Uma contradição permanente das democracias é que o poder vem nominalmente do povo, através do voto em representantes
(no Executivo e no Legislativo), mas este é praticamente o único poder que o Povo
tem. O melancólico poder de olhar uma lista que lhe fornecem e dizer: “Prefiro
essa pessoa aqui.”
Porque poder econômico, o que de fato mexe as engrenagens
do mundo, o cidadão comum (eu por exemplo) não tem nenhum. A façanha-de-super-herói
dele é estar com os boletos em dia, sem dever a ninguém, e ter um extra para a
cerveja no bar da esquina.
E aí entram em cena os bilionários, essa casta de Super
Heróis (ou Super Vilôes, conforme o ponto de vista) que hoje em dia é capaz de
tudo. São muitos. Copio, do verbete da Wikipedia:
Em 2018, existem 2.200 bilionários (em dólar) no mundo inteiro, com uma
soma de riquezas de mais de 9 trilhões, mais do que os 7 trilhões que possuíam
em 2017. De acordo com um relatório de 2017 da Oxfam, os oito bilionários mais
ricos possuem uma soma equivalente à das posses da metade mais pobre da
humanidade.
E em 2019 surgiram 19 novos bilionários no mundo!
(Cory Doctorow)
O escritor Cory Doctorow publicou um texto recente em que
ele questiona o modo como as democracias contemporâneas permitem essa
concentração de riquezas. Ele faz uma comparação com as monarquias absolutistas,
onde todo o dinheiro arrecadado ia para a família do rei, e o rei, por ser representante
de Deus na Terra, podia fazer o que lhe desse na telha. Um dia, era deposto por um
inimigo – que passava a ocupar seu posto e a fazer mais ou menos o que ele
fazia antes.
Diz Doctorow:
Como disse o senador John Sherman ao Congresso, quando se esforçava
para fazer aprovar sua histórica lei anti-truste em 1890: “Se não aceitamos um
Rei como um poder político, não devemos aceitar um Rei como possuidor da
produção, transporte e comercialização dos bens necessários à vida. (...) Se não
nos submetemos à vontade de um imperador, não devemos nos submeter à vontade de
um autocrata do comércio.”
A verdade é que esses indivíduos (como Bill Gates, Jeff
Bezos, Elon Musk e outros) têm hoje um poder que deixa no chinelo monarcas como
Luís XIV ou o Rei Leopoldo da Bélgica (aquele que foi dono do Congo e tornou-se
um dos homens mais ricos da história). E esse poder não é apenas o do dinheiro. É também o do comando financeiro de tecnologias que podem ter na vida humana um
impacto inimaginável no século 19.
A república continua a ser um sonho, uma miragem
distante, mesmo na Europa e na América. Uma ficção coletiva que nos leva a votar de ano em ano. Vivemos sob monarquias. Se não as do
sangue e das casas reais, a do dinheiro, do neo-liberalismo econômico, e da
mitologia midiática. Assim como os reis de antigamente diziam ser os
representantes de Deus na Terra (e sendo assim tudo que faziam estava certo) os
bilionários de hoje são os nossos representantes. “Todo poder emana do povo, e
em seu nome será exercido” – pelos bilionários, e em seu proveito próprio.
[A corrida espacial dos bilionários] é uma competição movida a
testosterona. Um indivíduo que se destaca nela é Elon Musk, porque constrói
foguetes re-utilizáveis, o que é uma coisa bacana e muito nobre, mas ao mesmo
tempo a sua idéia de levar um milhão de pessoas para colonizar Marte é uma
obscenidade. Devíamos cuidar do nosso planeta, em vez de tentar tornar viável
um planeta inóspito. Não é preciso ser cientista para perceber que colônias em
Marte são um projeto sem futuro. Quanto a essa disputa dele com Bezos e outros
bilionários, acho que é uma estratégia de marketing. Dá a ele o rótulo de – e
estou dizendo isto entre aspas, ponha uma porção de aspas antes e depois –
“visionário”. Ou seja: se você for comprar um carro elétrico, não compre dos
alemães, não compre dos chineses, compre do “visionário”.
(trad. BT)
Eu nem sou tão velho assim, mas me lembro de um tempo em
que quando se queria dizer que um sujeito era rico dizia-se que ele morava “numa
mansão” e “andava de Cadilaque”. O nível de enriquecimento a que se chegou nas
últimas quatro décadas é algo que supera qualquer proeza imaginativa anterior.
E o mais curioso é que se você fizer uma pesquisa no Brasil vai ver que a
maioria das pessoas admira Jeff Bezos, Bill Gates, Elon Musk, etc. Por que?
Ora, porque todo brasileiro acha que tem chances de virar bilionário um dia. Então,
ele já vai falando bem do clube a partir de agora.
Por que motivo nos identificamos com os Imperadores do
Dinheiro, numa república, numa democracia? Talvez porque a economia ainda
esteja sujeita ao que Cory Doctorow citou acima: é um espaço onde ainda se
podem realizar os sonhos de absolutismo, de poder total, um poder que não
precise ser repassado de 4 em 4 anos para um oportunista qualquer, um
antagonista qualquer.
Mesmo que Elon Musk seja filho de um dono de minas de
esmeralda, os norte-americanos médios (e até os brasileiros médios) conseguem
ver nele um “homem que fez a si próprio”, um meritocrata, que ficou bilionário
por uma mistura de talento, esforço, e fé. Quem acha que tem essas três coisas,
acha que pode juntar uma fortuna semelhante.
As antigas tragédias clássicas (desde as gregas até as
elisabetanas) se concentravam nos reis porque eles eram o símbolo do povo. Rei
triunfante, povo vencedor. Rei alquebrado, povo enfraquecido.
Nossos “reis do dinheiro” cumprem um papel parecido, com
um detalhe diferente. Eles não foram empossados no trono por desígnio divino. Eles
se elevaram da multidão informe e sem rosto, e se tornaram super-homens,
dotados de um super-poder. É o mesmo sonho dos garotos pobres que graças à
música popular ou ao esporte se tornam milionários – só que um sonho elevado a
uma potência maior.
É o
garoto que nasce nos Alagados, Trenchtown, Favela da Maré. Ele tem todo o
direito de sonhar em ser um Neymar ou um Michael Jackson. Tornar-se bilionário
como Musk ou Bezos é “outro patamar”, mas o direito ao sonho é o mesmo. Eles
são vistos como visionários (como disse Herzog), e é esse o seu carisma:
transformam cada um de nós num visionário, num cara que “acredita”.