, e montadora de seus filmes), está no YouTube – com ótima imagem e
legendas em português.
Aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=uR4IdLrR3I8&t=636s
O filme narra sete dias da vida de um velho e sua filha
numa casa de pedra, numa região remota e árida, batida por um vento gelado o
dia inteiro. Com diálogos raros e curtos, presenciamos o cotidiano dos dois, as
tarefas domésticas, o trabalho de rachar lenha, preparar comida, lavar roupa,
levar o cavalo e a carroça até o povoado vizinho (que nunca aparece).
Num filme de Béla Tarr, são comuns planos de oito ou dez
minutos, sem diálogo, com pouca ação, câmera parada. E no entanto esses planos
não são vazios ou monótonos (pelo menos para mim). Parecem-me carregados de
vida interior e de significado. Por que será? Porque o diretor é famoso, é
premiado? Nem tanto, porque há dezenas de outros, mais famosos e mais premiados
do que ele, por cujos filmes não dou um vintém.
Aquele mundo pedregoso em preto-e-branco parece um pouco
o sertão de Cabaceiras, mas um sertão gelado, uma caatinga dos ventos uivantes,
um Vidas Secas em que uma batata cozida
é refeição bastante. O velho tem o braço direito “morto” e precisa ser ajudado
para se vestir e outras tarefas, mas é obstinado e incansável em seu trabalho
com a carroça e o cavalo. A moça também não pára: arruma, cozinha, lava, pega
água, acende fogo.
E de vez em quando um dos dois senta à janela e fica
olhando o nada lá de fora, enquanto a ventania canta. E a câmera não se mexe.
A trilha sonora do filme é hipnótica, porque reproduz os
assobios e os uivos do vento em loop,
e qualquer coisa insistentemente repetida em loop acaba ganhando uma espécie de significado musical, assim como um
pedaço de imagem arrumado em forma de “ladrilhos” ganha algum tipo de simetria e parece
conter intenção estética.
Existe algo de Samuel Beckett e de Esperando Godot nesse casal lacônico. Eles parecem ter uma amnésia
ao contrário: são o inverso daquelas pessoas que esqueceram o passado. Eles
esqueceram o futuro. Repetem todos os dias os mesmos gestos, e só sabemos que o
dia é outro porque a câmera desta vez está numa posição diferente.
“Para alguns a vida é interminável, e o que é interminável não tem mais
sentido. Como encontrar o tempo de viver? Para outros, a vida terminou
antecipadamente. Chegou ao fim antes de começar. Ela se desenrola numa espécie
de fita abstrata, excluindo qualquer dimensão temporal. Algumas vidas fazem
assim, inutilmente, o sacrifício de seu fim, e perdem até a lembrança de sua
origem.”
Jean Baudrillard (Cool
Memories, 1980-1985, Rio: Espaço e Tempo, 1987)
(trad. Mauricio Carvalho Lyrio)
E, tal como os dois vagabundos de Beckett, eles recebem
uma visita. Um vizinho vem comprar um pouco de aguardente. E despeja sobre eles
uma torrente de palavras que resumem seu desespero frio com o que os donos do
mundo fizeram com ele: “Pôr as mãos,
adquirir, finalmente degradar”. É um monólogo de cerca de cinco minutos, em
que o casal escuta e não diz nada.
Lembra o monólogo de Lucky, em Godot, uma torrente de palavras que brota como um iceberg no meio de uma história lacônica
e introvertida.
A segunda grande interrupção na rotina é a chegada de uma
carroça de ciganos que estão indo embora daquela região, e que trazem um
relâmpago de vida e de algazarra. É como se num filme de Bergman (naquelas
ilhas pedregosas e inóspitas de Bergman) chegasse uma caravana de saltimbancos
de Fellini. Eles usam toda a água do poço, convidam a moça a acompanhá-los
“para a América”, riem, falam sem parar, e somem na poeira.
O Cavalo de Turim
tem esse título devido ao episódio que (reza a lenda) desencadeou a loucura
final do filósofo Nietzsche. Ele teve uma crise nervosa em Turim, ao ver um
cavalo cansado ser chicoteado por seu dono. Béla Tarr e o roteirista Laszlo
Krasznahorkai se perguntaram: “E o que aconteceu com o cavalo, depois que o
filósofo foi levado embora?”
O cavalo aparece em todo seu vigor e toda sua beleza na
magnífica sequência inicial do filme, em que o velho dispara sua carroça pela
estrada, voltando para casa. É uma explosão de vitalidade que aparentemente
esgota todas as forças de ambos, porque daí em diante, deixam-se consumir pela
apatia. O próprio cavalo recusa-se a comer, como um “Bartleby, o Escrivão”, o
personagem de Herman Melville que de uma hora para outra resolve não fazer mais
nada.
É como se um ataque gradual de entropia, de perda de
energia vital, se abatesse sobre aquele lugar (o vizinho, em seu monólogo,
atribui isto ao rumo que o mundo inteiro está tomando). A água seca. O fogo se
apaga. A lamparina recusa-se a ser acesa. A natureza parece estar deslizando
devagar para a morte térmica.
Béla Tarr pertence à escola de Ingmar Bergman, Robert
Bresson, Andrei Tarkovsky. Uma escola geralmente minimalista, de planos longos
e bem trabalhados, elencos reduzidos, simplicidade rigorosa. O Cavalo de Turim é uma fábula das
existências que ficaram pelo meio do caminho quando uma parte do mundo
enriqueceu. Como um tripulante que caiu no mar durante a noite, e o navio foi
embora sem dar pela falta dele.